sábado, 28 de dezembro de 2013

Máximas mínimas


É Florian o autor da fábula
«A lebre, os seus amigos e os dois cabritos»

Que vai ao encontro do soneto do nosso Camilo
Sobre os cento e dez ou talvez mais amigos que teve,
Dos quais só um restou quando cegou:

 «Uma lebre de carácter cordial
Queria ter muitos amigos.
“Muitos! - dir-me-eis vós, - eis que são demais
Já que um é raro neste país.”
Tal e qual!
Mas a minha lebre tinha esta mania,
E desconhecia
Que já Aristóteles, aos jovens gregos admitidos
Na sua escola, lhes garantia:
“Meus amigos, não há amigos”.

Continuamente ela se ocupava
Em obsequiar, em agradar:
Se um coelho ia a passar,
Com doce ar educado
Corria para ele: “Meu primo,
- Informava ela,
Perto da minha toca existe um belo tomilho
Faz-me o favor de vir almoçar comigo”.
Se via um cavalo no campo a pascer
Ia abordá-lo:
“Talvez monsenhor queira beber:
No sopé do monte conheço um lago transparente
Que nenhum zéfiro faz ondular;
Se monsenhor quiser,
Podê-lo-ei lá levar.”
Assim, para todos os animais,
Veados, carneiros, gamos, touros, corcéis,
Complacente, diligente, cheia de zelo e desvelo,
A lebre queria deles
Fazer amigos fiéis,
Deles se julgava amada, já que os amava ela.
Certo dia em que tranquila na sua toca dormia,
O barulho da buzina a acorda, estridente.
Foge precipitadamente
Com quatro cães atrás dela.
Um maldito açulador os excita;
Eis a nossa lebre calcorreando os campos.

Vai, gira, volta, passa e torna a passar,
Salta, longos espaços transpõe
Para transviar os cães, e rápida como um raio,
Ganha terreno, depois pára,
Sentada, as duas patas no ar,
Olho e ouvido em riste, levanta a cabeça.
Procurando algum dos seus amigos avistar.
Encontra na mata um coelho
Que sempre como irmão tratara;
Corre para ele: “Salva-me por piedade,
À minha miséria dá abrigo,
Abre-me a tua toca; estás a ver o terrível perigo …”
“Oh! Como isso me aborrece! - responde com ar tranquilo
O coelho. Não posso, neste momento
Oferecer-te o meu asilo:
A minha mulher está em trabalho de parto,
A sua família e a minha enchem o apartamento:
Lamento-te sinceramente, adeus, minha amiga.”
Dito isto, escapou-se;
E eis a matilha a ladrar.

A pobre lebre volta a fugir, alguns passos adiante
Um touro encontra, que eventualmente
Ela ajudara, conforme o outro lho pedira.
Ternamente lhe suplica
Que detenha a matilha em fúria,
A quem os seus cornos amedrontarão.
“Ai! - diz o touro, fá-lo-ia bem do coração,
Mas a mais bela das vitelas
Está sozinha no bosque, eu ouço-a que me chama,
E tu não queres que eu atrase a minha chama…”
Dizendo estas palavras, parte, precipitadamente.
A nossa lebre, sem fôlego,
Implora em vão a um gamo, um veado de dez esgalhos,
Os seus amigos habituais; eles mal a escutam,
Com medo do barulho das trompas de caça.
A pobre desgraçada, já sem força e sem coragem
Vai entregar-se aos cães, quando, do meio dos bosques,
Dois cabritos, deitados sob a mesma folhagem
Ouvem as vozes dos caçadores.

Um deles levanta-se e parte; a matilha sanguinária
Larga a lebre e corre atrás dele.
Em vão o picador arreliado
Grita e pragueja e se irrita; através da floresta
O cabrito leva a caça,
Faz um longo circuito, e volta ao bosque
Onde o esperava o companheiro,
Que no mesmo instante parte em seu lugar.
Este faz o mesmo e durante todo o dia
Os dois cabritos lançados e alternadamente revezados,
Fatigam a matilha obstinada.
Enfim, os caçadores envergonhados
Tomam o partido de abandonar a caça;
Já a retirada soa, e os dois cabritos se juntam.
A lebre palpitando, aproxima-se e conta-lhes,
Assim os felicitando,
Que os seus amigos numerosos, neste perigo extremo,
A tinham abandonado. “Não estou surpreendido,
- Responde um dos cabritos paciente:
Para quê tantos amigos?
Basta um só, quando ele nos ama realmente.”

 Nós por cá
Não temos razões de queixa
No que toca às amizades
Das nossas necessidades.
Costuma-se mesmo dizer
Que os amigos são para as ocasiões,
E não há válidas razões
Que contestem esta afirmação.
Pelo menos no que toca à nossa nação,
Em que os amigos de longa e até de curta data
Se interapoiam, diz-se, com muita lata,
Contestando esta outra máxima
Dos “amigos amigos, negócios à parte
Que é a dos amigos da lebre,
Ou, como quem diz, da onça,
De Peniche, ou de qualquer outro lugar
Segundo o nosso cepticismo habitual.
Para mais,
Vivemos numa época de solidariedade,
Não devemos descrer da amizade,
Jamais.
Muito menos nesta quadra do Natal
Em que um Menino nasceu para nos amar.
E se este Natal já passou, outro virá
Que o mesmo nos trará,
Segundo então se dirá.
Aristóteles é que antes d'Ele viveu
E por isso aos seus alunos ensinou
Que amigos não havia nenhum,
O que é pouco comum.
Outros filósofos, muito pelo contrário, 
Descreveram a amizade
Como resultante de virtude
E de um natural necessário.
De bons amigos está, pois, o mundo cheio
Vemo-lo a miúde,
No nosso meio.

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Mensagem para uma viagem


Do ameno Tejo até ao Danúbio azul

Vai Salles da Fonseca viajar

Para trazer notícias cá ao paúl

Que possam nossas mentes arejar.

Ou arear,

Que a fuligem que as cobre

É mais que muita num país de fome,

- Embora de origem nobre.

Boa viagem,

Boa estada junto a uma Merkel de sagaz imagem,

De trabalhadora séria sem miséria,

Dum país de febra

- Um país de fibra.

 

 

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

«Chiu»


Um título a glosar e a apoiar o artigo – «Sem Barulho» -
de Vasco Pulido Valente,
que dará o brado que merece,
tão justas e certeiras são as observações
neste seu quase diário mergulho
próprio de um espírito
extremamente clarividente,
como é
o de Pulido Valente,
sobre o que se passa com a gente:
Saiu no “Público” do dia 20,
décimo segundo mês,
deste ano do Senhor, 2013,
que para o ano será melhor
- se for.
É sobre mais um partido a formar,
neste nosso país de aquém mar
com algumas ilhas muito belas em redor,
por isso 2014 deverá ser
melhor:
um partido de mais uns tantos
Vencidos da Vida
que é o mesmo que dizer
de “barões assinalados”
que se propõem salvar
a pátria dos seus antepassados,
certamente que com graves almoçaradas
próprias do vencidismo e das mais patacoadas
a que nos habituámos
neste nosso reino lusitano
bacano.
Leiamos
para que saibamos,
na esperança de nos safarmos
com esse novo partido convencido
de que nos vai dar o paraíso,
embora de ambição semelhante
à dos fundadores de antigamente
- desde o 25 de Abril primaveril:

 «Sem barulho»

O Dr.Manuel Carvalho da Silva, depois de ter garantido na Rádio Renascença que não tencionava fundar um novo movimento político, assinou um papel em que se comprometia a fundar um “amplo” movimento político que apoiasse uma candidatura ao Parlamento Europeu. O Dr. Carvalho da Silva não é, evidentemente, obrigado a pensar hoje o que pensou ontem; e de toda a evidência nada lhe garantia ser o nº 1 de uma lista eventual do “Partido Livre”. Apareceu, assim, um manifesto, o “manifesto 3 D”, que oferece uma espécie de partido aos portugueses, desde “erradicar a pobreza” a “pôr fim aos resgates”, com esse ou outro nome. Não falta nesse caderno de encargos nada que um adolescente analfabeto não pudesse querer, excepto a ideia um pouco obsoleta de ressuscitar os mortos.

