sábado, 22 de março de 2014

“Bolas, que agoirento!”



Foi o comentário escrito que, à minha irmã, mereceu o artigo de Vasco Pulido Valente, saído no Público em. 16/7 – «A nossa democracia» -  antes de, fraternalmente, me passar os Públicos que ela compra, dividindo comigo o prazer da leitura, preenchendo ela as palavras cruzadas e os sudokus da sua distracção, que eu sempre tenho as Copas, o FreeCell e o Solitário Spider da minha diversão diária.
De facto também achei o artigo de um derrotismo aflitivo, provindo de um espírito cuja lucidez se deixa ofuscar, por vezes, por uma má vontade de desprezo que lhe merece, dum modo geral, o povo português. O mesmo desprezo superior – superioridade aristocrática e intelectual - que há dias vagamente senti - porque o detectei de relance na RTP - numa figura do tablado britânico, cuja identidade profissional não consegui captar. Talvez fosse o detective chefe Andy Redwood, referenciado na internet, provável continuador, nos trejeitos de investigação policial, do subtil Sherlock Holmes – ao referir-se ao caso Maddie e a novas possíveis provas de atribuição criminosa no seu rapto, com severo desprezo sobre “esse mundo do sul” -submundo, portanto, o nosso - que, ao que parece, não facilitou a descoberta do criminoso agora escolhido. Desprezo, de resto, próprio de todos os apartheids dispersos pelo mundo, quer se trate dos do setentrião europeu, do ocidente americano, ou do meridião africano, para só falar nos mais conhecidos, pois que o mundo, afinal, está semeado de párias malquistos, que não cabem, contudo, nas reclamações das lutas ordeiras dos Gandhis contra os racistas britânicos, visto que os párias desprezíveis no segregacionismo das castas elitistas do seu próprio povo não figuram nelas.
Evidentemente que a altivez malandra depreciativa de Pulido Valente, que também o engloba a ele, quase se limita ao designativo “indígena”, que somos nós, aborígenes de uma pátria para mais genuinamente indigente, apesar das glórias de um esforço heróico de outrora, jamais libertadoras de uma estranha injustiça a condicionar tão expressivas desigualdades sociais internas.
E no entanto, o pensamento “agoirento” de Pulido Valente parece certo, fruto de uma preocupação que resulta de clareza da sua razão e conhecimento histórico sobre um povo sui generis, que sempre viveu mais de truques de sobrevivência – pelo menos nas cidades – do que de um esforço de construção em prol de uma comunidade harmónica e solidária: no tempo do absolutismo as riquezas que esse povo ajudou a angariar foram disseminadas em esbanjamentos glorificantes, indiferentes a uma elevação material e espiritual menos elitista; o liberalismo libertador embateu nesses condicionalismos de atraso e penúria, que os esforços de elevação cultural, juntamente com a modernização trazida com o progresso da industrialização, naturalmente pela via do financiamento exterior, tentaram dificilmente superar, sempre em palpos de aranha para vencer os défices e o invencível atraso nacional. Salazar foi dos que susteve o caos anterior, mas dentro das condicionantes do costumado miserabilismo e desnível social injusto e vergonhoso, todavia apoiado por louvável sentido patriótico respeitador do passado histórico, além de resultante do reconhecimento interesseiro de um ultramar provedor de muita da sobrevivência da nação. Desfeito o sonho imperialista e aplicados os princípios da solidariedade social, foi à custa da herança da anterior poupança salazarista, e posteriormente dos auxílios europeus, que se pôde desenvolver o país em reestruturações mais concordantes com os mundos da previdência e da riqueza estrangeiras. Só que tudo isso foi seguido de depauperamento dos sectores económicos primários, sobretudo, com consequências graves sobre o desemprego e sobre a crescente intemperança de comportamentos sociais relativos a corrupção económica, favorecedores de desníveis económicos irreparáveis e impeditivos de um recomeço sério, ao que se diz, de uma nação sempre madrasta.
