segunda-feira, 29 de abril de 2013

Nossa!

La Fontaine, ao que parece,

Leio na Internet,
Colheu no italiano Astémius,
Fabulista quatrocentista,
O tema da sua fábula “A Aranha e a Andorinha”,
Segundo a qual,
A Aranha pretendia,
Sem qualquer ironia,
Caçar também a Andorinha
Na sua teia infernal.
Mas como se saiu mal,
Logo se impôs a lição
Sobre o excesso de ambição
Que destrói incautos pedantes,
Que as forças não meçam antes.

«A Aranha e a Andorinha»
«”Ó Júpiter, que do teu cérebro soubeste
Por um inédito parto secreto,
De discutível acerto,
Gerar Palas Atena, minha inimiga outrora
Por, de pura inveja,
Eu bordar tão bem como ela,
Escuta o meu pranto, por uma vez que seja.
Progne, a andorinha, irmã de Filomela,
- Esta em rouxinol transformada,
Sem culpa formada -
Vem sempre à minha porta
Roubar-me os meus pedaços de sustento,
Girando em caracol, fendendo o ar e as águas.
Ela tira-me as moscas da minha horta,
Minhas, posso dizê-lo; e a minha teia
Estaria delas cheia, não fora
Esta maldita Ave,
Pois teci-a de matéria resistente.”
Assim, com um discurso insolente,
Se não mesmo imprudente,
Se queixava a Aranha, tapeteira outrora,
E que, agora fiandeira,
Pretendia apanhar com bastante ardor
Qualquer insecto voador
Para comer.
A irmã de Filomela, atenta à sua presa,
Apesar da bestazinha, a Aranha,
- De atalaia, perto da sua teia -
Apanhava, para os seus filhotes,
Alegria impiedosa para ela,
Sempre de vela,
As moscas no ar,
Que, com os bicos sempre abertos, os seus filhos glutões,
Em tom meio formado, ninhada pipilante,
Pediam com os seus gritos, ainda indistintamente.
A pobre Aranha não tendo mais
Que cabeça e pés,
Supérfluos artesãos,
Foi ela própria apanhada na bicada.
A Andorinha ao passar, levou a teia e tudo,
E o animal pendente
Na ponta da sua conta.
Júpiter para cada estado , ou seja,
Condição social,
Pôs duas mesas no mundo,
Mas não foi por mal,
Antes, como distribuição natural:
O hábil, o vigilante e o forte estão sentados
À primeira mesa;
E os pequenos, mal alimentados,
Comem, com presteza,
Mas com agonia funda,
Os restos daqueles, na segunda.»

 La Fontaine, como se vê,
Seguiu outra indicação
Na sua lição,
Mais cá à nossa maneira:
Trata-se da distribuição
Dos bens deste mundo
E do requinte das mesas
Segundo a mesma condição
De usarmos ou não
Bem as cabeças.
Mas também os pés e as mãos
São auxiliares profundos
Nos desvairos deste mundo.
La Fontaine não o disse
Porque apesar de tudo o que disse,
Não era tão bera
O tempo de outrora
Como é o de agora.

Mas é tempo de dizer - fora!
A tanta discrepância,
A tanta violência
A tanta ânsia
De abundância,
Mesmo quando não fosse nossa
A massa.
Poça!
Não há quem o impeça?
 

sexta-feira, 26 de abril de 2013

Chorai arcadas


Enviou-me o meu filho Ricardo o email seguinte:
«NABUCCO - Momento dramático na ópera de Roma»

«No dia 12 de março de 2011, a Itália festejava os 150 anos da sua unificação, ocasião em que a Ópera de Roma apresentou a ópera Nabuco de Verdi, símbolo da unificação do país, que invoca a escravidão dos Judeus na Babilónia, uma obra não só musical mas, também, política à época em que a Itália estava sujeita ao império dos Habsburgos (1840). A apresentação era dirigida pelo maestro Ricardo Mutti.
Antes da apresentação o prefeito de Roma, Gianni Alemanno - ex-ministro do governo Berlusconi, discursou, protestando contra os cortes nas verbas da cultura, o que contribuiu para politizar o evento. Como Mutti declararia à TIME, houve, logo de início, uma ovação incomum, clima que se transformou numa atmosfera de tensão quando se iniciaram os acordes do coral «Va pensiero» o famoso hino contra a dominação.