Os 3D do Partido Socialista em 1974 eram “descolonizar, democratizar e desenvolver”. Os 3D de hoje são “a dignidade, a democracia e o desenvolvimento”. Aparentemente, 40 anos não chegaram para o trivial, apesar dos fundos da “Europa” e muita parlapatice. Como os promotores do “movimento” dizem, e dizem bem, “é tempo” de tratar seriamente do caso. Infelizmente, a grande maioria desses promotores já tentou e já falhou na missão urgente de salvar a pátria. Vieram do PC, do Bloco, do PS, do vaporoso “Partido Livre”, mesmo do lúgubre PRD do general Eanes. Ou seja, arrastam atrás de si uma carreira de tristeza e fracasso, de inutilidade e arrependimento. Muitos estão, de resto, reformados e não se deviam meter em aventuras liceais, deviam ficar em casa a beber chá e a ler os livros que não leram.

O actual modo de vida dos “promotores” também não inspira uma especial confiança. Há dúzias de professores de Lisboa e de Coimbra, artistas de vária pena e pinta, um doutorando em “estudos de cinema” e um humorista. Mas ninguém, ou quase ninguém, ligado a uma empresa, ou a uma câmara, ou a qualquer serviço da administração central. O “programa” do “manifesto” mostra esta ignorância essencial. Parece que os “promotores” imaginam que a sua vontade só por si, reunida, por exemplo, num hotel ou no Teatro Trindade, basta para mudar o mundo e o país. Não basta, como é óbvio. Bastará talvez para eleger Manuel Carvalho da Silva (ou um anónimo solitário) deputado ao Parlamento Europeu, onde o mandarão calar como ele merece. A esquerda “sem filiação” devia arranjar outra maneira de se entreter. Sem barulho.

 Eis uma lição magistral -
mais uma - que nos ensina,
- tal como o fado fatal -
histórias da nossa sina.
Só duvido do “arrependimento
dos promotores do tal movimento.
“Se bem me lembro”,
nunca ninguém o afirmou,
nem se enforcou
na figueira da sua penitência,
como o Judas da outra pendência.
Paciência!
Mas concordo com o “chá
e com os livros nunca lidos
pelos falsos arrependidos
e mais etc. e tal.
Peço perdão pela escolha
do verso da minha sina,
duma rima pequenina,
risonha e livre
de arabescos belos.
Usei-o como um brinquedo, afinal,
Trazido pelo Pai Natal
só para mandar o meu "chiu"
a tanto piu piu.

 

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

O império dos sentidos, ou quando um Nuno Crato é derrotado por um Mário Nogueira


Sou das pessoas que admira Nuno Crato desde que li o seu livro «O “Eduquês” em discurso directo» que me mostrou uma figura intelectualmente séria, ao lançar várias pedradas no charco de um ensino de mediocridade, politizado e dogmático, criador de insucesso, um ensino que descambara numa formação teórica de lugares comuns vazios de conteúdo e de rigor intelectual - como os tais slogans do “ensino centrado no aluno”, da “aprendizagem em contexto”, dos “saberes paralelos” do professor e do aluno, desrespeitadores do conhecimento verdadeiramente científico, um ensino piegas e redutor, responsável pelo caos escolar em que se transformou o ensino em Portugal, com as sucessivas políticas pedagógicas despidas de seriedade, favorecedoras do laxismo, da indisciplina, do desrespeito, da arrogância pueril.

O livro de Nuno Crato, bastamente documentado, volta a frisar a necessidade de avaliações finais em vários momentos da frequência escolar – 4º, 6º, 9º, 12º anos – acentua a impreparação de muitos alunos universitários, faz afirmações de escrúpulo intelectual reveladoras de preocupação pedagógica num país indecorosamente desleixado na formação escolar. Como a seguinte: “É preciso centrar forças nos aspectos essenciais do ensino, ou seja, na formação científica de professores, no ensino das matérias básicas, na avaliação constante e na valorização do conhecimento, da disciplina e do esforço.”

São verdades de autenticidade, libertas da demagogia mentirosa e soez de arengadores como Mário Nogueira, verdades de um espírito cultivado em países de produção e cultura, como os Estados Unidos, onde trabalhou, e que pretende impor no seu país de arengadores e batoteiros. Mas não o consegue, que “os eduquês” estão enraizados em nós, seguindo no rasto de Rousseau e dos teóricos simplistas de uma educação de “escola aberta”, que queda ao nosso comodismo e desinteresse intelectuais.

Mas um país que aceitou subscrever um Acordo Ortográfico de um absurdo sem paralelo, e até com admissão facultativa de casos de dupla grafia, não deve preocupar-se tanto com os erros ortográficos e a falta de bases dos professores saídos da universidade. Por isso, os esforços de Nuno Crato em exigir mais rigor e mais competência, por meio de exames definidores de saberes, está condenado à partida. Que importam os erros ortográficos, se a minha língua me permite escrever o pretérito perfeito “chamámos”, “amámos”, … com acento ou sem ele, à escolha do freguês? Se outro slogan usámos do nosso “eduquês”, o da “pedagogia do erro” que, mais do que punitivo ou exigente de correcção imediata, parte do velho princípio do “errare humanum est” e o torna permissivo no “ensino-aprendizagem” (novo slogan do eduquês) até o aluno se decidir a eliminá-lo, segundo o princípio do “aprender errando”, (mais um).

Eis o motivo por que subscrevo – com mágoa – o artigo “O chumbo de Nuno Crato” de João Miguel Tavares, saído no Público de 17 de Dezembro, com o sobretítulo “O respeitinho não é bonito”:

«Em Portugal, existem 160 mil professores que constituem a corporação mais poderosa do país: são muitos, prestam um serviço fundamental e constitucionalmente protegido, têm uma formação académica elevada, estão bem organizados, possuem acesso privilegiado aos meios de comunicação e os efeitos das suas greves têm um enorme impacto social.

Isto significa que o poder que possuem não é fruto do acaso, mas de um conjunto de atributos únicos, característicos da sua profissão e dificilmente amovíveis, que faz com que tocar nos seus direitos adquiridos seja sempre uma actividade arriscada para qualquer Governo e uma tarefa penosa para quem está à frente do Ministério da Educação.

Em simultâneo, o sindicato todo poderoso do sector só concorda com a mais microscópica alteração no “statu quo” quando o cometa Halley é visível da Terra. Estou certo, aliás, que Mário Nogueira partilha com os pilotos-aviadores da Segunda Guerra Mundial o hábito de colocar uma marca na fuselagem de cada vez que consegue abater um ministro da Educação. Nuno Crato, o homem que um dia sugeriu a implosão do edifício da 5 de Outubro, com certeza conhecia tudo isto de cor e salteado quando aceitou ser ministro. E, em 2011, já depois da sua nomeação, não poderia ter sido mais claro no Parlamento: “O ministério é uma máquina gigantesca que se acha dona da educação em Portugal. Eu quero acabar com isso.” Alguns milhões de portugueses assinariam essa frase por baixo. Incluindo muitos professores.

Mas se Nuno Crato não poderia ter sido mais claro, poderia – e deveria – ter sido muita outra coisa que até agora, espantosamente, não foi: um ministro prudente, inteligente, ponderado e justo. De facto, aquilo que ele tem vindo a implodir nos últimos anos não é o Ministério da Educação, mas sim o seu capital de prestígio junto dos professores – muitos dos quais o admiravam. E pouca coisa é mais exemplar desse desnorte do que esta malfadada prova de avaliação para docentes, que amanhã promete vir a dar confusão um pouco por todo o pais. Pior do que ser ministro e não mudar nada, só mesmo ser ministro e mudar o que não interessa: apanha-se pancada na mesma e as coisas não melhoram.

