quinta-feira, 10 de abril de 2014

Lucubrações de empréstimo



Tenho andado a ler “Le Roman de la Momie  de Théophile Gautier, talvez por ter mais tempo, talvez  por um desejo de evasão das sonoridades mediáticas dos tempos modernos, talvez por amor a tanta maravilha com que  o homem nos foi brindando com o seu génio e o seu trabalho de pesquisa -  admiráveis, no caso de Gautier.
Um estilo de requinte e de riqueza vocabular, colhido  num aprofundar de elementos que a decifração hieroglífica pelo professor de história Champollion, entre outros egiptólogos, fornecera na altura, provocando uma egiptomania oitocentista de pesquisa arqueológica e de temática romanesca de maldição e terror ou de reconstrução histórica recuada, no fascínio  pelo mundo antigo. Assim, a partir da descoberta de um túmulo inviolado, cuja múmia, ao ser despojada dos invólucros luxuosos e impregnados de estranhas essências odoríficas, mostrou manter a beleza dos traços que a definiam em vida, provocando a súbita paixão do patrocinador da descoberta – o jovem inglês, belo, rico, culto e caprichoso lorde Evandale - se constrói o romance da múmia, aparentemente relatado no rolo de papiro descoberto no sarcófago – técnica de atribuição historiográfica de que tanto usou o nosso Camilo nas suas novelas.  Uma história de paixão e sofrimento da egípcia Tahoser, (decifrada pelo professor acompanhante da expedição, o sábio Rumphius), e do grande amor do todo poderoso Pharaon que a raptou ao primeiro amante, o hebreu Poeri, e a rodeou de todos os primores de luxo e afecto que por fim surtiram o efeito desejado de dedicação e amor de Tahoser por ele. O túmulo descoberto, contendo a jovem Tahoser era, de facto, destinado a Pharaon, que as águas do Mar Vermelho engoliriam, aquando da perseguição aos Judeus durante o Êxodo, após as dez pragas enviadas por Jeová, tendo aquela reinado pouco tempo mais sobre o Egipto, em sua substituição.
Clareza descritiva, mas sobretudo uma grande riqueza lexical fixada – aparentemente - no papiro, retomada no papel, pelo escritor estudioso, defensor da arte, na poesia, - arte pela arte - requintada, impassível,  liberta das preocupações do mundo, da moral como da política, apenas expressiva de beleza formal, semelhante às outras artes plásticas. Porque tudo redundará em poeira, a caravana humana não vai a lado algum, e apenas à morte, como o exprime no seu soneto a que uma tradução à letra retirará a eficácia da melodia, deixando apenas a ideia do absurdo existencial. E deste modo o soneto de Gautier serve de comentário ao seu “Romance da Múmia” – uma múmia descoberta, vinda de um passado milenar, de um requinte sem mais finalidade que o de seduzir pela beleza, na aridez desértica da passagem do homem por este mundo.
«A caravana»
«A caravana humana no Saará do mundo
Neste caminho do tempo que não tem retorno,
Vai arrastando os pés, crestada ao calor do dia
E sorvendo dos braços o suor que a inunda.

Ruge o leão, a tempestade estrondeia,
No horizonte fugidio nem torre nem minarete;
A única sombra existente é a sombra do milhafre
Que atravessa o céu, buscando a presa imunda.

E a caravana avança e eis que se avista
Qualquer coisa verde que com o dedo se aponta:
É um bosque de ciprestes  semeado de brancas pedras.

Deus, para nosso repouso, no deserto dos tempos
Como oásis colocou os cemitérios:
Deitai-vos e dormi, viajantes pressurosos.»


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