«Há situações que não se podem descrever, mas apenas sentir; o silêncio absoluto do público, na expectativa do hino; clima que se transforma em fervor aos primeiros acordes do mesmo; a reação visceral do público quando o coro entoa - 'Ó minha pátria, tão bela e perdida'». Ao terminar o hino os aplausos da platéia interrompem a ópera e o público manifestou-se com gritos de «bis», « viva Itália», «viva Verdi». Das galerias são lançados papéis com mensagens políticas. Não sendo usual bisar durante uma ópera, e embora Mutti já o tenha feito uma vez em 1986, no teatro La Scala de Milão, o maestro hesitou pois, como ele depois disse: «não cabia um simples bis; havia de ter um propósito particular». Dado que o público já havia revelado o seu sentimento patriótico, o maestro voltou-se no púlpito e encarou o público. Fazendo-se silêncio, pronunciou-se da seguinte forma, e reagindo a um grito de «longa vida à Itália» disse:

RICCARDO MUTTI: «........Sim, longa vida à Itália mas ... [aplausos]. Já não tenho 30 anos e já vivi a minha vida, mas como um italiano que percorreu o mundo, tenho muita mágoa do que se passa no meu país. Portanto aquiesço ao vosso pedido de bis para o Va Pensiero. Isto não se deve apenas à alegria patriótica que senti em todos, mas porque nesta noite, enquanto eu dirigia o coro que cantava 'Ó meu pais, belo e perdido', eu pensava que, a continuarmos assim, mataremos a cultura sobre a qual assenta a história da Itália. Neste caso, a nossa pátria, será verdadeiramente 'bela e perdida. (aplausos retumbantes, incluindo os dos artistas em palco) Reina aqui um 'clima italiano'; eu, Mutti, falei para surdos durante longos anos, gostaria agora.... nós deveríamos dar sentido a este canto; como estamos em nossa casa, o teatro da capital, e com um coro que cantou magnificamente, e que é magnificamente acompanhado, se for de vosso agrado, proponho que todos se juntem a nós para cantarmos juntos.... "A tempo"...»

Foi assim que Mutti convidou o público a cantar o Coro dos Escravos. O público levantou-se. Toda a ópera de Roma se levantou... O coro também se levantou. Foi um momento magnífico na ópera! Vê-se, também, o pranto dos artistas. Aquela noite não foi apenas uma apresentação do Nabuco mas, sobretudo, uma declaração do teatro da capital dirigida aos políticos.»

«AGORA, NÃO DEIXEM DE VER E OUVIR PELO LINK ABAIXO:
http://www.youtube.com/embed/G_gmtO6JnRs»


Foi o que fiz imediatamente, relembrando momentos passados em Moçambique, em que escutava, mais do que agora, os discos dos compositores clássicos e não só, e este, em especial, que ia entoando enquanto limpava o pó dos móveis. A dispersão de agora por tantos meios de diversão não acompanha os motivos da nossa saudade desses tempos tão ricos em experiências de trabalho, família e lazer, embora rodeados que estamos dos meios logísticos que a ânsia do conhecimento fez obter, mas que outras motivações levam, quantas vezes, a abandonar.

Do Coro dos Escravos Hebreus  Va pensiero” do III Acto da ópera Nabucco de Verdi, extraio a letra da Internet que traduzo e escuto, com as lágrimas que choraram as mulheres do coro apresentado no espectáculo da Ópera de Milão referido no email. Choravam a sua Itália degradada por um governo em crise económica, em 2011, ou em dependência do Império austro-húngaro, 150 anos antes, como os escravos hebreus chorariam no seu cativeiro de Babilónia. Comovente cena, acompanhando um expressivo e tão belo coro de mágoas num compasso de cansado andamento e apelo à coragem, de apelo político, no caso italiano. De apelo político no nosso caso, caso queiramos rever, no youtube apontado:
Vai, pensamento, sobre as asas douradas,
Vai e pousa sobre as encostas e as colinas
Onde os ares são tépidos e leves,
Os ares doces do solo natal.
Saúda as margens do Jordão,
E as torres derribadas do Sião.
Oh, minha pátria tão bela e perdida!
Oh lembrança tão cara e fatal!
Harpa dourada dos vates fatídicos,
Porque dos salgueiros pendes emudecida?
As lembranças no peito reacende,
Fala-nos do tempo que foi!
Ou do destino de Jerusalém,
Traz-nos um som triste de lamento
Ou que o Senhor te inspire um alento
Que coragem nos dê no sofrimento