Não está em questão o direito de criar uma prova exigente, de acesso à profissão. Simplesmente, a solução encontrada é um triplo escândalo: 1) é uma prova com efeitos retroativos, humilhando quem já exerce há anos a profissão; 2) apenas abrange os docentes com a situação contratual mais frágil, acentuando a sua discriminação em relação a quem está no quadro, esse eterno oásis do funcionalismo público; 3) o acordo assinado com a FNE, que dispensa da prova (ou talvez não dispense, a teoria divide-se e os legisladores têm dificuldades com o português) quem já tem mais de cinco anos de serviço, é um vergonhoso tributo à máxima “a antiguidade é um posto”, que reduz o mérito do exercício de uma profissão à contagem de folhas de calendário.

É preciso ser-se mesmo muito mau ministro para, numa discussão com Mário Nogueira, perder a razão para Mário Nogueira. Mas foi precisamente isso que Nuno “Implosão” Crato conseguiu com esta prova moralmente injusta – porque atinge apenas os mais fracos – e politicamente idiota – porque humilha os professores sem necessidade. Deus nos livre, pois, dos iluminados, que, por acharem que sabem perfeitamente para onde vão, fecham os olhos a todas as injustiças que lhes aparecem pelo caminho.»

 Realmente, não basta ser-se intelectualmente bem artilhado e desejar criar caminhos de elevação cultural no país. Eça e a chamada “Geração de Setenta” também se esforçaram nesse papel de modernização que trouxe mudança e vitalidade, o mesmo tentariam os poetas do Primeiro Modernismo, mas são “missões” individuais, esporádicas, que, dando prestígio ao país, não conseguem forçar a deprimente crosta de miserabilismo intelectual e físico que os governos ajudam a criar, quer por aperto e restrição quer por esbanjamento, neste último caso, do que não nos pertence.

A escola pós 25 de Abril, falseando o seu papel de orientação com medidas de desorientação, como as que Nuno Crato aponta no seu livro «O “Eduquês” em discurso directo», não vai mudar um percurso em que a maioria dos professores foi educado. Vivemos em democracia  e o papel da liberdade  é bem superior ao da compostura, segundo a reflexão.

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Razões, alvitres… nada



É justo que Vasco Pulido Valente escreva sobre Passos Coelho como escreve. É inteligente e sabe traçar o perfil, como tantos fazem, do homem que não se compromete, que é duro no caminho que traçou, que é inconsequente e inconsistente nas afirmações que faz. Todos nós queremos respostas imediatas sobre as expectativas que ora são criadas, ora são desfeitas, sabendo nós que o pobre Passos Coelho gira ao sabor das ondas que lhe são impostas, e no interesse primeiro de se desfazer de uma dívida sem o que, ficaremos de mãos e pés e corpo atados para prosseguir num caminho de escrúpulo e rectidão de que nunca deveríamos ter saído. Mas entristece-me que Vasco Pulido Valente não demonstre mais compreensão na defesa de um homem que, ao que parece, foi imprescindível na libertação de um país afundado na iniquidade, e alinhe na violência e garotice dos que o vão cravejando com as suas setas venenosas, muito sabedores, pouco generosos, não querendo compreender, parecendo ficar extasiados com as descobertas das suas próprias inteligências sobre os procedimentos dos do governo, que logo definem como ridículas ou de ocultos propósitos eleitorais, em tudo vendo inépcia e crime, felizes nas suas definições e nas suas troças, sem reflectir que as dívidas são para se pagar, por muito que as directivas europeias pareçam injustas, violentas e discriminatórias, e que é esse o propósito primeiro de políticas que visam dar credibilidade ao país para que se possam aplicar as do desenvolvimento e da desobstrução.
Todos nos extasiámos por o Tribunal de Contas ter chumbado a proposta do corte orçamental que Passos Coelho se propunha efectuar. Mas já muitos se encarniçam à volta da próxima alternativa governativa para satisfazer o compromisso salvador da nossa estabilidade, dispostos a preteri-la, com manobras de arreganho para fazer rolar as cabeças cimeiras e mutilar mais o país. É ouvi-los e vê-los, cheios de razões de violência contra os governantes, num vomitório sem nexo, pois sabem bem quanto são falazes os discursos de vitupério nas condições que vivemos, de exigência de pagamento pelos do FMI, sem cedências de facilitação!
Por isso, o artigo de Vasco Pulido Valente, - “O futuro a Deus pertence – por muito certeiro que pareça na caracterização do PM e das suas reticências esclarecedoras ou atitudes ambíguas de animal acossado e manietado, segue uma via de negativismo com igual efeito perverso ao da dos demais difamadores, cego às consequências destrutivas de um edifício pátrio assente sobre alicerces periclitantes e que, ao que parece, preferimos ver tombar de vez, no inchaço do nosso exibicionismo palreiro ou da nossa avidez de comando. Saiu no “Público”, em 14/12:
«Assisti anteontem, com grande dedicação profissional, e grande paciência, à entrevista do sr. primeiro-ministro à TSF e à TVI. E assisti também ao parlatório das cabecinhas de serviço, que tentaram extrair um vestígio de sentido ao que tinha sido dito e redito pelo nosso adorado guia.
Mas Pedro Passos Coelho, com o seu arzinho de menino que aprendeu bem a lição, não saiu da cartilha do costume, provavelmente para não se meter em mais sarilhos, daqueles que o PS gosta de rilhar no seu covil. Com a maior prudência, não prometeu nada, não explicou nada e nem sequer previu fosse o que fosse. Ficou no quarto escuro da banalidade ou da irrelevância e levou o país com ele; nem uma luzinha, bruxuleante ou não, brilhou naquela deprimente melancolia. O PSD retirou deste estado semicomatoso que o homem estava calmo.
Às perguntas substanciais, Pedro Passos Coelho respondeu sempre que o futuro a Deus pertence. As decisões do Tribunal Constitucional pertencem a Deus, como o défice e a dívida, como o crescimento, como o programa cautelar, como a vida da gente que anda por aí sem vida. O Altíssimo, a seu tempo, resolverá tudo e ele, um simples primeiro ministro, não quer exceder as suas competências. Deixou, por exemplo, de embirrar com o Tribunal Constitucional, coisa que sem dúvida, o tribunal lhe agradece desvanecido. Não comentou a política do dr. Cavaco, ou a ausência dela, para não tocar em tão alta e veneranda personagem. Até o comportamento errático da srª Christine Lagarde não lhe mereceu mais do que o adjectivo moderado de “estranho”, como se a senhora aparecesse com um chapéu novo ou o desafiasse para um passeio a Sintra.
Nem a pequena intriga partidária em que se criou conseguiu que ele acordasse para a realidade. Acha Rui Rio e o resto dos protestatários do partido um magnífico “activo” a não perder. E acha prematuro que se discutam agora as “listas” para a Europa. As relações dele com Paulo Portas são hoje um mar de rosas: nem Portas lhe tenciona criar o mais vago problema; nem ele a Portas. Principalmente a propósito de algumas sinecuras sem consequência. Quanto ao resto, o primeiro ministro pensa que este seu mandato consolidou as finanças, modernizou a economia e nos preparou para voos que espantarão o mundo. Existe, é claro, a difícil questão do desemprego e da miséria geral. Mas basta saber somar e subtrair, como assevera o dr. Medina Carreira: onde imaginava a pátria que ele podia arranjar o dinheiro, senão nos bolsos de quem o tinha? E com certeza um dia destes desaparece: o futuro a Deus pertence.
“Arranjar o dinheiro, senão nos bolsos de quem o tinha”: pergunto-me o que fariam o Dr. Medina Carreira ou o Dr. Vasco Pulido Valente e todos os mais doutores arengadores onde iriam eles colher o dinheiro, que artes e manhas seguiriam, caso fossem governo, a não ser aos bolsos dos contribuintes.
A difícil questão do desemprego e da miséria geral”: não vale a pena empolar tanto a questão da miséria, num país de tantos carros e de carrinhos de supermercado abarrotando, a qualquer hora. Quanto ao desemprego, é bem um fenómeno geral, tem a ver com uma conjuntura mundial migratória também, de povos fugindo às suas próprias misérias. No nosso caso, tem a ver com a velha dívida a pagar. Voltamos ao mesmo.

