terça-feira, 29 de outubro de 2013

“Singing in the Rain” - A onomástica da negação –

 
 
 
Lembrei-me do “Ninguém” com que o astucioso Ulisses se identificou junto de Polifemo - depois de embriagar o horrendo Ciclope que lhe matara parte dos companheiros - nome que, na sua ambiguidade, serviu à vontade para Ulisses se livrar do ataque dos outros Ciclopes que Polifemo chamara em seu auxílio: se “Ninguém” o estava a matar, os brados de Polifemo eram falaciosos, e por isso aqueles o abandonaram e aos seus berros, com benefício para o “sábio grego” e companheiros restantes da chacina ciclópica.
Como trocadilho, o indefinido “Ninguém” será usado ainda onomasticamente por Gil Vicente, no “Auto da Lusitânia”, em visão maniqueísta, como opositor a “Todo-o-Mundo”, nos seus atributos de humildade e despojamento, contra a arrogância e materialismo do segundo. Também Garrett atribui a autodenominação de “Ninguém” à personagem “D. João de Portugal”, da peça “Frei Luís de Sousa”, de polissemia simbolizando o aniquilamento existencial, pela desolação íntima absoluta, e simultaneamente o orgulho vingativo da personagem traída na sua honra de nobre impoluto, pairando como ameaça de punição pelo remorso futuro de quem o traiu.
Mas o assunto sobre a negação pronominal ou adverbial como termos da onomástica simbólica surgiu em dia sombrio de chuva, pela evocação do “Never More” com que aparentemente se denominou o Corvo do poema romântico “THE RAVEN” do escritor americano Edgar Allan Poe, publicado em 1845, ano do nascimento de Eça de Queirós.
Um poema narrativo, que encontro na Internet, juntamente com as traduções de Fernando Pessoa, de Machado de Assis, e que Baudelaire já traduzira para francês em 1853, em prosa poética, talvez mais expressiva e fiel do que os versos em português, embora nenhuma tradução consiga transpor, pela estridência dos sons evocados no poema inglês, que actores ingleses tão magistralmente interpretam no Youtube, toda uma atmosfera sinistramente nocturna de um inverno tempestuoso de Dezembro, lúgubre de evocação de uma Lenore morta e em vão recordada, e em que o “Never more” (“Jamais plus” / “Nunca mais”) da voz do Corvo é significativo da irreversibilidade da morte, como já o mito de Orpheu o dissera e os seus seguidores o decantaram, mais ou menos elegiacamente. Mas os sons ingleses, mais fechados, a acrescentar a todo um poema de sonoridades e asperezas casando-se com a regularidade métrica de rimas internas e aliterações, logo prendem, sobretudo se recitados nas extraordinárias representações inglesas.
Fernando Pessoa consegue transmitir idêntica mensagem de regularidade rítmica, um tanto artificial, nas suas rimas internas e aliterações, o quadro de irrealidade e sinistro que Poe verterá no seu poema, mas a ocultação do nome Lenora pela vaga perífrase “amada”, (essa cujo nome) (estr. 2), “o nome dela” (5), “ela” (13), “o nome da que não esquece” (14), “essa hoje perdida”, “essa cujo nome” (16), em vez do nome “Lenora”, que Baudelaire respeita, nas mesmas estrofes, correspondentes, de resto, aos do poema original, e Machado de Assis não integralmente, estranha-se como uma falha, na arquitectura de sonoridade que Pessoa tentou imprimir-lhe, genialmente também.
Mas o poema de Baudelaire – em prosa poética- parece-me ser o mais claro, fiel e expressivo do conteúdo do poema de Poe, narrativo-dramático– e dramatizável, como o provam os intérpretes do texto inglês da Internet, a que temos acesso.
Uma meia noite sombria de tempestade em Dezembro (atmosfera preferencial nas histórias fantásticas de Allan Poe), um bater à porta que o poeta vai abrir, desculpando a sua demora com as leituras pretensamente apaziguadoras do seu sofrimento pela morte de Lenora, só o sombrio da noite e “nada mais” / “rien de plus” /“nothing more” encontra. Um regressar, novo bater à janela que vai abrir, um corvo que entra, majestoso e se posta sobre estatueta de PalasAtena, segundo Pessoa (outra inépcia, não seguida pelos tradutores anteriores) – colocada sobre o umbral da porta e “nada mais” / “rien de plus” / “nothing more”, expressões que finalizarão as sete primeiras estrofes, as 11 seguintes concluindo com o “never more” onomatopaico, da voz roufenha ou sussurrante do Corvo - “nunca mais” / “jamais plus” nas demais versões consultadas, o “never more” do efémero existencial. A estranheza progressiva do Poeta pela aparente resposta do Corvo às suas interpelações ou monólogos, a fúria progressiva daquele, a impassibilidade do Corvo que jaz, para sempre, sobre a cabeça de Palas, sinónimo da loucura do narrador, na sua dor irremediável, no seu esquecimento impossível.
E os textos, e a minha gratidão por esta via informática, que jamais julgaria possível:
O texto de Pessoa:
O CORVO *
(de Edgar Allan Poe)
http://www.insite.com.br/art/pessoa/img/corvo.gifNuma meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de alguém que batia levemente a meus umbrais.
"Uma visita", eu me disse, "está batendo a meus umbrais.
É só isto, e nada mais."
Ah, que bem disso me lembro! Era no frio dezembro,
E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais.
Como eu queria a madrugada, toda a noite aos livros dada
Para esquecer (em vão!) a amada, hoje entre hostes celestiais -
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais
Mas sem nome aqui jamais!  (Estrofe 2: /  Lenore; Lenore)
Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo
Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais!
Mas, a mim mesmo infundindo força, eu ia repetindo:
"É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais;
Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais.
É só isto, e nada mais".
E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante,
"Senhor", eu disse, "ou senhora, decerto me desculpais;
Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo,
Tão levemente batendo, batendo por meus umbrais,
Que mal ouvi..." E abri largos, franqueando-os, meus umbrais.
Noite, noite e nada mais.
A treva enorme fitando, fiquei perdido receando,
Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais.
Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,
E a única palavra dita foi um nome cheio de ais -
Eu o disse, o nome dela, e o eco disse aos meus ais
Isso só e nada mais.  (Estr. 5 : /  Lenore; Lenore)
Para dentro então volvendo, toda a alma em mim ardendo,
Não tardou que ouvisse novo som batendo mais e mais.
"Por certo", disse eu, "aquela bulha é na minha janela.
Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais."
Meu coração se distraía pesquisando estes sinais.
"É o vento, e nada mais."
Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,
Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento,
Mas com ar solene e lento pousou sobre os meus umbrais,
Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais,
Foi, pousou, e nada mais.
E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura
Com o solene decoro de seus ares rituais.
"Tens o aspecto tosquiado", disse eu, "mas de nobre e ousado,
Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!
Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais."
Disse o corvo, "Nunca mais".
Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro,
Inda que pouco sentido tivessem palavras tais.
Mas deve ser concedido que ninguém terá havido
Que uma ave tenha tido pousada nos meus umbrais,
Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais,
Com o nome "Nunca mais".
Mas o corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto,
Que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais.
Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu pensamento
Perdido, murmurei lento, "Amigo, sonhos - mortais
Todos - todos já se foram. Amanhã também te vais".
Disse o corvo, "Nunca mais".
A alma súbito movida por frase tão bem cabida,
"Por certo", disse eu, "são estas vozes usuais,
Aprendeu-as de algum dono, que a desgraça e o abandono
Seguiram até que o entono da alma se quebrou em ais,
E o bordão de desesperança de seu canto cheio de ais
Era este "Nunca mais".
Mas, fazendo inda a ave escura sorrir a minha amargura,
Sentei-me defronte dela, do alvo busto e meus umbrais;
E, enterrado na cadeira, pensei de muita maneira
Que queria esta ave agoureira dos maus tempos ancestrais,
Esta ave negra e agoureira dos maus tempos ancestrais,
Com aquele "Nunca mais".
Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo
À ave que na minha alma cravava os olhos fatais,
Isto e mais ia cismando, a cabeça reclinando
No veludo onde a luz punha vagas sombras desiguais,
Naquele veludo onde ela, entre as sombras desiguais,
Reclinar-se-á nunca mais! (estrofe 13  /  She)
Fez-se então o ar mais denso, como cheio dum incenso
Que anjos dessem, cujos leves passos soam musicais.
"Maldito!", a mim disse, "deu-te Deus, por anjos concedeu-te
O esquecimento; valeu-te. Toma-o, esquece, com teus ais,
O nome da que não esqueces, e que faz esses teus ais!"
Disse o corvo, "Nunca mais".   (estrofe 14 / Lenore, Lenore)
"Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta!
Fosse diabo ou tempestade quem te trouxe a meus umbrais,
A este luto e este degredo, a esta noite e este segredo,
A esta casa de ânsia e medo, dize a esta alma a quem atrais
Se há um bálsamo longínquo para esta alma a quem atrais!
Disse o corvo, "Nunca mais".
"Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta!
Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais.
Dize a esta alma entristecida se no Éden de outra vida
Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais,
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!"
Disse o corvo, "Nunca mais".  (Estrofe  16: / Lenore; Lenore, com perífrase)
 
"Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!", eu disse. "Parte!
Torna à noite e à tempestade! Torna às trevas infernais!
Não deixes pena que ateste a mentira que disseste!
Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais!
Tira o vulto de meu peito e a sombra de meus umbrais!"
Disse o corvo, "Nunca mais".
E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda
No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.
Seu olhar tem a medonha cor de um demónio que sonha,
E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão mais e mais,
Libertar-se-á... nunca mais!
Fernando Pessoa


* Traduzido de The Raven, de Edgard Allan Poe, ritmicamente conforme com o original.
 
O texto de Machado de Assis
O Corvo

Em certo dia, à hora
Da meia-noite que apavora,
Eu, caindo de sono e exausto de fadiga,
Ao pé de muita lauda antiga,
De uma velha doutrina agora morta,
Ia pensando, quando ouvi à porta
Do meu quarto um soar devagarinho,
E disse estas palavras tais:
"É alguém que me bate à porta de mansinho;
Há de ser isso e nada mais".

Ah! bem me lembro! bem me lembro!
Era no glacial dezembro;
Cada brasa do lar sobre o colchão refletia
A sua última agonia.
Eu ansioso pelo Sol, buscava
Sacar daqueles livros que estudava
Repouso (em vão!) à dor esmagadora
Destas saudades imortais
Pela que ora nos céus anjos chamam Lenora,
E que ninguém chamará mais.  (est 2 / Lenore; Lenore)

E o rumor triste, vago, brando
Das cortinas ia acordando
Dentro em meu coração um rumor não sabido,
Nunca por ele padecido.
Enfim, por aplacá-lo aqui, no peito,
Levantei-me de pronto, e "Com efeito,
(Disse), é visita amiga e retardada
"Que bate a estas horas tais.
"É visita que pede à minha porta entrada:
"Há de ser isso e nada mais".

Minh'alma então sentiu-se forte;
Não mais vacilo, e desta sorte
Falo: "Imploro de vós - ou senhor ou senhora,
Me desculpeis tanta demora.
"Mas como eu, precisando de descanso
"Já cochilava, e tão de manso e manso,
"Batestes, não fui logo, prestemente,
"Certificar-me que aí estais".
Disse; a porta escancarada, acho a noite somente,
somente a noite, e nada mais.

