sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Corroborando



“A pobreza do discurso”, um artigo de João César das Neves, publicado no blog “A Bem da Nação”, que põe o dedo na chaga do nosso statu de encardimento social cristalizado num genérico de pobreza, caridade e reclamação, numa envolvência de disparidade social cada vez mais ténue, mas com bolsas de despreocupação mundividente , a cargo dos que seguem a eito no bem-estar sem preconceito.
Pobreza: eis um estado social que prevaleceu ao longo da nossa história nacional, estabelecida nos parâmetros dos que governaram a nação, chamando a si e às classes da sua envolvência mais próxima, a riqueza e a dissipação, deixando à classe proletária trabalhadora o encargo da manutenção do status nobiliárquico, por meio da imposição de impostos onerosos e rebaixantes.
Mas enquanto os outros povos ocidentais se foram libertando do afundamento ou marginalização, porque do povo surgiu uma burguesia que trabalhou e se diferençou culturalmente, e alargou a sua influência esclarecida, no nosso país a grande massa popular permaneceu atolada e envilecida na inércia do atraso cultural, de hábil conveniência superior, ciente de que as luzes do esclarecimento cultural a breve trecho conduziriam a reclamação de direitos despropositados, já que o mundo afinal sempre se regeu segundo os parâmetros da superioridade e da inferioridade, esta última confundida, naturalmente, com escravatura e/ou servilismo.
Vem de longa data o apontar desses males entre nós, quer em temática de desconcerto, quer na acusação feita pelo próprio povo explorado, na pena desafiadora de Gil Vicente, caso do seu Lavrador com a sua extraordinária autodefesa da acusação feita pelo Diabo e o Anjo, que não é demais repetir: «Bofá, Senhor, mal pecado, / sempre é morto quem do arado / há-de viver. / Nós somos vida das gentes / e morte das nossas vidas; / a tiranos - pacientes / que a unhas e a dentes / nos têm as almas roídas. / Para que é parouvelar? / Que queira ser pecador / o Lavrador; / não tem tempo nem lugar / nem somente d’alimpar / as gotas do seu suor. / Na igreja bradam com ele, / porque assobiou a um cão; / e logo excomunhão na pele. / O fidalgo maçar nele /até o mais triste rascão. / Se não levam torta a mão, / não lhe acham nenhum direito. / Muito atribulados são! / Cada um pela o vilão / por seu jeito.”» Os poetas e outros escritores mais recentes fizeram também da miséria motivos do seu discurso piedoso, revoltado e impotente o de Cesário, referente, entre outros exemplos, ao cantarolar da engomadeira tísica, de paradoxo ambíguo e superior o de Pessoa, referente ao canto da “pobre ceifeira”, de intuito politicamente interventivo o dos escritores neo realistas.
Mas, afirma César das Neves, “Hoje fala-se muito mais de pobreza do que antes, o que é normal, dada a crise”, esclarecendo bem a questão, na sua análise dos vários atributos que definem o povo português, generoso por natureza, sabendo, por experiência própria dar valor à escassez de recursos, e praticando facilmente a solidariedade ou a caridade que lhe eleva a estima própria.
As filosofias políticas têm igualmente contribuído para o alargar das referências à pobreza, como temática por excelência para afundar de vez com o governo- seja ele qual for, mas sobretudo este – como bem explica o texto de César das Neves.
De qualquer forma, o tabu estabelecido a esse respeito dantes, provinha de que as desigualdades sociais eram dado adquirido que não perturbava as consciências - aliás educadas nos princípios bíblicos dos pobrezinhos merecedores do Reino dos Céus, segundo dado consensual dos cinismos aristocráticos, além de que as temáticas dos escritores tinham mais a ver com as clássicas do amor, da beleza, da natureza, da juventude, da morte, das espiritualidades… E isso pertencia às mentes esclarecidas, dum modo geral conotadas com a nobreza, a democratização trazida mais tarde, pelos espíritos aburguesados que lutaram pelas igualdades sociais.
E são essas de que mais se fala entre nós, não só por causa da crise, mas porque andamos sempre atrasados nos estudos. A Revolução Francesa foi há mais de dois séculos, os outros povos estabilizaram há muito as suas mudanças sociais e temáticas. Nós continuamos à deriva, nas temáticas do nosso descontentamento repetidas à exaustão, na pobreza do nosso discurso.

