sábado, 25 de janeiro de 2014

“O Macaco Gramático” de Octávio Paz


Se fosse vivo, meu pai faria hoje 113 anos. Recordação que permanece intacta, gostaria de lhe oferecer qualquer coisa de surpreendente, e o surpreendente para mim é este livro que estou a ler, do escritor mexicano Octavio Paz, “O Macaco Gramático”, prémio Nobel de Literatura de 1990, publicado pelo D.N,  numa iniciativa de extremo interesse, que me faz procurar, na fileira arrumadinha da estante, os livros que não conhecia e os poucos que conhecia e me fizeram retornar aos tempos da infância ou da adolescência das leituras do nosso contentamento. “O Livro das Lendas” de Selma Lagerlof, prémio de 1909, já fora encanto então, juntamente com a sua “Maravilhosa Viagem de Nils Holgerson através da Suécia” das leituras frequentes, ao longo dessa infância de liberdade e vigor. “O Drama de João Barois”, prémio Nobel de 1937, lido em francês, juntamente com os sete volumes de “Les Thibault”, no meu 7º ano, da estante do liceu, livros que assim que pude comprei, companheiros na viagem da vida. E Sartre, e Gide, e Pirandello, Camus ... “Histórias Maravilhosas do Oriente”, um livro de Pearl Buck, das nossas leituras da adolescência, este prémio de 1938, que não conhecia, e me fez recuar às miríficas histórias de fadas do universo encantado da infância. E Saramago, que admiro – não, contudo, o doentio “Ensaio sobre a Cegueira” do prémio de 1998. Confesso que vivi”, de Neruda, prémio de 1971, seria um livro que meu pai apreciaria, tal como amou o “Diário” de Torga, e outras obras suas, que tanto mereceriam o prémio, mas não teve o apoio de que Saramago usufruiu para o obter.

Estou prestes a acabar este livro de Octavio Paz  - “O Macaco Gramático” – e confesso que nunca lera uma obra tão orgíaca – orgia de linguagem, de descritivos, de argumentações paradoxais, de erotismos, de mutações, de transformações, de luxúria verbal, de delírio narrativo e filosófico e gramatical e poético, Babel de confusão de línguas e de vozes, de elementos de erudição assombrosos, resultado das suas muitas leituras, das suas muitas viagens, dos seus muitos estudos versando as mais diversas áreas, entre as quais a da linguística com a componente semântica, a filosofia, as religiões, a botânica, os costumes dos povos e sobretudo o da Índia... Um livro torrencial, que lembra o portentoso “Fausto” de Goethe na busca do saber e de Deus, ou “La Légende de Saint Julien l’Hospitalier” de Flaubert, ou mesmo Eça, sobretudo na sua “Lenda de Santo Onofre”, com temáticas parecidas da procura de Deus na variedade das religiões, e o sensacionismo e o panteísmo de Caeiro, e o sensacionismo exacerbado e provocante de Álvaro de Campos, e talvez o seu tédio e cansaço, na ironia analítica que de tudo descrê e põe em causa, que afirma e logo nega, e o surrealismo, e o sensorialismo, o realismo, e a luxúria absoluta de um discurso poderoso e absurdo de racionalismo ou sequer de troça. Talvez pura poesia transfiguradora em prosa, mesmo na sua função metalinguística.

Segundo “A Classical Dictionary of Hindu Mythology” por John Downson, M.R.A.S, em texto que precede o I dos 29 capítulos ou poemas de “O Macaco Gramático”, HANUMAN, é um macaco humanoide, chefe dos macacos, segundo a mitologia hindu exposta no Ramayana, macaco de perfeições e proezas, entre as quais o de gramático: “The chief of monkeys is perfect; no one equals him in the sastras, in learning, and in ascertaining the sens of scriptures...”

É certamente, o inspirador do narrador ou sujeito poético, nesta portentosa viagem de ida ao encontro de algo que poderá significar o seu reverso, no caótico  de um discurso circular, que afirma e se desdiz, discurso intangível, onde tudo é floresta de metáforas, e a figura do macaco surge representada nas estátuas que o povo baniano venera.