 Não, não temos um coro assim, simples e belo. Em termos de lamento, além do fado e da plêiade de poetas que exprime o mundo da dor íntima ou mesmo alheia, e da crença no sebastianismo salvador, em tempo de crise, temos o jogo fónico de sugestão pictural e melódica, própria do simbolismo, no bonito poema de Camilo Pessanha, extraído de “Clépsidra”, publicada em 1920:
«Chorai arcadas
Do violoncelo!
 Convulsionadas,
 Pontes aladas
De pesadelo...

De que esvoaçam,
Brancos, os arcos...
Por baixo passam,
Se despedaçam,
No rio, os barcos.

Fundas, soluçam
Caudais de choro...
Que ruínas, (ouçam)!
Se se debruçam,
Que sorvedouro!...

Trémulos astros,
Soidões lacustres..._
Lemes e mastros...
E os alabastros
Dos balaústres!

Urnas quebradas!
Blocos de gelo..._
 Chorai arcadas,
Despedaçadas,
Do violoncelo.»

Também Álvaro de Campos nos atribui o papel de escravos. Mas fá-lo com desmedido orgulho, e com, paradoxalmente, o desalento intenso de um sentir de nulidade e vacuidade que é toda a sinfonia do extraordinário poema “Tabacaria”:
«Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordámos e ele é opaco,
Levantámo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.»

Mas a nossa escravatura é bem outra, presos que estamos nas lianas da nossa inconsciência cívica, com consequências fatais sobre a nossa perda de identidade.

 

Páginas literárias de uma história real


Não resisto à tentação de incluir no meu blog os três textos de António da Cunha Duarte Justo, publicados no blog “A bem da Nação” sobre os quais fiz um sintético comentário que mal traduz o prazer da sua leitura e o reconhecimento pela clareza, isenção e seriedade do seu autor:
“Verdadeiros textos de antologia histórico-literária, como imagem de um país abocanhado pelas hienas que continuam rindo sem pejo, enquanto lambem os beiços fartos, do sangue da pátria que destruíram ao som da farândola e dos gritos esfuziantes do povo que credulamente caiu na esparrela das suas manobras interesseiras, e continua inocentemente a cair, pois que é feita de slogans, gritos e musiquinhas a sua "democracia" da liberdade sem educação. Um bravo à lucidez da análise e à coragem do arrojo, que infelizmente não colherá grandes louros nem fará escola.”

25 DE ABRIL – O DESPERTAR DUMA ILUSÃO - 1
 
Geração 68 – Revolução Política e Religiosa

A revolução começa no espírito para só depois ganhar expressão política. Já antes do 25 de Abril andávamos todos à procura de bilhetes para a liberdade.

Em 1959, João XXIII responde à ânsia do mundo por inovação e emancipação convidando todo o mundo ao “aggiornamento”, à mudança (1). Dos USA surgiam rajadas de ventos anunciadores da ânsia de emancipação expressa na música Pop, Rock, Blues, Rolling Stones, Beatles, etc. no movimento hippie e no desejo de emancipação sexual.

O mapa do tempo e dos sentimentos públicos era determinado pela baixa pressão soviética e pela alta pressão americana.

Na altura o mundo encontrava-se todo em ebulição. Sob o cenário da “guerra-fria”, proliferavam os cenários das fronteiras ideológicas. As palavras de ordem da altura eram: “Proibido proibir”, “abaixo o Estado”, “seja realista, peça o impossível”, “não confie em ninguém com mais de 30 anos”.

Este clima, além de fomentar ânsias e aspirações, favorecia a constituição de redes revolucionárias desde Moscovo, Cuba, Ásia, América latina, Argélia até ao MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), à Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique) e ao Movimento dos Capitães, depois MFA (Movimento da Forças Armadas portuguesas).

O movimento revolucionário servia-se também da arte para conseguir atingir a juventude e a burguesia pós-guerra. Fermentavam a massa social de então como os WikiLeaks, os Piratas, o Facebook, mainstream, a Internet e a ofensiva cultural árabe no Ocidente fermentam a de hoje.