Com longo olhar escruto a sombra
Que me amedronta, que me assombra.
E sonho o que nenhum mortal há já sonhado,
Mas o silêncio amplo e calado,
Calado fica; a quietação quieta;
Só tu, palavra única e dileta,
Lenora, tu, com um suspiro escasso,
Da minha triste boca sais;
E o eco, que te ouviu, murmurou-te no espaço;
Foi isso apenas, nada mais. (Estr, 5 / Lenore, Lenore)

Entro co'a alma incendiada.
Logo depois outra pancada
Soa um pouco mais forte; eu, voltando-me a ela:
"Seguramente, há na janela
Alguma coisa que sussurra. Abramos,
"Eia, fora o temor, eia, vejamos
"A explicação do caso misterioso
Dessas duas pancadas tais,
"Devolvamos a paz ao coração medroso,
"Obra do vento, e nada mais".

Abro a janela, e de repente,
Vejo tumultuosamente
Um nobre corvo entrar, digno de antigos dias.
Não despendeu em cortesias
Um minuto, um instante. Tinha o aspecto
de um lord ou de uma lady. E pronto e reto,
Movendo no ar as suas negras alas,
Acima voa dos portais,
Trepa, no alto da porta em um busto de Palas:
Trepado fica, e nada mais.

Diante da ave feia e escura,
Naquela rígida postura,
Com o gosto severo, - o triste pensamento
Sorriu-me ali por um momento,
E eu disse: "Ó tu que das noturnas plagas
"Vens, embora a cabeça nua tragas,
"Sem topete, não és ave medrosa,
"Dize os teus nomes senhoriais;
"Como te chamas tu na grande noite umbrosa?"
E o corvo disse: "Nunca mais".

Vendo que o pássaro entendia
A pergunta que eu lhe fazia,
Fico atônito, embora a resposta que dera
Dificilmente lha entendera.
Na verdade, jamais homem há visto
Coisa na terra semelhante a isto:
Uma ave negra, friamente posta
Num busto, acima dos portais,
Ouvir uma pergunta a dizer em resposta
Que este é seu nome: "Nunca mais".

No entanto, o corvo solitário
Não teve outro vocabulário.
Como se essa palavra escassa que ali disse
Toda sua alma resumisse,
Nenhuma outra proferiu, nenhuma.
Não chegou a mexer uma só pluma,
Até que eu murmurei: "Perdi outrora
"Tantos amigos tão leais!
"Perderei também este em regressando a aurora".
E o corvo disse: "Nunca mais!"

Estremeço. A resposta ouvida
É tão exata! é tão cabida!
"Certamente, digo eu, essa é toda a ciência
"Que ele trouxe da convivência
"De algum mestre infeliz e acabrunhado
"Que o implacável destino há castigado
"Tão tenaz, tão sem pausa, nem fadiga,
"Que dos seus cantos usuais
"Só lhe ficou, na amarga e última cantiga,
"Esse estribilho: "Nunca mais".

Segunda vez nesse momento
Sorriu-me o triste pensamento;
Vou sentar-me defronte ao corvo magro e rudo;
E, mergulhando no veludo
Da poltrona que eu mesmo ali trouxera,
Achar procuro a lúgubre quimera,
A alma, o sentido, o pávido segredo
Daquelas sílabas fatais,
Entender o que quis dizer a ave do medo
Grasnando a frase: "Nunca mais".

Assim posto, devaneando,
Meditando, conjeturando,
Não lhe falava mais; mas, se lhe não falava,
Sentia o olhar que me abrasava.
Conjeturando fui, tranquilo, a gosto,
Com a cabeça no macio encosto
Onde os raios da Lâmpada caíam,
Onde as tranças angelicais
De outra cabeça
outrora ali se desparziam
E agora não se esparzem mais.  (Estr. 13:  /  She)

Supus então que o ar, mais denso,
Todo se enchia de um incenso,
Obra de serafins que, pelo chão roçando
Do quarto, estavam meneando
Um ligeiro turíbulo invisível:
E eu exclamei então: "Um Deus sensível
"Manda repouso à dor que te devora
"Destas saudades imortais.
"Eia, esquece, eia, olvida essa extinta Lenora".
E o corvo disse: "Nunca mais".  (estr. 14: /  Lenore; Lenore)

"Profeta, ou o que quer que sejas!
"Ave ou demónio que negrejas!
"Profeta sempre, escuta: Ou venhas tu do inferno
"Onde reside o mal eterno,
"Ou simplesmente náufrago escapado
"Venhas do temporal que te há lançado
"Nesta casa onde o Horror, o Horror profundo
"Tem os seus lares triunfais,
"Dize-me: existe acaso um bálsamo no mundo?"
E o corvo disse: "Nunca mais".

"Profeta, ou o que quer que sejas!
"Ave ou demónio que negrejas!
"Profeta sempre, escuta, atende, escuta, atende!
"Por esse céu que além se estende,
"Pelo Deus que ambos adoramos, fala,
"Dize a esta alma se é dado inda escutá-la
"No Éden celeste a virgem que ela chora
"Nestes retiros sepulcrais,
"Essa que ora nos céus anjos chamam Lenora!"
E o corvo disse: "Nunca mais!"  (Estr. 16  /  Lenore; Lenore, com perífrase)

"Ave ou demónio que negrejas!
"Profeta, ou o que quer que sejas!
"Cessa, ai, cessa! (clamei, levantando-me) cessa!
"Regressando ao temporal, regressa
"À tua noite, deixa-me comigo...
"Vai-te, não fique no meu casto abrigo
"Pluma que lembre essa mentira tua.
"Tira-me ao peito essas fatais
"Garras que abrindo vão a minha dor já crua"
E o corvo disse: "Nunca mais".