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Ó Rio das águas claras



«O presidencialismo» é o título do artigo subtilmente acutilante de Vasco Pulido Valente, saído no «Público» em 13/12, sobre Rui Rio.
Muitas vezes ouvi Rui Rio, e sempre numa seriedade de rejeição, mau grado o sorriso constante nele – um sorriso hirto, fugidio, que não convencia, num rosto de importância e auto suficiência a esclarecer sobre o bem que ele criava em seu redor, aquando do seu desempenho no cargo de presidente da Câmara do Porto, em contraste com outros rivais de cena, igualmente ambiciosos e com truques de progressão na carreira que ele não precisou nunca de utilizar por se sentir o melhor de todos.
Há dias escutei-o novamente, com a boca cheia de bazófias e mais sorrisos fugidios perante a maralha dos que o analisam, e a minha alergia foi idêntica à  que sentia nos seus tempos camarários, de par com Meneses, da Câmara da Gaia.
O artigo de Vasco Pulido Valente traça bem o perfil desse homem que, aparentemente defensor dos princípios de uma democracia centrista, na realidade sempre se regeu por considerandos de desprezo pelo parlamentarismo apoiado no pluripartidarismo, porque se considerou provavelmente apto para assumir sozinho um governo “uniárquico”, assente sob o poder de um só, cargo para que talvez sempre se tenha achado com vocacão, tal como o tal rio das águas claras que vai correndo para o mar, segundo a canção de Clara, a pupila do Sr. Reitor, irmã da enjeitada e sempre triste Margarida do nosso Júlio Dinis. E assim vai o Rio, aparentemente de águas transparentes e cristalinas, a correr para o seu mar largo, imperturbável, como também corriam aqueles outros “espertos regatinhos”, que, na caminhada para Tormes, de Jacinto e de Zé Fernandes, “fugiam rindo com os seixos, de entre as patas da égua e do burro” - as nossas - no rio do esperto Rio, que nada de construtivo aponta, no vago e ambíguo discurso do seu espírito vaidoso e pobre:
“O presidencialismo”
«Rui Rio acabou de condenar o regime político em que vivemos. Condenou a justiça e os partidos (e, não se percebe porquê, foi omisso sobre as forças de segurança).
Os partidos, na opinião dele, que se estão dia a dia a “afunilar”, trabalham para si próprios e não para o país. Para isto, Rui Rio propõe que eles se “abram” à sociedade, uma velha panaceia sem qualquer espécie de sentido, e que se instituam eleições primárias para a escolha de candidatos. Não lhe ocorre aparentemente que eleições primárias iriam estabelecer o caos, com o “cross vote” da oposição no candidato mais fraco do outro lado. Mas sem estas fantasias, Rui Rio acha que não se conseguirá evitar uma “ditadura sem rosto”, uma pura “ausência de democracia”, nada parecida com o salazarismo, mas talvez como o salazarismo em estado larvar.
Os regimes parlamentares não têm dado muito bom resultado em Portugal e o ódio aos partidos, que hoje vai crescendo, não difere em essência do ódio aos partidos na última República espanhola, na França da III República e nos tempos que precederam o “28 de Maio”. Só que a pregação nessa altura, como agora, não representou qualquer espécie de reforma e levou tranquilamente ao Estado Novo cá em casa, a uma guerra civil em Espanha e a uma guerra civil em França. Rui Rio não proclama que a presente crise “não é económica”, “é política”. Infelizmente, quando chega ao momento de oferecer soluções, ele, um político, não avança mais do que com ideias vagas, contraditórias, por exemplo a de que são necessárias mudanças na Constituição e a de que não são) e, em geral, uma crítica fluida e obscura às desgraças por que passamos.
Uma palavra nunca aparece na boca das notabilidades, de direita ou de esquerda, que se opõem a este governo, e essa palavra é muito simples: presidencialismo. Em 1976, o parlamentarismo constituía de facto um obstáculo à supremacia militar e a um pequeno régulo saído do exército com apoio dos restos da ditadura e de uma social democracia branda e bem comportada. Em, 2003, não existe nenhum desses perigos de 76, que foram substituídos pelo fracasso dos partidos, (que os portugueses quase universalmente desprezam ou detestam) e pela infindável série de erros que nos trouxe miséria. Um Presidente executivo apoiado por uma larga parte da população (embora sob a vigilância de uma Assembleia da República) estabeleceria quase com certeza a estabilidade institucional e legal que tanta gente pede – com Rui Rio à frente. Mas nesse ponto ninguém se atreve a tocar.»

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Paralelo

Saramago escreveu um livro com este título que me parece uma experiência doentia proveniente de um espírito doente e banhado de gozo, que se alcandora a um posto de demiurgo poderoso e impoluto, para criar de um universo de latrinária onde todos chafurdam sob o seu óculo malignamente atento, e maldosamente deprimente e punitivo.
O “Ensaio sobre a Cegueira”, de João César das Neves, não pretende amarfanhar, mas instruir. As verdades que diz são reais, não são ficção mentecapta. Infelizmente não são assimiláveis pela maioria. Queremos acreditar nas informações do Governo de que podemos ter esperança, mas logo lhes saltam em cima com idênticos discursos de ataque e derrotismo, sem vontade de desenterrar o país do caos criado por todos, com maior responsabilidade de alguns. Por isso o texto de João César das Neves deprime mais do que o de Saramago, que é ficção de mente doentia, para ignorar. O de César das Neves é para meditar.\Afinal, fede mais do que o primeiro. Porque é real.

ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA

Um povo ama intensamente as suas ilusões.
Poucos querem saber a verdade acerca do que repetem com convicção sabendo, no fundo, ser falso. A sociedade moderna é aberta e tolerante, aceitando com bonomia multidões de heterodoxos e rebeldes. Mas revelar a realidade é intolerável, merecendo insulto e agressão, pois nada é tão repudiado como a voz da consciência.
A triste situação dos últimos anos é disso prova evidente. Portugal viveu décadas de grandezas a crédito, que só podia acabar numa crise terrível. Agora, quando a inelutabilidade da dívida nos apanhou, inventamos novas ilusões para nos eximirmos às responsabilidades e justificarmos a raiva contra os cortes inevitáveis. E ai de quem desmascarar essas tolices!
A perversa ilusão dos últimos vinte anos é hoje evidente. Qualquer observação honesta revela que um buraco deste tamanho só podia existir com cumplicidade de todos. Os gastos ruinosos foram repetida e democraticamente sufragados pelos eleitores. Todos beneficiámos e aplaudimos com vigor. Os avisos de insustentabilidade dos défices eram crescentes, de organizações internacionais e especialistas domésticos. Até ao último momento ninguém quis saber. Dias antes do fatídico 6 de Abril de 2011, a todos os níveis da sociedade, cada um ainda negava a exigência de mudar a sua vida.
Quando o choque rebentou e a primeira ilusão morreu, houve duas reacções. O povo em geral abriu os olhos e mudou mesmo de vida. Tem sido espantoso ver a atitude de famílias e pequenas empresas, que no meio de enormes sofrimentos, se desembrulham da terrível situação. Mas nas elites foi urgente construir novo mito que permitisse depositar a culpa em porta alheia, justificando os protestos. Afinal éramos todos inocentes e a maldade vinha de um punhado de corruptos incompetentes e da troika que nos ajudava. Esta segunda fantasia, em que todo o aparelho político-mediático anda apostado desde então, constitui uma magna operação de desinformação. E que se livrem de a contrariar!
O Estado, câmaras e instituições fazem o mínimo de reformas possível, esperando que tudo passe para se voltar ao mesmo. Grandes empresas, próximas do poder, gravemente atingidas pelas tolices antigas, aparentam uma normalidade oca. Em particular a banca, óbvia protagonista da crise financeira, assobia para o lado, empurrando o buraco com a barriga. A oposição, grande responsável da crise, grita indignada como se lhe fosse alheia, sem realmente apresentar uma verdadeira alternativa à austeridade. Apesar dos disfarces, a patente incapacidade de todas estas entidades em cumprir as suas funções sociais mostra a gravidade da situação.
Funcionários, médicos, professores e muitos outros grupos profissionais, que tanto ganharam nos anos fáceis, tinham de conhecer a trajectória ruinosa que os seus sistemas seguiam. Só com enorme cegueira voluntária podem agora indignar-se perante os cortes de despesas insustentáveis que acumularam diariamente sem denunciar. Pensionistas, subsidiados, munícipes e utentes quiseram acreditar nas benesses que políticos irresponsáveis lhes concediam, apesar de os défices funcionais mostrarem a evidência do embuste. Não só os aceitaram mas erigiram-nos em direitos inalienáveis, apesar de muito superiores às receitas e liquidados por dívida externa. Agora, dizer-lhes que os seus descontos não garantem os níveis prometidos gera fúrias incontroláveis. Os realistas têm de ser corruptos, neoliberais, hipócritas ou mentecaptos, pois nada é mais negativo do que a sinceridade num povo embevecido pela ilusão. A verdade é crime de lesa-pátria.
Neste mito colectivo a explicação comum para os cortes indispensáveis é que o Governo é perverso e incompetente e os parceiros europeus oportunistas. Estes, que nos emprestam uma fortuna no fundo do nosso buraco, são criticados pela sua solidariedade, pois exigem-nos aquilo que tínhamos de fazer de qualquer maneira. Deste modo um país de inocentes busca explicações mirabolantes para o mal que criou. Pois não há maior cego do que o que não quer ver.
25 de Novembro de 2013
JOÃO CÉSAR DAS NEVES