Daí o discurso “agoirento” de Vasco Pulido Valente. Só me parece que ele poderia apoiar mais um Governo que precisa da tal austeridade e autoridade para impor a ordem nas contas e no crédito, sabendo bem que o excesso de “democracia”, pela desordem criada com as noções de direitos do estado social em que não encaixam bem os deveres do mesmo, é factor de agravamento, criador da tal violência reivindicativa, que, a continuar, mau grado as comportas com que o Governo pretende suspender a torrente desastrosa, naturalmente nos levará à derrocada total.
Pulido Valente, com as suas análises argutas, no fundo está a colaborar na mesma confusão e destruição que os 74 notáveis de dentro, acrescidos, agora, dos 74 amigalhaços de fora, se propõem gerar, indiferentes ao país - favorecidos, todavia, pelas pequenas conquistas desse Governo que lhes vai mantendo os ordenados, apesar de mais reduzidos - roendo na sombra a corda que vai sustendo o país, graças à determinação e coragem dos jovens governantes que lhes fazem frente, embora lhes falte a doutorice reivindicada por muitos dos tais notáveis, que tanto deram o seu contributo na ruína do mesmo, com empréstimos descontrolados para cozinharem a democracia em proveito próprio também.
Todos esses notáveis da economia e das empresas, deviam, isso sim, colaborar com o Governo na consciência da contenção e não do esbanjamento, e não pôr-se a brincar aos soldadinhos de chumbo, a dois meses de uma solução – evidentemente não definitiva - sobre a qual se fazem apostas, em vez de apoios, se dão tiros em vez de flores. Eles sabem do buraco que eles próprios também cavaram, mas pretendem disfarçar, com uma extemporânea reestruturação da dívida, para o bota-abaixo final. As flores vêm aí, daqui a trinta e quatro dias. Para as suas demonstrações de amor pátrio, de soldadinhos de chumbo em acção. No caos.
O artigode Vasco Pulido Valente:
A nossa democracia
Depois de, pelo menos, 30 anos de guerra civil (1821-1851), Portugal conseguiu estabelecer um regime liberal, que durou à volta de 40 anos. No fim do século XX, apesar de algumas tentativas autoritárias, Portugal também conseguiu estabelecer uma democracia “à europeia”, com dinheiro emprestado. Não admira que muita gente hoje se comece a preocupar com o futuro político do país.
Será possível com os 20 ou 30 anos de “austeridade”, ou seja, de empobrecimento, que do alto da sua sapiência o dr. Cavaco nos prometeu, conservar um regime apesar de tudo benigno e tolerável? Ou, se uma tradição já velha prevalecer, virá agora um período de violência e desordem, a que uma espécie qualquer de autoritarismo tarde ou cedo acabará por pôr fim perante o alívio e o júbilo dos portugueses?
A dúvida é lógica e até prudente. Tanto mais que a “Europa” dos fundadores, que foi a esperança e o sonho de três gerações de ingénuos, manifestamente se desagrega e abandona os princípios que desde o começo tinham sido os seus: os direitos do homem, o Estado Social e a supremacia da lei. Como iremos nós, sem a “solidariedade” e o apoio de Bruxelas, resistir às forças que de dentro e de fora promovem ou assanham o nosso descontentamento geral e cada vez mais dividem o país? Não existem hábitos de tolerância e de compromisso, não há instituições que inspirem o respeito da maioria da população, não há uma classe dirigente respeitável e respeitada. Nem sequer há uma razão maior para um patriotismo indiscutível e partilhado. Sem nenhum fundamento sólido, Portugal anda de facto à mercê das circunstâncias.
Pior: os motivos para o caos, que são simultaneamente aos motivos para a tirania, não param de aumentar. A corrupção cresce e a justiça persiste na sua incompetência e lentidão. O Estado passa por couto privado do privilégio e dos “negócios”. Os políticos ganharam uma fama (com frequência, merecida) de carreirismo e desonestidade. A autoridade da “inteligência” desapareceu. E a própria Igreja desistiu ruidosamente do século. Isto é um convite a um aventureiro ou bando de aventureiros para se apoderarem e se entrincheirarem no poder. Por enquanto, essa catástrofe ainda anda longe. Mas, com a rapidez da mudança num mundo fluido e imprevisível, não admira que amanhã bata às portas da cidade. O dr. Cavaco e o dr. Passos Coelho deviam pensar duas vezes no que fazem.»

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