E o corvo aí fica; ei-lo trepado
No branco mármore lavrado
Da antiga Palas; ei-lo imutável, ferrenho.
Parece, ao ver-lhe o duro cenho,
Um demónio sonhando. A luz caída
Do lampião sobre a ave aborrecida
No chão espraia a triste sombra; e fora
Daquelas linhas funerais
Que flutuam no chão, a minha alma que chora
Não sai mais, nunca, nunca mais!
O texto de Baudelaire
Le Corbeau
Traduction de Charles Baudelaire
« Une fois, sur le minuit lugubre, pendant que je méditais, faible et fatigué, sur maint précieux et curieux volume d’une doctrine oubliée, pendant que je donnais de la tête, presque assoupi, soudain il se fit un tapotement, comme de quelqu’un frappant doucement, frappant à la porte de ma chambre. « C’est quelque visiteur, — murmurai-je, — qui frappe à la porte de ma chambre ; ce n’est que cela, et rien de plus. »
Ah ! distinctement je me souviens que c’était dans le glacial décembre, et chaque tison brodait à son tour le plancher du reflet de son agonie. Ardemment je désirais le matin ; en vain m’étais-je efforcé de tirer de mes livres un sursis à ma tristesse, ma tristesse pour ma Lénore perdue, pour la précieuse et rayonnante fille que les anges nomment Lénore, — et qu’ici on ne nommera jamais plus. (estr. 2 /  Lenore ; Lenore)
Et le soyeux, triste et vague bruissement des rideaux pourprés me pénétrait, me remplissait de terreurs fantastiques, inconnues pour moi jusqu’à ce jour ; si bien qu’enfin, pour apaiser le battement de mon cœur, je me dressai, répétant : « C’est quelque visiteur qui sollicite l’entrée à la porte de ma chambre, quelque visiteur attardé sollicitant l’entrée à la porte de ma chambre ; — c’est cela même, et rien de plus.»
Mon âme en ce moment se sentit plus forte. N’hésitant donc pas plus longtemps : « Monsieur, — dis-je, — ou madame, en vérité j’implore votre pardon ; mais le fait est que je sommeillais, et vous êtes venu frapper si doucement, si faiblement vous êtes venu taper à la porte de ma chambre, qu’à peine étais-je certain de vous avoir entendu. » Et alors j’ouvris la porte toute grande ; — les ténèbres, et rien de plus!
Scrutant profondément ces ténèbres, je me tins longtemps plein d’étonnement, de crainte, de doute, rêvant des rêves qu’aucun mortel n’a jamais osé rêver ; mais le silence ne fut pas troublé, et l’immobilité ne donna aucun signe, et le seul mot proféré fut un nom chuchoté : « Lénore ! » — C’était moi qui le chuchotais, et un écho à son tour murmura ce mot : « Lénore ! » — Purement cela, et rien de plus. (Estr. 5 : / Lenore ; Lenore)
Rentrant dans ma chambre, et sentant en moi toute mon âme incendiée, j’entendis bientôt un coup un peu plus fort que le premier. « Sûrement, — dis-je, — sûrement, il y a quelque chose aux jalousies de ma fenêtre ; voyons donc ce que c’est, et explorons ce mystère. Laissons mon cœur se calmer un instant, et explorons ce mystère ; — c’est le vent, et rien de plus. »
Je poussai alors le volet, et, avec un tumultueux battement d’ailes, entra un majestueux corbeau digne des anciens jours. Il ne fit pas la moindre révérence, il ne s’arrêta pas, il n’hésita pas une minute ; mais, avec la mine d’un lord ou d’une lady, il se percha au-dessus de la porte de ma chambre ; il se percha sur un buste de Pallas juste au-dessus de la porte de ma chambre ; — il se percha, s’installa, et rien de plus.
Alors cet oiseau d’ébène, par la gravité de son maintien et la sévérité de sa physionomie, induisant ma triste imagination à sourire : « Bien que ta tête, — lui dis-je, — soit sans huppe et sans cimier, tu n’es certes pas un poltron, lugubre et ancien corbeau, voyageur parti des rivages de la nuit. Dis-moi quel est ton nom seigneurial aux rivages de la Nuit plutonienne ! » Le corbeau dit: «Jamais plus
Je fus émerveillé que ce disgracieux volatile entendît si facilement la parole, bien que sa réponse n’eût pas un bien grand sens et ne me fût pas d’un grand secours ; car nous devons convenir que jamais il ne fut donné à un homme vivant de voir un oiseau au-dessus de la porte de sa chambre, un oiseau ou une bête sur un buste sculpté au-dessus de la porte de sa chambre, se nommant d’un nom tel que Jamais plus!
Mais le corbeau, perché solitairement sur le buste placide, ne proféra que ce mot unique, comme si dans ce mot unique il répandait toute son âme. Il ne prononça rien de plus ; il ne remua pas une plume, — jusqu’à ce que je me prisse à murmurer faiblement : « D’autres amis se sont déjà envolés loin de moi ; vers le matin, lui aussi, il me quittera comme mes anciennes espérances déjà envolées. » L’oiseau dit alors : « Jamais plus!»
Tressaillant au bruit de cette réponse jetée avec tant d’à-propos : « Sans doute, — dis-je, — ce qu’il prononce est tout son bagage de savoir, qu’il a pris chez quelque maître infortuné que le Malheur impitoyable a poursuivi ardemment, sans répit, jusqu’à ce que ses chansons n’eussent plus qu’un seul refrain, jusqu’à ce que le De profundis de son Espérance eût pris ce mélancolique refrain : Jamais, jamais plus!
Mais, le corbeau induisant encore toute ma triste âme à sourire, je roulai tout de suite un siège à coussins en face de l’oiseau et du buste et de la porte ; alors, m’enfonçant dans le velours, je m’appliquai à enchaîner les idées aux idées, cherchant ce que cet augural oiseau des anciens jours, ce que ce triste, disgracieux, sinistre, maigre et augural oiseau des anciens jours voulait faire entendre en croassant son Jamais plus!
Je me tenais ainsi, rêvant, conjecturant, mais n’adressant plus une syllabe à l’oiseau, dont les yeux ardents me brûlaient maintenant jusqu’au fond du cœur ; je cherchais à deviner cela, et plus encore, ma tête reposant à l’aise sur le velours du coussin que caressait la lumière de la lampe, ce velours violet caressé par la lumière de la lampe que sa tête, à Elle, ne pressera plus, — ah! jamais plus! (estr. 13 /  She)
Alors il me sembla que l’air s’épaississait, parfumé par un encensoir invisible que balançaient des séraphins dont les pas frôlaient le tapis de la chambre. « Infortuné ! — m’écriai-je, — ton Dieu t’a donné par ses anges, il t’a envoyé du répit, du répit et du népenthès dans tes ressouvenirs de Lénore ! Bois, oh ! bois ce bon népenthès, et oublie cette Lénore perdue ! » Le corbeau dit : « Jamais plus (Estr. 14 : Lenore ; Lenore)
«Prophète ! — dis-je, — être de malheur ! oiseau ou démon, mais toujours prophète ! que tu sois un envoyé du Tentateur, ou que la tempête t’ait simplement échoué, naufragé, mais encore intrépide, sur cette terre déserte, ensorcelée, dans ce logis par l’Horreur hanté, — dis-moi sincèrement, je t’en supplie, existe-t-il, existe-t-il ici un baume de Judée ? Dis, dis, je t’en supplie ! » Le corbeau dit : « Jamais plus ! »
« Prophète ! — dis-je, — être de malheur ! oiseau ou démon ! toujours prophète ! par ce Ciel tendu sur nos têtes, par ce Dieu que tous deux nous adorons, dis à cette âme chargée de douleur si, dans le Paradis lointain, elle pourra embrasser une fille sainte que les anges nomment Lénore, embrasser une précieuse et rayonnante fille que les anges nomment Lénore. » Le corbeau dit : « Jamais plus ! » (Estr. 16 : Lenore ; Lenore, com perífrase)
« Que cette parole soit le signal de notre séparation, oiseau ou démon ! — hurlai-je en me redressant. — Rentre dans la tempête, retourne au rivage de la Nuit plutonienne ; ne laisse pas ici une seule plume noire comme souvenir du mensonge que ton âme a proféré ; laisse ma solitude inviolée ; quitte ce buste au-dessus de ma porte ; arrache ton bec de mon cœur et précipite ton spectre loin de ma porte ! » Le corbeau dit : « Jamais plus ! »
Et le corbeau, immuable, est toujours installé, toujours installé sur le buste pâle de Pallas, juste au-dessus de la porte de ma chambre ; et ses yeux ont toute la semblance des yeux d’un démon qui rêve ; et la lumière de la lampe, en ruisselant sur lui, projette son ombre sur le plancher ; et mon âme, hors du cercle de cette ombre qui gît flottante sur le plancher, ne pourra plus s’élever, — jamais plus !
 