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

“Camões, grande Camões”


Foi um texto que escrevi aos trinta anos, encontrado entre os papéis salvos da reciclagem. Admirava Camões, lera-lhe o teatro e espantava-me como nas escolas os manuais de literatura não fornecessem sequer um cheirinho das suas qualidades como dramaturgo, ou ao menos integrassem versos da sua dramaturgia – essencialmente lírica e psicológica – entre os seus poemas líricos de estudo obrigatório. Não é um estudo circunspecto, projectando o estudioso tanto quanto a obra estudada. Trata-se de uma análise sem rebuscamentos, como narrativa inspirada subjectivamente na admiração e no encantamento por um génio que nos pertenceu, motivo do nosso amor e do nosso orgulho. E assim transcrevo o texto, do blocozinho que com tanto gosto encontrei, (onde o Ricardo, com sete anos, escreveu também uma carta ao vovô, datada de 65, e a Paulinha, com cinco, escreveu pá, pé, pi, po, pu, umas contas de somar e também um desenho) Fiz, naturalmente, alguns ajustamentos ao texto, para guardar no meu blog e reviver:

«Camões dramaturgo»

«… Espírito verdadeiramente humanista, manejando com facilidade os clássicos latinos, e capaz de abarcar todos os aspectos de uma cultura, quis Camões ensaiar-se igualmente no género dramático, onde, se não atingiu as culminâncias dos outros géneros literários a que se dedicou, não deixamos, em todo o caso, de sentir bem presente a sua personalidade literária inconfundível.
São três as comédias que escreveu. O “Auto dos Anfatriões” o “Auto de El-Rei Seleuco” e o “Auto de Filodemo”. Se o primeiro é directamente inspirado no “Amphytruo” plautino, e o segundo de um episódio narrado por Plutarco na “Vida de Demétrio”, o “Auto de Filodemo” desliza no rasto do teatro vicentino de carácter novelesco.
Trata-se, pois, de um teatro romanesco, um teatro de Amor, de intriga resultante quer de equívoco – “Anfatriões”- quer de incesto – “El-Rei Seleuco” – quer de diferenciação social – “Filodemo”. Não é nele visível a crítica social que marcou o teatro vicentino - embora exista intenção crítica sobre a dialéctica amorosa - nem de profundidade caracterológica, como, um século depois, encontraremos na comédia molieresca em França.
Apesar dos temas clássicos de duas delas, e apesar dos novos ventos classicistas contrários ao uso da redondilha, como já Sá de Miranda e António Ferreira tinham salientado nas comédias em prosa, que escreveram, e na tragédia “Castro” do último, em decassílabo branco, é entre os cantares na medida velha que se incluem os autos camonianos, embora os dois últimos sejam entremeados de prosa e verso. E o lirismo das suas peças tem a mesma leveza e graciosidade e a mesma subtileza na análise do sentimento amoroso, que apresentam as suas cantigas à maneira tradicional. De facto, a essa característica psicológica se resumem, quase unicamente, os conceitos expressos, excluída a intenção de crítica social, embora não o cómico resultante das situações de quiproquó, já existentes na peça de Plauto.
De notar ainda a sua maior unidade em relação às peças de Gil Vicente, unidade proveniente do maior conhecimento que possuía Camões da estrutura das peças clássicas, conhecimento que escapava a Gil Vicente, mas também resultante dos temas de duas delas - de importação – “Anfatriões” e “El-Rei Seleuco” – e focando casos que tinham forçosamente que se deslindar dentro de um prazo limitado de tempo (um dia, segundo a regra clássica das três unidades –( o lugar era convencionalmente o mesmo e a acção sequente e coesa, segundo uma estrutura interna de Exposição, Conflito e Desenlace - a estrutura externa, de várias unidades sequenciais num único acto, como o próprio nome “auto” traduz). Em todo o caso, a unidade de acção não é absoluta, não só pelas cenas em prosa de função vária, mas pelos episódios secundários entre os servidores dos amos, desnecessários para o desenvolvimento da intriga central, embora se tornem natural fonte de cómico. Também no “Auto de Filodemo” não se observa a unidade de lugar, pelo posicionamento da acção em dois espaços.

«Auto dos Anfatriões»

Directamente inspirado do “Amphytruo” de Plauto, o “Auto dos Anfatriões” expõe um tema muito aproveitado pelos comediógrafos clássicos, ou mesmo contemporâneos – Molière, Giraudoux… – ou a “ópera” jocosa do nosso Judeu, “Anfitrião” ou “Júpiter e Alcmena”, do século XVIII. Também a peça “Um Deus dormiu lá em casa” (1949) do escritor brasileiro Guilherme de Figueiredo se inspira no tema, mas alterando jocosamente os dados.
A intriga do auto fundamenta-se, como já na comédia plautina, em um equívoco resultante das semelhanças de dois Anfitriões e de dois Sósias. Esse equívoco é provocado pela paixão de Júpiter por Alcmena - fiel esposa de um general tebano, ausente na guerra – o qual, industriado por Mercúrio, reveste os traços daquele, enquanto, para maior mistificação, Mercúrio adquire os de Sósia, criado de Anfitrião, igualmente na guerra.

É evidente que tal dualidade se prestaria a forte manancial de gargalhadas resultante da estupefacção das personagens reais, ignorantes do quiproquó, sobretudo quando se defrontassem os criados ou mesmo os amos, ou quando se pusessem os dois Anfitriões na presença de Alcmena, caso este que em Camões se não observa.

Exposição:
Entra em cena uma Alcmena enamorada, exprimindo as suas saudades do marido, numa análise de finura psicológica e linguagem conceituosa, pelo paralelismo e o trocadilho:

“Ah! Senhor Anfitrião,
Onde está todo o meu bem!
Pois meus olhos vos não vêem
Falarei com o coração
Que dentro n’alma vos tem.
Ausentes duas vontades,
Qual corre mores perigos,
Qual sofre mais crueldades:
Se vós entre os inimigos,
Se eu entre as saudades.
Que a Ventura que vos traz
Tão longe da vossa terra,
Tantos desconcertos faz,
Que se vos levou à guerra,
Não me quis deixar em paz.”

 Segue-se o diálogo com Brómia, sua criada, num papel de amiga e conselheira - muito generalizado no teatro clássico, para efeito de economia da intriga - a qual exprime observações de um conceito simples mas não banal:

 “Que nunca se viu prazer
Senão quando não se espera”

 “Que a verdadeira afeição
Na longa ausência se prova.”