Manifestava-se a reacção a uma hierarquia repressiva adversa a um novo sentimento de vida. Era o espírito proletário contrariador do estilo burguês a afirmar-se; os filhos da segunda grande guerra formam então uma geração contestatária, a geração 68.

Na sua fuga à culpa e aos ressentimentos provocados pela segunda guerra mundial, a nova geração manifesta-se extremamente sensível à paz, à liberdade e a tudo o que lhe é próprio; inicia uma verdadeira revolução de emancipação que envolve todas as camadas sociais e se manifesta no desenvolvimento tecnológico, na revolução sexual, pílula, droga, etc. Arrumam também com Deus pois não querem reconhecer pai nem mãe.

Neste ambiente o mundo fervia, subindo ao céu, por todo o lado, um grito fumarento de libertação contra a intolerância dos outros. O Maio quente de 68 em Paris torna-se o símbolo duma autêntica revolução cultural em marcha (apesar disso, nesse ano foi assassinado Martim Luther King e falhou também a revolução checa a favor dum socialismo humano).

Movimentos jovens de contestação política vão surgindo por todo o lado, enquanto, paralelamente, os activistas iniciavam uma corrida às instituições instalando-se nelas. A ideologização do movimento levou também à criação de movimentos subversivos que viam em Guevara (assassinado em 1967) o símbolo da resistência.

O movimento dos Capitães de Abril catalisa nele as forças revolucionárias de esquerda, então bem organizadas por todo o mundo, e também o desejo emancipatório febril da juventude num tempo de mudança. A nível político, os espertos da ocasião viam no movimento das forças armadas portuguesas o melhor instrumento para transpor para a Europa (Portugal) a realidade cubana. Na altura, a nossa geração queria mudar o mundo, seguindo ingenuamente os “sinais dos tempos „ propagados e apostando no “efeito borboleta” das pequenas iniciativas. Nesta atmosfera é de compreender os erros cometidos pelos homens de Abril na esperança dum lugar ao Sol e o envolvimento do povo desejoso duma sociedade mais livre e justa.

(continua)

 (1) O Concílio Vaticano II foi anunciado pelo Papa João XXIII a 25.01.1959, iniciado em 1962 e concluído em 1965. Com este encontro global queria-se renovar as estruturas incrustadas e fazer-se um aggiornamento de ideias e práticas em todo o mundo. Por todo o mundo se organizaram iniciativas de mudança que as igrejas nacionais através dos padres conciliares levariam a Roma. O movimento de 68 foi uma versão de estilo secular a uma revolução que o Concílio iniciara antes no sentido espiritual da renovação do Homem todo, no sentido de metanoia de corações e instituições, no sentido de o “Homem” se tornar Homem.

 25 DE ABRIL – O DESPERTAR DUMA ILUSÃO – 2

Ventos frescos nos Corações e nas Instituições

(Um testemunho pessoal)

Na altura (66-71) encontrava-me no Seminário de Manique do Estoril onde, Hippies, Beatles, Concílio Vaticano II e personalidades pacíficas faziam florir, também nos seus pátios, as melhores rosas e os melhores cravos de esperanças virgens de liberdade e irmandade com todo o mundo. Era o tempo da teologia da libertação, das comunidades de vida, de novas ideias e iniciativas, a era duma nova educação, a germinar por todo o lado. Era um tempo jovem!

Lembro-me de, então, organizar no seminário de Manique do Estoril cursos de alfabetização para pessoas adultas da região e, nesses cursos, seguir devotamente o método de Paulo Freire. No ar havia uma simpatia pela revolução cultural de Mao Tsé-Tung e por tudo que cheirasse a inovação (Não se imaginava que ele seria um dos maiores ditadores e aniquiladores de povo). Fiquei com a ideia de que Portugal não era tão hermético como se cria, quando em 1969 mandei vir da China “O Livro Vermelho” de Mao, tendo tido a precaução de, ao encomendá-lo, escrever apenas como remetente: Justo, Instituto, Manique do Estoril. Cerca de um ano depois recebi da China vários exemplares com o meu nome e o endereço completos. Então, fiquei estupefacto com o caso.