O texto de Edgar Allan Poe

The Raven [First published in 1845]

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Once upon a midnight dreary, while I pondered weak and weary,
Over many a quaint and curious volume of forgotten lore,
While I nodded, nearly napping, suddenly there came a tapping,
As of some one gently rapping, rapping at my chamber door.
`'Tis some visitor,' I muttered, `tapping at my chamber door -
Only this, and nothing more.'

Ah, distinctly I remember it was in the bleak December,
And each separate dying ember wrought its ghost upon the floor.
Eagerly I wished the morrow; - vainly I had sought to borrow
From my books surcease of sorrow - sorrow for the lost Lenore -
For the rare and radiant maiden whom the angels name Lenore -
Nameless here for evermore. (estr. 2)

And the silken sad uncertain rustling of each purple curtain
Thrilled me - filled me with fantastic terrors never felt before;
So that now, to still the beating of my heart, I stood repeating
`'Tis some visitor entreating entrance at my chamber door -
Some late visitor entreating entrance at my chamber door; -
This it is, and nothing more,'

Presently my soul grew stronger; hesitating then no longer,
`Sir,' said I, `or Madam, truly your forgiveness I implore;
But the fact is I was napping, and so gently you came rapping,
And so faintly you came tapping, tapping at my chamber door,
That I scarce was sure I heard you' - here I opened wide the door; -
Darkness there, and nothing more.

Deep into that darkness peering, long I stood there wondering, fearing,
Doubting, dreaming dreams no mortal ever dared to dream before;
But the silence was unbroken, and the darkness gave no token,
And the only word there spoken was the whispered word, `Lenore!'
This I whispered, and an echo murmured back the word, `Lenore!'
Merely this and nothing more. (Estr. 5)

Back into the chamber turning, all my soul within me burning,
Soon again I heard a tapping somewhat louder than before.
`Surely,' said I, `surely that is something at my window lattice;
Let me see then, what thereat is, and this mystery explore -
Let my heart be still a moment and this mystery explore; -
'Tis the wind and nothing more!'

Open here I flung the shutter, when, with many a flirt and flutter,
In there stepped a stately raven of the saintly days of yore.
Not the least obeisance made he; not a minute stopped or stayed he;
But, with mien of lord or lady, perched above my chamber door -
Perched upon a bust of Pallas just above my chamber door -
Perched, and sat, and nothing more.

Then this ebony bird beguiling my sad fancy into smiling,
By the grave and stern decorum of the countenance it wore,
`Though thy crest be shorn and shaven, thou,' I said, `art sure no craven.
Ghastly grim and ancient raven wandering from the nightly shore -
Tell me what thy lordly name is on the Night's Plutonian shore!'
Quoth the raven, `Nevermore.'

Much I marvelled this ungainly fowl to hear discourse so plainly,
Though its answer little meaning - little relevancy bore;
For we cannot help agreeing that no living human being
Ever yet was blessed with seeing bird above his chamber door -
Bird or beast above the sculptured bust above his chamber door,
With such name as `Nevermore.'

But the raven, sitting lonely on the placid bust, spoke only,
That one word, as if his soul in that one word he did outpour.
Nothing further then he uttered - not a feather then he fluttered -
Till I scarcely more than muttered `Other friends have flown before -
On the morrow he will leave me, as my hopes have flown before.'
Then the bird said, `Nevermore.'