 A cena entre Brómia e o criado Feliseu, chamado para ir saber novas do amo, enquanto Alcmena ofertará sacrifícios aos deuses pelo marido, em nada contribuirá para a compreensão do nó da intriga. É uma cena secundária, movimentada no diálogo, em que Camões põe em jogo as suas qualidades de diletante do sentimento amoroso, cheio de esquivanças, de zelos e de traições dos namorados.

Um Júpiter muito humano, preso de uma paixão terrena, exprime pateticamente a insensatez dos seus amores, tão inferiores à sua dignidade de pai dos deuses, enquanto ingenuamente observa a sua incompetência para quebrar a virtude de Alcmena. A solução dá-lha o industrioso Mercúrio, por meio de um processo de transformação fácil para o deus soberano: o de revestir as formas de Anfitrião enquanto ele, Mercúrio, tomará as de Sósia. E o ardente namorado, pouco escrupuloso, resolve pôr imediatamente em prática tal estratagema, só estranhando não se ter lembrado dele, atribuindo o facto à cegueira proveniente do seu muito amor:

 Quem arde em tamanho fogo
Tira-lhe a virtude a cor
De subtil e sabedor;
E quem fora está do jogo
Enxerga o lanço melhor.”

Segue-se nova cena secundária, em que Calisto e Feliseu discutem sobre amores e arte de trovar.

 Conflito:

Júpiter e Mercúrio, já transformados respectivamente em Anfitrião e Sósia, analisam os últimos pormenores da mistificação. Surge Alcmena que, naturalmente, mal pode crer nos seus olhos:

 “Vejo eu Anfitrião
Ou a vista me afigura
O que está no coração?”

 Mas Júpiter/Anfitrião desfaz-lhe as dúvidas, numa linguagem preciosa e galante.
É cheia de chiste a cena com o verdadeiro Sósia, que leva a Alcmena um aviso da chegada de Anfitrião ao porto de Tebas.
Notemos, a propósito, a necessidade de, para maior unidade da peça, o verdadeiro Anfitrião regressar nesse dia – desse modo a acção decorrerá no tempo requerido pelas regras da unidade clássica.

 Sósia, feliz, volta da guerra, entoando cânticos sobre a bravura de Anfitrião – ele que é um poltrão – quando lhe sai ao encontro Mercúrio disfarçado em Sósia. Facilmente o astucioso deus o consegue convencer – se não com argumentos ao menos com pancadas – de que o verdadeiro Sósia é ele, Mercúrio. E o pobre Sósia, perplexo, duvida de si, da sua própria razão:

 «Pues luego, si yo no soy yo
Aunque nadie me mató
Soy luego cosa ninguna.
Oh! Dioses, que desconcierto!
Yo por ventura soy muerto,
Ó murió me la razón?
Yo no soy de Anfitrión?
El no me mandó del puerto?
Yo sé que no estoy loco.
De mi madre no nací?
No ando? No hablo aquí?»

 E a seguir:

«Quién seré de aquí adelante
Pues no soy quien de antes era?»

A perplexidade de Sósia, a perda da sua própria identidade, tornam-se magnífica fonte de cómico. Observemos que, ao contrário do criado, nunca Anfitrião perde a consciência da sua personalidade, julgando-se vítima de um engano. Da mesma forma é cheio de comicidade o diálogo entre um Sósia desvairado por não ser ele, e Anfitrião, intrigado com a falta de siso do criado.

O encontro do verdadeiro Anfitrião com Alcmena teria forçosamente que provocar melindres entre os cônjuges: Anfitrião, porque esperava um acolhimento mais expansivo da parte de Alcmena, que há tanto tempo não via, e Alcmena porque não compreendia os exageros do marido, que há poucos momentos a deixara. E ao ser informado da noite que passara com a sua própria mulher, fica furioso e resolve ir à nau buscar o patrão Belferrão, como testemunha idónea de que passara a noite no barco. Mas Alcmena, inocente e cônscia da sua verdade, afirma:

 «Nenhuma coisa me obriga
A que não creia o que vi.»

Pouco depois de Anfitrião se ter retirado, aparece Júpiter/Anfitrião que, com suaves argumentos consegue abrandar os despeitos da ofendida Alcmena.

Traduzindo o próprio pensamento céptico camoniano, um Anfitrião desencantado da vida exprime considerações pessimistas sobre o desconcerto que preside aos bens deste mundo:

«Quis-nos nossa natureza
Com tal condição fazer,
Que já temos por certeza
Não haver grande prazer
Sem mistura de tristeza.

 Este decreto espantoso
Que instituiu nossa sorte
É tal e tão rigoroso
Que ninguém antes da morte
Se pode chamar ditoso.
Com esta justa balança
O fado grande, profundo,
Nos refreia a esperança,
Porque ninguém neste mundo
Busque bem-aventurança.

 Eu, que cuidei de viver
Sempre contente de mi,
Com tamanho rei vencer,
Venho achar minha mulher
De todo fora de si.
Mas de outra parte que digo?
Que se é verdade o que vi,
E o que ela diz é assi,
Virei a cuidar comigo
Que eu sou fora de mi.

 E ao querer penetrar na sua casa, embarga-lhe a entrada Mercúrio – que ele supõe Sósia.
É no inocente Sósia que surge com Belferrão, que vinga a sua sanha de amo desatendido e insultado. E quando aparece Júpiter, o próprio Sósia o reconhece por seu senhor, porque aquele que lhe bate injustamente não pode ser seu amo.
Chegámos a uma cena capital da peça – a do encontro dos dois Anfitriões. Anfitrião não perde nunca a consciência da sua identidade, discute acaloradamente, e embora abandonado por todos, só pensa na vingança:
 «Ah! ira p’ra se não crer,
Em que minha alma se abrasa,
Que me faz ensandecer,
E não me ajuda a romper
As paredes desta casa!
E porque não tenho eu
Forças, que tudo destrua,
Pois que tanto a salvo seu,
Outro acho que possua
A melhor parte do meu?

Eu irei hoje buscar
Quem me ajude a vir queimar
Toda esta casa sem pena,
Donde veja arder Alcmena
Com quem a vejo enganar…»

 Citemos ainda estes expressivos dizeres de Anfitrião, mais calmo, chorando a sua dita perdida, e pensemos no que eles implicam de desdobramento psicológico do eu camoniano, segundo a especificidade temática do seu lirismo:

«Se ver desonra tão clara
Me não tivera o sentido
Totalmente endoudecido,
Que gravemente chorara
Ver tão grande amor perdido!
E quando vejo a verdade
Do nosso amor e amizade
Desfeita com tanta mágoa,
Enchem-se-me os olhos de água
E a alma de saudade.

 Assi, que quis minha estrela,
Para nunca ser contente,
Que agora, estando presente,
Viva mais saudoso dela,
Que quando dela era ausente…»

 Desenlace:
Finalmente, tudo se deslinda, Júpiter resolve desaparecer, depois de os deslumbrar a todos com luz divina. E magnanimamente, a sua voz explica a Anfitrião o estranho caso, prometendo honrar-lhe a geração, com um filho que se chamará Hércules e cujas proezas o imortalizarão.

 «Auto de El-Rei Seleuco» em curta síntese

O «Auto de El-Rei Seleuco» é precedido de um anteacto em prosa, para gáudio dos espectadores, e no qual sobressai a figura do Moço, o “servus” latino, gracioso de resposta sempre pronta em linguagem vulgar e tosca e atitude irrespeitosa, com parentesco também no herói pícaro da novela espanhola.
O assunto da lenda grega supõe-se que o colheu Camões em Petrarca. Trata-se da paixão de Antíoco, filho do Rei Seleuco, por Estratónica, sua madrasta. Levado pelo seu amor de pai, Seleuco cede a mulher ao filho.
A análise do sentimento amoroso em Antíoco, que a ninguém quer revelar a causa do seu sofrer, está feita com bastante perspicácia e eloquência. Da mesma forma nos parece a reacção da rainha ao saber do amor do enteado. Confessa à criada ( e confidente) Frolalta que o amava como a um filho – não podemos esquecer que é uma mulher digna, como logo na primeira cena, em, conversa com o marido revelara. Em todo o caso, não suporta a ideia de que Antíoco morra e deseja morrer com ele. Esse seu desejo acaba por traí-la, denunciando a sua paixão pelo enteado:

 “Sejamos juntos na morte
Pois o não somos na vida.”