O processo revolucionário da geração 68 pensava-o então, numa perspectiva conciliar de religioso, como a continuação genuína da grande revolução iniciada por Cristo (JC) com a diferença que o JC não pretendia como o nazismo, o socialismo, o turbo-capitalismo e o maometanismo impor uma forma de vida à humanidade. O que observava lá fora via-o como consequência do espírito revolucionário pelo bem e pelo bem-comum que se encontrava dentro dos muros do seminário. Este espírito, aliado a um espírito de amor e justiça, impregnava a nossa contestação interna que se expressava em iniciativas teatrais como o “Bom Humor”, o “Festival da Canção” e os “Telejornais”. Na altura rebelavamo-nos contra hábitos e autoridades eclesiásticas legalistas e contra hábitos como a vestidura da batina em iniciativas e teatros engendrados pelo nosso “Grupo do Bom Humor”. O grupo actuava em festas da comunidade e noutras ocasiões com teatros, festivais da canção, telejornais em que a vida do seminário, acontecimentos, atitudes, superiores e personalidades eram passados a pente fino pela crítica humoral.

A título de exemplo: numa festa pública de vestidura da batina, em Manique do Estoril, onde estavam presentes, também, os familiares dos seminaristas que iam receber a batina, o “Grupo do Bom Humor” actuou e na peça teatral ridicularizou tal acto, o que provocou o desconsolo e a reacção da ordem estabelecida. Esta tinha confiado no “bom senso” do “Bom Humor” para abrilhantar a festa. Depois do espectáculo, o director do Instituto chamou a contas o Padre Conselheiro, que era o ponto de ligação institucional com o “Grupo do Bom Humor”. O sacerdote lá se desenfiou como pôde perante o Reitor e tomou a iniciativa de chamar o grupo a contas. Interessado em descobrir quem era o responsável do grupo e para poder estatuir um castigo exemplar, chamou a si, um a um, cada membro do grupo.

Mas, como no grupo eram todos por um e um por todos, cada qual declarou ser o responsável do grupo. Deste modo foi conseguido, com humor e responsabilidade, estoirar com um princípio de toda a autoridade institucional que é: castigar um por todo o rebanho, para que o medo açaime a manada. Assim, o superior não pôde castigar nem o grupo nem ninguém. A solidariedade dum grupo arrasa montanhas. Uma instituição que conseguira acordar o sentido da rebeldia bem canalizada e mantida dentro duma ordem conformista, sente-se agora impotente perante o espírito da responsabilidade que ela mesma propagava. O espírito de liberdade e de respeito pela pessoa, transmitido à imagem da pessoa do protótipo JC era o mesmo que questionava as incrustações de regras, autoridades e instituições. A liberdade da experiência do JC dava-nos força e legitimidade para toda a contestação. Era uma contestação vinda de dentro, não de fora. Perante o JC encontrávamo-nos, superiores e subordinados, na mesma plataforma do Seu seguimento. Este espírito, ajudado pelos novos ares, dava-nos força para quebrar com as correntes do hábito e de obediências cegas a que grande parte dos superiores se encostava regaladamente.

Os mesmos ventos da mudança eram comuns dentro e fora dos muros, embora com diferentes motivos e objectivos. Pessoalmente, mais tarde saltei o muro e na procura de mais liberdade e menos teias de aranha ingressei em partidos diferentes de Portugal e da Alemanha. Uma coisa constatei, o espírito de rebanho e de manada é muitíssimo maior nas instituições seculares do que nas religiosas. Dentro dos muros dos conventos há mais liberdade que fora deles, porque nos conventos, apesar de tudo a pessoa é rei. Quem liberta o espírito e vive dele não conhece o medo da autoridade nem o cálculo da oportunidade!

(continua)

DE ABRIL – O DESPERTAR DUMA ILUSÃO – 3

 
Os oportunistas da Revolução

Veio depois a enxurrada da “revolução” do 25 de Abril e nela entra a arraia-miúda e a arraia graúda, numa viagem paradisíaca, não atenta ao destino nem aos motivos da viagem. Era querida uma orientação monocolor e pretendia-se meter a liberdade em uniformes ideológicos.

O autocarro de Abril partiu e o povo continuou na esperança de chegar a melhor. Sentíamo-nos todos passageiros da liberdade, provindos dos mais diferentes meios, mas querendo construir uma sociedade com lugar ao Sol para todos. Portugal estava todo inteiro, a caminho da liberdade, a caminho dum viver por viver. Então, na rua, nas estações, olhos confidentes se trocavam numa atmosfera que se abria para um futuro risonho de espaços abertos e na sequela dum chamamento de libertação.