Startled at the stillness broken by reply so aptly spoken,
`Doubtless,' said I, `what it utters is its only stock and store,
Caught from some unhappy master whom unmerciful disaster
Followed fast and followed faster till his songs one burden bore -
Till the dirges of his hope that melancholy burden bore
Of "Never-nevermore."'

But the raven still beguiling all my sad soul into smiling,
Straight I wheeled a cushioned seat in front of bird and bust and door;
Then, upon the velvet sinking, I betook myself to linking
Fancy unto fancy, thinking what this ominous bird of yore -
What this grim, ungainly, ghastly, gaunt, and ominous bird of yore
Meant in croaking `Nevermore.'

This I sat engaged in guessing, but no syllable expressing
To the fowl whose fiery eyes now burned into my bosom's core;
This and more I sat divining, with my head at ease reclining
On the cushion's velvet lining that the lamp-light gloated o'er,
But whose velvet violet lining with the lamp-light gloating o'er,
She shall press, ah, nevermore! (estr. 13)

Then, methought, the air grew denser, perfumed from an unseen censer
Swung by Seraphim whose foot-falls tinkled on the tufted floor.
`Wretch,' I cried, `thy God hath lent thee - by these angels he has sent thee
Respite - respite and nepenthe from thy memories of Lenore!
Quaff, oh quaff this kind nepenthe, and forget this lost Lenore!'
Quoth the raven, `Nevermore.' (Estr. 14)

`Prophet!' said I, `thing of evil! - prophet still, if bird or devil! -
Whether tempter sent, or whether tempest tossed thee here ashore,
Desolate yet all undaunted, on this desert land enchanted -
On this home by horror haunted - tell me truly, I implore -
Is there - is there balm in Gilead? - tell me - tell me, I implore!'
Quoth the raven, `Nevermore.'

`Prophet!' said I, `thing of evil! - prophet still, if bird or devil!
By that Heaven that bends above us - by that God we both adore -
Tell this soul with sorrow laden if, within the distant Aidenn,
It shall clasp a sainted maiden whom the angels name Lenore -
Clasp a rare and radiant maiden, whom the angels name Lenore?'
Quoth the raven, `Nevermore.' (estr. 16)

`Be that word our sign of parting, bird or fiend!' I shrieked upstarting -
`Get thee back into the tempest and the Night's Plutonian shore!
Leave no black plume as a token of that lie thy soul hath spoken!
Leave my loneliness unbroken! - quit the bust above my door!
Take thy beak from out my heart, and take thy form from off my door!'
Quoth the raven, `Nevermore.'

And the raven, never flitting, still is sitting, still is sitting
On the pallid bust of Pallas just above my chamber door;
And his eyes have all the seeming of a demon's that is dreaming,
And the lamp-light o'er him streaming throws his shadow on the floor;
And my soul from out that shadow that lies floating on the floor
Shall be lifted - nevermore!
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domingo, 27 de outubro de 2013

A “Sá da Costa”, alma mater



É verdade. Também sinto profundamente a extinção da Livraria Sá da Costa, cujos clássicos, relativamente em conta, foram acompanhando a minha vida estudantil e servem hoje ainda de referência para consulta das obras completas ou parciais – de Camões, de Gil Vicente, de Sá de Miranda, de Bernardes, do Cavaleiro de Oliveira, de Vieira, de Bernardes, de D. Francisco Manuel de Melo, de Tomás António Gonzaga, de António José da Silva…  Eram livros de modéstia e utilidade, sempre à mão para as dúvidas de reposição de integridade editorial, relativamente a erros eventualmente detectados nos manuais escolares, ou para qualquer informação referente a dados circunstanciais, que Vasco Pulido Valente aponta no seu artigo do “Público” de 18 de Outubro, “Os Clássicos Sá da Costa”, como “devidamente anotada”.

Nesse ponto, não concordo, de preguiça mais votada aos livrinhos fininhos “Clássicos Portugueses - Trechos escolhidos” da “Clássica Editora” ou “Textos Literários” da “Gráfica Lisbonense”, ou os da “Colecção Literária Atlântida”, de Coimbra, ou os livros “Clássicos Portugueses” dos séculos XVI ao XIX, de Mário Fiúza, Ema Tarracha, da ASTER e tantos outros, plenos de anotações, que ajudaram a desbravar o sentido das mensagens e o enquadramento literário e social dos escritores, de que os mais fininhos - “Clássicos Portugueses”- utilizados, durante muito tempo, no Ensino, se fizeram porta-vozes ajudando à formação de professores e alunos. Estes pequenos ou grandes livros de excertos apresentam maior número de anotações do que os da Sá da Costa, mais interessada na transcrição correcta da obra integral. Os vindoiros poder-se-iam debruçar melhor sobre textos e contextos, a partir dela e esses estudos continuam a verificar-se nos Manuais Escolares de Literatura, da disciplina de Português, como excelente encaminhamento literário, inexistente nos Manuais de outrora, por onde estudei, puro reservatório ou antologia de excertos.

Por isso, sinto o seu encerramento, neste associar-me à homenagem que a ela presta Vasco Pulido Valente, transcrevendo a sua crónica. Lembro bem a emoção quando, chegada de África, entrei pela primeira vez na livraria “Sá da Costa”, percorrendo e revendo, como num santuário de surpresa maravilhada.

Chegou a sua vez, cumprido o seu belo destino, de parar de dar à estampa os discretos e tão amplos livros cuja imagem o Público revela, no mesmo desígnio de homenagem e protesto. Não se tratava dos Armazéns do Chiado incendiados e reconstruídos, com grande alarido, comoção e dispêndio. A Sá da Costafaliu sem ruído, ao fim dum século de serviço”, pois que livros e edições de clássicos, desenterrados muitas vezes das fontes primeiras, não representam significado de projecção semelhante à do incêndio dos Grandes Armazéns do Chiado. Embora as suas edições de clássicos vão perdurar enquanto existir a pátria portuguesa, ao contrário da memória destes.