E lamenta ter-se casado com Seleuco por interesse:

“Que não há mor desvario
Que o forçado casamento
Por alcançar alto assento;
Que enfim todo o senhorio
Está no contentamento.”

Há alguma inverosimilhança na atitude do rei Seleuco, em face da alternativa malabarística apresentada pelo médico de ver o filho morrer ou dar-lhe a própria mulher em casamento. É pobre de emoção, de debate interior, a sua reacção bonacheirona de ceder a mulher ao filho, desejando festas e alegria, quando pouco antes elogiara a mulher como causa do seu remoçamento, pelo muito amor que esta lhe inspirava.
Não podemos, como paralelo, deixar de referir que, com idêntico tema, compôs Racine uma tragédia, onde a tirania e a vileza das paixões, fizeram de “Phèdre” uma obra-prima do teatro de todos os tempos.
Mas não se trata esta peça de tragédia e o próprio Mordomo, ou “dono da casa” a apresenta como “Isopete”, isto é, uma farsa com moralidade, à maneira de Esopo, segundo o Autor humorista:

 “Eis, Senhores, o Autor, por me honrar nesta festival noite, me quis representar uma farsa; e diz que, por não se encontrar com outras já feitas, buscou uns novos fundamentos para a quem tiver um juízo assi arrazoado satisfazer. E diz que quem se dela não contentar, querendo outros novos acontecimentos, que se vá aos soalheiros dos escudeiros da Castanheira, ou de Alhos Vedros e Barreiro, ou converse na Rua Nova em casa do boticário, e não lhe faltará que conte. Porém, diz o Autor que usou nesta obra da maneira de Isopete. Ora, quanto à obra, se não parecer bem a todos, o Autor diz que entende dela menos que todos os que lha puderem emendar. Todavia, isto é para praguentos, aos quais diz que responde com um dito de um filósofo que diz: “Vós outros estudastes para praguejar, e eu para desprezar praguentos”. E contudo quero saber da farsa, em que ponto vai. Moço! Lançarote!»

 3- Auto de Filodemo

 Também o “Auto de Filodemo” é entremeado de prosa e verso. Filia-se nas tragicomédias vicentinas de tipo novelesco, a “Comédia de Rubena”, “D. Duardos”.

Antes de se entrar propriamente em acção, expõe-se, em prosa, o argumento do Auto: duas crianças nascidas de um fidalgo português e de uma princesa dinamarquesa, fugida de casa com o amado, numa galé que naufraga e donde só ela escapa, acabando por morrer depois de as dar à luz, foram recolhidas, por um pastor que lhes chamou Filodemo e Florimena. Aquele acaba por ir para a cidade servir a um D. Lusidardo que se prova mais tarde ser seu tio, apaixonando-se por sua prima Dionisa. Florimena fica com o pastor, guardando-lhe o gado. Um filho de D. Lusidardo, Venadoro, andando à caça, encontra a jovem e dela se enamora, pela sua beleza e o seu espírito pouco em harmonia com o ambiente em que vive. Não regressa a casa, e quando o pai o encontra, vê-o transformado em humilde cabreiro. O reconhecimento da sua alta estirpe é feito pelo pastor que salvara os dois irmãos, afinal primos dos filhos de D. Lusidardo, pelo que os respectivos casamentos se tornam possíveis.

A acção desdobra-se, assim, em dois andamentos: o primeiro em torno do par Filodemo- Dionisa, o segundo em torno do par Florimena – Venadoro, com cenas intermédias entre personagens secundárias, ou mesmo em prosa, entre principal (Filodemo) e secundária (Duriano, seu amigo), sobre a dialéctica de oposição entre o amor pela passiva (platónico, que se satisfaz na contemplação) e o amor pela activa (o de Duriano em que “ela há-de ser a paciente e eu agente”). É, de resto, sobre a análise do sentimento do amor e os seus efeitos que versam as falas das personagens principais, e mesmo de secundárias, como Solina, intermediária nos amores da ama Dionisa, espécie de Celestina ou alcoviteira, e ela própria também interessada por Duriano.

 Filodemo faz considerações sobre o seu próprio caso, sobre a ambição que nele implica o ter-se enamorado de uma jovem doutra posição. Acaba por saber, através de Solina, que lhe não é indiferente, e em linguagem rebuscada, tão invulgar em criado, responde a Solina, admirada de que ele seja “amante tão fino”.

As manifestações do sentimento do amor em Dionisa parecem-nos das mais completas do teatro camoniano, lembrando as comédias psicológicas de Marivaux, no séc. XVIII. “Le Jeu de l’Amour et du Hasard”, por exemplo, versa um tema parecido: dois jovens de posições distintas que  supõem o outro de baixa condição, porque ambos se vestem de criados, para poderem avaliar melhor o pretendente (da escolha paterna) e que insensivelmente se enamoram, embora contrariados, devido ao equívoco, em virtude do espírito que ambos revelam nos seus diálogos.

Dionisa procura lugares onde possa praticar com a criada sobre o jovem Filodemo que ama, embora com despeito, por aquele ser seu criado. Exalta-se contra Solina porque revelou a Filodemo que a ama escutava os seus cantares, assim denunciando o seu interesse por ele, tal que descera a ouvir a conversa dos criados. Afirma que receia a indiscrição de Filodemo. Solina, porém, tranquiliza-a dizendo-lhe:

 “Que qualquer segredo nele
É como pedra num poço.”

 Dionisa tem um rebate de orgulho:

 “E eu que segredo quero
De um criado de meu pai?”

 Pretende mostrar-se desdenhosa e altiva, mas deixa transparecer ironia ciumenta ao ver como a criada o escuta com prazer, ou talvez como pretexto para dele falar:

“Então vós, gentil donzela,
Folgais muito de o ouvir?”

 Solina não a desmente. Mas adianta que o prazer que sente resulta de que as suas conversas só versam sobre a ama. De resto, a própria Dionisa lhe pedira que fosse falar com ele. Dionisa não quer dar o braço a torcer e finge-se trocista e agreste:

 “Disse-vo-lo assi zombando.
Vós logo o tomais em grosso
Tudo quanto me escutais.
Parvo! Que vê-lo não posso!”

Defende-se com o pai e o irmão que, se viessem a descobrir esses amores

 “Não há ele de folgar.”

E, finalmente, manda a criada buscar almofadas para lavrar:

 “Que em cousas tão mal olhadas
Não se há o tempo de gastar.”

 A esperta Solina conhece lindamente a ama e traça-nos o quadro das suas transformações de comportamento e das suas contradições:

 “Quem a vira o outro dia
Um poucochinho agastada,
Dar no chão com a fantasia,
Toda noutra transformada!
Outro dia lhe ouvirão
Lançar suspiros a molhos,
E com a imaginação
Cair-lhe a agulha da mão,
E as lágrimas dos olhos!

Ouvir-lhe-eis, à derradeira,
A ventura maldizer,
Porque a foi fazer mulher.
Então diz que quer ser freira,
E não se sabe entender.
Então gaba-o de discreto
De músico e bem disposto
De bom corpo e de bom rosto.
Quant’a então eu vos prometo
Que não tem dele desgosto.

 Despois, se vem a atentar,
Diz que é muito mal feito
Amar homem deste jeito;
E que não pode alcançar
Pôr seu desejo em efeito.
Logo se faz tão senhora,
Logo lhe ameaça a vida,
Logo se mostra nessa hora
Muito segura de fora,
E de dentro está sentida.