Alguns excertos:

I: O melhor será tomar o caminho de Galta, percorrê-lo novamente (inventá-lo à medida que o percorro) e sem  me dar conta, quase insensivelmente, ir até ao fim – sem me preocupar com saber o que quer dizer “ir até ao fim”, nem com o que quis dizer ao escrever esta frase.”

VI: “Manchas: moitas: borrões. Preso nas linhas, as lianas das letras. Asfixiado pelos traços, os laços das vogais. Mordido, picado pelas pinças, os ganchos das consoantes. Moita de signos: negação de signos. Pletora térmica em extinção: os signos comem os signos. A moita converte-se em deserto, algaraviada em silêncio: areais de letras. .....Moita: pululação homicida: baldio. Repetições, andas perdido por entre repetições, és uma repetição entre as repetições. Artista das repetições, grande maestro das desfigurações, artista das demolições. As árvores repetem as árvores, as areias as areias, a selva de letras é repetição, o areal é repetição, a pletora é vazio, o vazio é pletora, repito as repetições, perdido na moita de signos, errante pelo areal sem signos, manchas na parede sob este sol de Galta, manchas nesta tarde de Cambridge, moita e areal, manchas na minha fronte que congrega e desagrega paisagens incertas. És (sou) é uma repetição entre as repetições. É és sou: sou é és: és é sou. Demolições: estendo-me por sobre as minhas devastações, eu habito as minhas demolições.”

XXVIII: A visão da poesia é a da convergência de todos os pontos. Fim do caminho. É a visão de Hanuman ao saltar (gêiser) do vale para o pico do monte ou ao precipitar-se (aerólito) do astro até ao fundo do mar: a visão vertiginosa e transversal que revela o universo não como uma sucessão, um movimento mas como uma assembleia de espaços e tempos, uma quietude. A convergência é quietude porque no seu cume os distintos movimentos, ao fundirem-se, anulam-se; ao mesmo tempo, do alto dessa imobilidade, percebemos o universo como uma assembleia de mundos em rotação. Poemas: cristalizações do jogo universal da analogia, objectos diáfanos que ao reproduzirem o mecanismo e o movimento rotativo da analogia, são fonte de novas analogias. Neles, o mundo brinca ao mundo, que é o jogo das semelhanças geradas pelas diferenças e o das semelhanças contraditórias. Hanuman escreveu nas rochas uma peça de teatro, “Mahanataka”, cujo tema era o mesmo de Ramayana; ao lê-la, Valmiki temeu que esta ofuscasse o seu poema e suplicou-lhe que a ocultasse. O Macaco cedeu ao pedido do poeta, quebrou a montanha e lançou as rochas para o oceano. A tinta e a pena de Valmiki no papel são uma metáfora do raio e da chuva com que Hanuman escreveu o seu drama nos penhascos. A escrita humana espelha a do universo, é a sua tradução, mas igualmente a sua metáfora, diz algo totalmente diferente e diz o mesmo.....

Todos os poemas dizem o mesmo e cada poema é único. Cada parte reproduz as outras e cada parte é distinta. Ao começar estas páginas decidi seguir literalmente a metáfora do título da colecção a que estão destinadas, “Los Caminos de La Creación”, e escrever, traçar um texto que fosse efectivamente um caminho e que pudesse ser lido, percorrido como tal. À medida que ia escrevendo, o caminho de Galta apagava-se e eu desviava-me e perdia-me nos seus despenhadeiros. Vezes sem conta tinha de voltar ao ponto de partida. Em vez de avançar, o texto rodava sobre si mesmo. A destruição é criação? Não sei, mas sei que a criação não é destruição. A cada curva o texto desdobrava-se num outro, simultaneamente a sua tradução e a sua transposição: uma espiral de repetições e reiterações que se consolidaram numa negação da escrita enquanto caminho. Agora me apercebo de que o meu texto não ia a lado nenhum, a não ser ao encontro de si mesmo. ...................................»

Eis um pedacinho de um escritor que eu não conhecia e gostei de conhecer. Presente para um pai que permanece na fixidez da sua eternidade. Inesquecido.

 

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