«A pobreza do discurso»
Hoje fala-se muito mais de pobreza do que antes, o que é normal, dada a crise.
Além disso, nestes tempos difíceis Portugal tem brilhado em solidariedade e entreajuda. Mas as duas coisas estão bastante desligadas. A caridade, em geral discreta, pouco tem que ver com o que se diz da pobreza.
Primeiro, porque quem fala sobre miséria costuma estar zangado. Isso até é compreensível, mas a irritação, mesmo bem intencionada, gera exageros, discórdias, perda de objectividade, o que é lamentável em problema tão grave.
Segundo, a quase totalidade dos que elaboram sobre pobreza não são pobres. Também isso é natural, pois os verdadeiros necessitados, por o serem, não têm voz ou influência. Captar auditório é, em si mesmo, um importante activo, que falta aos indigentes. Por isso, aqueles que ouvimos falam de algo que de facto não experimentaram, e em geral mal viram.
Talvez o aspecto mais inesperado seja que, no fundo, as recentes conversas sobre pobreza tratem de outro assunto. Porque o tema delas é quase sempre política. Sem duvidar da integridade e da boa intenção do orador, temos de dizer que a finalidade imediata da retórica não é aliviar os pobres mas atacar o neoliberalismo, rejeitar a troika, derrubar o Governo, combater a reforma do Estado, o Orçamento ou outro decreto particular. A miséria serve de pano de fundo para manifestos doutrinais.
Este facto é muito desconcertante, por duas razões. Primeiro porque as medidas do Governo têm trazido sempre ressalvas nos rendimentos mais baixos. Como explicar então que, apesar disso, tantos protestem em nome deles? Mas a suprema estranheza advém de os defensores dos pobres se virarem para o Estado, que todos sabem ser há séculos um inimigo dos miseráveis.
Reis, imperadores e governantes nunca se interessaram pelos desgraçados, quando não os perseguiam. O poder não gosta dos pobres e estes confiam mais na ajuda do próximo que nas promessas dos chefes. Há muito que é a Igreja, não o Governo, a tratar dos necessitados. As coisas parecem diferentes na moderna democracia assistencialista, mas um velho princípio económico mostra a ingenuidade dessa ilusão.
Foi em 1970 que o prémio Nobel George Stigler (1911-1991) formulou, num dos seus textos clássicos, a lei que atribuiu ao colega da Universidade de Chicago Aaron Director (1901-2004): "Director"s Law of Public Income Redistribution" (Journal of Law and Economics, Vol. 13, n.º 1, p. 1-10). Esse teorema afirma que "as despesas públicas são feitas para o benefício primordial da classe média e financiadas com impostos suportados em parte considerável pelos pobres e pelos ricos" (op. cit. p. 1).
A sua base lógica advém naturalmente de, representando de longe a maior parte da sociedade, as classes médias atraírem naturalmente as graças dos eleitos.
Hoje Portugal, devido às imposições da troika, vive um corolário desta lei em condições inversas. Como nas décadas de endividamento os benefícios seguiram esse princípio, dirigindo-se para os extractos intermédios, agora é aí que cai o corte nas despesas. Aliás, a verdadeira razão da raiva extrema contra o Governo vem da pressão sobre a classe média, uma violação forçada da "lei de Director".
Assim se explicam as confusões dos discursos sobre pobreza.
A maioria dos que falam em nome dos desprovidos estão realmente a defender as classes acima, mesmo se nos extractos mais baixos. As medidas contestadas não tocam os verdadeiros pobres, geralmente alheios aos políticos, até de esquerda.
As greves dos serviços públicos não se destinam a proteger os desvalidos, que aliás são os que mais sofrem pela falta de transporte e outros sistemas.
Em Portugal não há manifestações de mendigos, miseráveis e necessitados. São antes os remediados, que se consideram carentes, que fazem as exigências em nome dos silenciosos.
Boa parte da retórica de contestação baseia-se neste mal-entendido, em que burgueses passam por infelizes. Entretanto, os verdadeiros desgraçados, mudos como sempre, ainda têm de ouvir os muitos aproveitamentos do seu nome.  
João César das Neves

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