Quando regressa com a almofada pedida, a ama revela as suas inquietações e enfadamentos de mulher prisioneira, a quem não é permitido expandir, como aos homens, os seus sofrimentos - a condição feminina, não ainda de marginalização mas de limitação, já perceptível, como, de resto, também o fora na farsa " Inês Pereira” de Gil Vicente:

 Bofé, que estava em cuidado,
Que é muito para haver dó
Da mulher que vive amando.
Que um homem pode passar
A vida mais ocupado:
Com passear, com caçar,
Com correr, com cavalgar,
Forra parte do cuidado.

Mas a coitada
Da mulher sempre encerrada,
Que não tem contentamento,
Não tem desenfadamento
Mais que agulha e almofada?”

 Ao ler a carta de Filodemo, que lhe apresenta Solina, finge inicialmente desconhecer o seu autor, mas finalmente:

 “Certo que é de quem temo,
Que os ditos que nele achei
São todos de Filodemo.

 “Este homem, que atrevimento
É este que foi tomar?
Qual será seu fundamento
Que mil vezes me faz dar
Mil voltas ao pensamento?
Não entendo dele nada.
Mas inda que isto é assi,
Me sinto tão alterada
Que me arreceio de mi.”

 Solina sossega-lhe o espírito, comentando que o querer bem é natural e que, segundo ouvira já, Filodemo era de alta geração.  Dionisa está finalmente rendida, embora preocupada com a opinião pública:

“Tudo isso cuido e vi
Mil vezes miudamente;
Mas estas mostras assi
São desculpas para mi,
E não para toda a gente.”

Também a paixão lhe faz perder o apetite e o desejo de ver gente:

“Oh! Quem pudera escusar
De comer, nem de ver gente!”

“Irei, mas não por jantar
Que quem vive descontente
Mantém-se de imaginar.”

 Paralelo com o romance Filodemo-Dionisa, no espaço da casa de D. Lusidardo, processa-se o de Venadoro-Florimena, no espaço do monte com uma fonte. É encantadora e cheia de lirismo e graciosidade a cena do enamoramento entre os dois jovens, reveladora de um espírito forjado no maneirismo retórico e conceptual a lembrar o petrarquismo e os cantares na medida velha.

 Venadoro:
“Oh! Que formosa serrana
À vista se me oferece!
Deusa dos montes parece
E se é certo que é humana,
O monte não na merece.-

Pastora tão delicada,
De gesto tão singular,
Parece-me que em lugar
De perguntar pela estrada
Por mim lhe hei-de perguntar.

Até qui sempre zombei
De qualquer outra pessoa
Que afeiçoada topei,
Mas agora zombarei
De quem se não afeiçoa.

Serrana, cuja pintura
Tanto a alma me moveu,
Dizei-me: Por qual ventura
Andareis nesta espessura
Merecendo estar no céu?

 Florimena:
Tamanho inconveniente
Andar na serra parece?
Pois a ventura da gente
Sempre é muito diferente
Da que, ao parecer, merece.

Venadoro:
Tal resposta é manifesto
Não se aprender entre as cabras.
Pois não vos parece honesto
Saberdes matar co gesto
Senão inda com palavras.

 No mato tudo é rudeza:
Há tal gesto e discrição?
Não no creio:

Florimena:
Porque não?
Não suprirá natureza
Onde falta criação?

Venadoro:
Já logo nisso, Senhora,
Dizeis, se não sinto mal,
Que do vosso natural
Não era serdes pastora.

 Florimena:
Digo, mas pouco me vale.

 Venadoro:
Pois quem vos pôde trazer
À conversação do monte?

 Florimena:
Perguntai-o a essa fonte,
Que as cousas duras de crer,
Um as faça, outro as conte.

Venadoro:
Esta fonte que está aqui,
Que sabe do que dizeis?

 Florimena:
Senhor, mais não pergunteis
Porque outra cousa de mim,
Sabei que não sabereis.
De vós agora sabei
O que não tendes sabido:
Se quereis água, bebei;
Se andais, por dita, perdido
Eu vos encaminharei.

 Venadoro:
Senhora, eu não vos pedia
Que ninguém me encaminhasse;
Que o caminho que eu queria
Se o eu agora achasse,
Mais perdido me acharia.
Não quero passar daqui
E não vos pareça espanto,
Que em vos vendo me rendi,
Porque quando me perdi,
Não cuidei de ganhar tanto.

 Florimena:
Senhor, quem na serra mora,
Também entende a verdade
Dos enganos da cidade,
Vá-se embora ou fique embora
Qual for mais sua vontade.

Venadoro:
Oh! Lindíssima donzela
A quem ventura ordena
Que me guie como estrela!
Quereis-me deixar a pena
E levar-me a causa dela?!
E já que vos conjurastes
Vós e Amor para matar-me
Oh! Não deixeis de escutar-me!
Pois a vida me tirastes
Não me tireis o queixar-me!”

Não nos parece longa a distância que separa esta discreta Florimena, da donzela espirituosa, feminina, graciosa e rebelde do teatro marivaudesco, dois séculos mais tarde.

 A mudança que o amor provoca nos seres é bem expressa neste diálogo entre Lusidardo e Venadoro:

 Lusidardo:
“Oh! Venadoro, meu filho!
És tu este?

 Venadoro:
Tal estou
Que julgo que este não sou.

Lusidardo
Certo que me maravilho
De quem tanto te mudou!
Como estás assi mudado
No rosto e no vestido?

Venadoro
Ando já todo trocado
Tanto que fiquei pasmado
De como fui conhecido.”

 Enquanto Lusidardo procura o filho perdido no monte, em casa, Dionisa, não menos perdida, expande junto de Solina as contradições e ânsias em que vive, em dialéctica de sofrimento a que a própria psicanálise responderá hoje:

“Oh! Solina, minha amiga,
Que todo este coração
Tenho posto em vossa mão!
Amor me manda que diga
Vergonha me diz que não.
Que farei?
Como me descobrirei?
Porque a tamanho tormento
Mais remédio lhe não sei,
Que entregá-lo ao sofrimento.

 Meu pai muito entristecido
Se vai pela serra erguida,
Já da vida aborrecido,
Buscando o filho perdido,
Tendo a filha cá perdida!
Sem cuidar, foi a casa encomendar
A quem destruir-lha quer.
Olhai que gentil saber,
Que vai comigo leixar
Quem me não leixa viver.”

E, não resistindo, concerta com a criada um encontro com Filodemo,

“Para ver
Se é por ventura verdade
O que dizeis que me quer.”

Mas quando aquele lhe aparece, o mesmo embaraço a toma:

 “Agora me quisera eu
Daqui cem mil léguas ver.”

Filodemo exprime exaltadamente o seu amor e o desejo de se sacrificar para lho provar. Dionisa manifesta uns últimos rebates de altivez:

“Nesse deserto apartado
De toda a conversação
Merecíeis degradado
Por justiça. Com pregão,
Que dissesse: “Por ousado”.
E eu também merecia
Metida a grave tormento,
Pois que, como não devia,
Vim a dar consentimento
A tão sobeja ousadia.”

 Mas o sofrimento e a humildade de Filodemo comovem-na e, ao querer dar-lhe uma resposta cabal, pede a Solina que o faça por ela, pois

 “Já não tenho em mim poder,
Segundo me sinto agora,
Para poder responder.”

 Enfim, um remate de ficção cor de rosa resulta da descoberta da nobreza dos dois jovens e do seu parentesco com D. Lusidardo e os filhos. Já encontráramos esse enredo de fantasia em Gil Vicente, na tragicomédia “D. Duardos”, por exemplo, onde o hortelão não passa de um príncipe disfarçado, apaixonado pela princesa Flérida, e outras peças de igual cariz romanesco, próprias dos enredos fantásticos de cavalaria do ciclo bretão e outas lendas em que o maravilhoso imperava.

 Cingimo-nos, nesta peça, à análise dos dois casos de “travesti” amoroso que o destino conduziu a bom porto, abandonando cenas e personagens secundárias, por efeitos de maior coesão. O objectivo foi, realmente, o de reviver momentos de prazer literário há muito sentidos, na estranheza pela indiferença pedagógica pela faceta dramática de Luís de Camões.