“Os Clássicos da Sá da Costa”

«Há os que dizem sim e há os que dizem não. Mas de um e outro lado, todos dizem o mesmo, com as mesmas palavras e com as mesmas razões. Todos se repetem simultânea ou alternadamente para chegar à mesma conclusão. Basta ouvir a primeira frase para se perceber onde a conversa vai parar e por que espécie de caminho. O português sem gramática que se usa na televisão e nos jornais desceu à “língua de pau”. A “língua de pau” costumava ser um exclusivo do Partido Comunista, agora é a língua quase oficial da política, uma pasta mastigada e remastigada, que não exprime nada e não convence ninguém. Só prova, com enorme abundância e variedade, a iliteracia crescente dos preopinantes que persiste, contra o senso e a inteligência, em falar e escrever para um público cansado e mudo.

Foi por isso que me lembrei hoje da Livraria Sá da Costa, que faliu sem ruído ao fim de um século de serviço. No tempo das tertúlias, que desapareceram por volta de 1960, a tertúlia da Sá da Costa, apesar dos seus créditos de oposição, nunca conseguiu realmente competir com a da Bertrand, onde o “glorioso mestre Aquilino”, como lhe chamavam, era a grande atracção. Mas no meio da sua relativa modéstia, a Sá da Costa prestou um incomparável serviço ao país: durante anos, volume a volume, publicou a melhor colecção de clássicos (devidamente anotada) que algum dia por cá apareceu. Do século XVI para a frente não faltava um único autor dos que mudaram e moldaram o português que hoje se usa ou, mais precisamente, não se usa. Para medir bem a nossa pobreza literária os “clássicos Sá da Costa” foram um instrumento único.

Pouco a pouco, as dificuldades da livraria desfizeram a colecção. O Estado podia ter subsidiado a coisa. No Ministério da Cultura existia, de resto, um instituto (criado por mim, para mal dos meus pecados) que servia perfeitamente para o propósito. Só que a gente que o dirigiu escolheu sempre as actividades que lhe permitiam dar ar à pluma e adquirir uma ínfima importância, passageira e espúria. O denominado Plano Nacional de Leitura é fantochada, pedagogicamente inútil, mas que ajuda a criar empregos (no Estado, está claro) e a distribuir uns dinheiritos por umas dezenas de analfabetos com necessidades. Não admira que Angola e Brasil nos tratem como tratam. A famosa “língua comum”, objecto de tanto parlatório, apodreceu.»

É claro que Vasco Pulido Valente exagera no seu pessimismo de purista linguístico. Uma língua não morre assim, e a expressividade (por monocórdica e vazia que por vezes se mostre) dos discursos parlamentares ou dos economistas, ou até eventualmente de artistas entrevistados, - e mesmo de telenovelas portuguesas actuais, de bom nível fraseológico e interpretativo - provam que a língua portuguesa não morrerá ainda e, tal como António Ferreira sugeria há quatrocentos anos, “lá onde for, senhora vá de si soberba e altiva”.

Como não morrerão as Crónicas de Vasco Pulido Valente.

sábado, 26 de outubro de 2013

E depois?

Foi nos tempos de Santana Lopes como Primeiro Ministro, há oito ou nove anos já.
 
Diz-se – é sentença antiga – que o tempo cura mais que o sal, mas nem sempre isso é verdadeiro, até porque se diz também que Cronos, que destronou seu pai Ouranós, foi engolindo os filhos que a esposa Reia lhe dava, com medo de ser por algum deles destronado, o que aconteceu com o último filho – Zeus – salvo pela mãe, o qual conseguiu não só destronar o pai como recuperar os irmãos. Mas foi muito mal feito isso de engolir os filhos, por isso o provérbio sobre o tempo/Cronos curar, está mais que visto que é falso, pois às vezes mata – embora o sal também tenha os seus efeitos perniciosos no nosso organismo, segundo afirmação preocupada do Serviço Mundial da Saúde.
 
O que se verifica entre nós é que o tempo agrava. No tempo de Santana Lopes, por exemplo, a cidade começou a ser plantada de cartazes esclarecedores sobre os embelezamentos na cidade, julgo que encimados da foto de Santana – segundo o nosso carinhoso costume de plantar cartazes eleitorais, para criar postos/postes de trabalho. O meu marido trabalhava na Câmara de Lisboa, fazia parte da equipa encarregada de recuperar as velhas casas dos tempos pombalinos. Mas observou que as reformas santanistas também se faziam ao nível dos interiores, nos gabinetes de trabalho e nas casas de banho que as amigas de Santana recém colocadas exigiam – e eu costumava  lembrar-lhe que a Jacqueline Kennedy já o fizera na Casa Branca quando lá se instalou, que serviu de exemplo à nossa classe média elitista na questão dos arranjos. Também recentemente o Palácio da Justiça mudou de poiso, diz-se que para um sítio esplêndido com vistas para o Tejo, para amenizar as tarefas de descodificação dos processos da acumulação prolongada.
 
Outros muitos exemplos poderia acrescentar, deste esbanjamento narcisístico que o tempo acentua, mas o introito já vai excessivo, de apoio às preocupações que Vasco Pulido Valente revela na sua reflexiva crónica do Público, de 19/10,  “A Classe Média de Estado”, denunciadora de um plano revolucionário sem volta, de “filhos” e “enteados” abocanhando o “pai” Estado até às entranhas, e fazendo greves reivindicativas dos direitos adquiridos:
 
 «Toda a gente lamenta o destino da classe média, que a troika e o Governo estão pouco a liquidar. Mas ninguém se lembra que essa classe média é uma classe média de Estado, ou seja, um produto do Estado, que o Estado deliberadamente fabricou e que não pode ter outro destino, quando acabam os meios de a sustentar, como sucedeu em 2011. Se fosse uma criatura da economia resistiria melhor e até talvez conseguisse influir no “ajustamento” que se combinou com os credores. Infelizmente, foi o contrário que sucedeu. A democracia precisava de uma base de apoio e, como não havia nenhuma, a que havia era muito frágil, não hesitou em se prover com um imenso funcionalismo, por natureza dependente e fiel, e em orientar a escola e a universidade para carreiras que o poder político controlava.
 
E porque a longa fila dos pretendentes não parava de aumentar, os governos começaram a usar artifícios para “colocar” o pessoal que lhes batia à porta. Inventaram novas funções para um Estado que já não conhecia limites, dividiram e redividiram os serviços, fundaram com, ligeireza e gozo as centenas de organismos vaguíssimos, que eram verdadeiros depósitos de empregados sem uso nem utilidade. E este novo funcionalismo também ajudou à obra: imaginava constantemente novos cantos da vida portuguesa em que a sua presença lhe parecia indispensável; e pedia sempre com tenacidade o “espaço” que imaginariamente lhe faltava e o alargamento dos “quadros”, que achava sempre estreitos, mas sobretudo impeditivos da felicidade do povo. O “monstro” de que falava Cavaco foi assim feito (também por ele mesmo).
 
Da enorme multidão que trabalha para o Estado trata o seu emprego (que o contribuinte paga) como uma espécie de rendimento garantido, a que acrescenta vários géneros de actividade privada ou de negócios. Basta pensar nos médicos, por exemplo, ou em gente que dirige empresas (muito suas) com os recursos do ministério onde se instalou. Qualquer abalo sério e racional a  este arranjo iria ameaçar a subsistência a centenas de milhares de pessoas, que se habituaram a um certo estatuto social e se julgam na perpétua posse de “direitos” garantidos pela Constituição. Pior ainda: como, de maneira geral, mandam no PS e no PSD, não lhes faltam meios de impedir que a sua posição seja definitivamente posta em causa. O Estado que os sirva e eles fingem que servem o Estado.»

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

O “Instrumento Regulador” - pretexto para mais parasitismo nacional



Reivindica orgulhosamente os seus dezasseis anos do bom e leal serviço docente. No ano passado foi avaliada com Muito Bom. Tem uma expressão clara  de quem não se limitou – como eu, por exemplo, alérgica ao paleio retórico não lectivo, criado pelos que não leccionam nem gastaram as suas vidas a preparar aulas e estratégias para penetrar a muralha diversificada das competências e comportamentos escolares, em turmas cada vez mais amplas e ruidosas de agrupamentos discentes criadas sem seriedade nem desejo de eficácia formativa, nem respeito pela integridade física e moral dos docentes – tem uma expressão clara, repito, de quem não se limitou a estudar e a corrigir e a acompanhar-se dos instrumentos da sua docência de dezasseis anos de bom e leal serviço docente.

A sua expressão clara, que se reflecte na forma amorável mas segura e equilibrada com que educa os seus dois filhos – traduz a competência de leitura da tal retórica ministerial a que sou alérgica, sabendo que o que está por trás dessa retórica é bem – foi sempre – não só o processo de distribuir pelos funcionários ministeriais encarregados desses trabalhos, os trabalhos que justifiquem a sua funcionalidade ministerial e demonstrem novas originalidades profusas de orientação relativamente ao ministério anterior, como, actualmente, o de limitar, pela reprovação em exames, o número de professores que políticas anteriores tinham colocado em excesso.

Tem dezasseis anos e um bom currículo e pergunta se quem a vai avaliar será a professora efectiva que ela substitui, que há muitos anos recebe o seu vencimento sem trabalhar, o seu lugar posto sempre à disposição do professor contratado que a vai substituir, o que, no caso presente, até foi positivo para esta – tal como para os professores anteriores -  apesar do horário incompleto, devido à redução do horário da professora efectiva, que estranhas leis protegem - como protegem, aliás, muitos dos vários comilões do erário público, como se tem visto, como esses das fundações ou esses reformados com sete anos de parlamento e astúcia de assento acumulativo de proventos.

Mas terá de se sujeitar a um exame, classificado de “instrumento regulador”.

Transcrevo dados, via Internet:

«“Todos os professores contratados terão de fazer prova de ingresso”

“reservado a quem possui todos os requisitos necessários a um desempenho profissional especializado e de grande qualidade”.

A prova não tem nada a ver com a avaliação de desempenho ou com a formação inicial de professores. O que se pretende através dela é procurar saber se os candidatos têm os pré-requisitos necessários ao acesso à profissão docente", justificou Grancho. A prova terá uma componente geral e outra específica relacionada com o nível de ensino e a área disciplinar do candidato”

 “Nas sessões de negociação anteriores, o ministério tinha também deixado cair a exigência de que só os professores com 14 valores ou mais nesta prova seriam considerados aptos ao exercício da profissão.”

“A prova de avaliação a que passarão a ser sujeitos os professores contratados para poderem dar aulas poderá afinal só ser constituída por uma parte comum, destinada a verificar as competências fundamentais para o exercício da docência, e não incluir uma componente específica, relativa às disciplinas a serem leccionadas.”»

           

            A professora de bom e leal serviço, que ontem fez quarenta anos e se desdobra entre a escola e os filhos na escola e na pré-escolar, acha que toda esta farfalheira de exames – quando diariamente se considera sujeita a esses – não é mais que uma forma despudorada de retirar emprego a quem realmente trabalha, e de fornecer emprego aos amigalhaços de ocasião – governativa – encarregados de criar as provas inúteis e certamente que preciosamente rebuscadas – e de as corrigir – concretizando despedimentos docentes, que darão lugar a esses tais, os criadores e revisores dos “instrumentos reguladores” – os dos mais cargos do nosso parasitismo useiro e vezeiro.