Por alguns momentos fomos um povo unido e especial que atraía grupos das esquerdas dos mais diversos países; Portugal era a Roma do turismo político de esquerda tal como era e continuou Cuba depois.

No horizonte, aqui e acolá, nuvens de estragos se vão acumulando. O espírito que motivava os actores da revolução era apenas político sem contemplar o Homem todo nem Portugal no seu todo. Por isso o que a princípio parecia uma revolução, revelou-se, com o tempo, ter sido apenas um golpe de Estado com os benefícios das mudanças que na altura, noutros Estados europeus, acontecia na normalidade. O egoísmo de grupos e “personalidades” da nossa praça, sem escrúpulos, vai-se servindo da Nação, deixando para o povo o sacrifício da abnegação; mandam os Santos para o deserto para se porem a si no nicho da reputação. Os abrilistas ocuparam o céu português e hoje ainda têm o descaramento de desculparem a crise da Nação na culpa dos outros. E o mesmo povo continua a ir na fita pensando que a culpa está neste ou naquele quando ela é bem nossa que continuamos a dar paleio aos que encurralaram a esperanças para si. Aquela alegria, aquela esperança e liberdade da rua que se julgava pública, passaram a ser reservadas para os cínicos do poder que ocuparam o lugar que pertencia ao povo no dia-a-dia, na TV e noutros meios de comunicação social. Foi um sonho de pouca dura mas que levou o povo inocente e bom a interiorizar uma superficialidade libertina e a abdicar da dignidade, da honra e do respeito que provinham duma ética de cunho responsável.

O povo confiante acorda agora molhado. Também deixou de ser família universal com o coração no mundo e nos povos ultramarinos para se tornar num canto europeu, num povo de dançarinos de alma na rua saltando ao som de interesses anónimos e ao ritmo da mesma cor. Construiu-se uma liberdade que guarda a oportunidade para o mais forte, uma liberdade amarrada a ideologias e a interesses alheios e não uma liberdade de visão integral e responsável do não só mas também!

Organizaram-se então campanhas revolucionárias de libertação e de reeducação do povo. Tudo bem-intencionado e preparado para atrair a inocência de crenças nobres. Para se responder ao desejo de inocência procura destruir-se a vergonha. Organizam-se, até em recônditas aldeias, sessões de desflorações virginais em grupo; quer-se o comunismo, tudo maninho, querem-se as meninas, menos as que têm o dono presente; procede-se à queimada de livros de “fachos”, etc. O que não serve a ideologia de alguns deve queimar-se ou arrumar-se. À hora da direita segue-se a da esquerda e vice-versa. Esta é a liberdade confinada aos que agora querem ter razão, como se também esta não fosse processo e só pertencesse a alguns. Agora assistimos ao instinto da inocência a vingar-se na resignação. (A geração de agora tem de reparar os estragos, tem de granjear-se a honra e o respeito que lhe foi roubado).

A liberdade desencadeada deixa no ar o som de cadeados caídos numa revolução descontrolada de libertinagem bárbara que se satisfaz no andar na vida por ver andar os outros. Não há respeito por si mesmo nem pelos outros. Tudo à própria disposição. Uma liberdade adolescente, irresponsável, que não conhece nada nem ninguém; toda ela em nome duma culpa passada. Egoísmo puro que faz do outro cliente do próprio sentimento. A droga é propagada, desinibe e o sexo ajuda a ideologia. Quem trabalhava e fazia pela vida era designado de “facho”. Professores exigentes eram saneados e organizam-se os exames colectivos. Uma das causas da crise portuguesa de hoje está nesse espírito leviano de então que levou os estudantes formados, com as notas do grupo, a ocupar os lugares de responsabilidade das nossas administrações.

Uma revolução que prometia tanto, com tão boa música e fanfarra que abria as portas ao progresso desembocou no beco sem saída duma gula de marcha limitada a ritmos de esquerda-direita; meteu assim a terceira República nos caminhos da bancarrota, tal como aconteceu na primeira. Heróis da revolução, que o povo ainda canta, vivem com ordenados mastodônticos e injuriosos, como nunca na História houve, enquanto muito do povo vegeta com ordenados de miséria que não dão para viver nem para morrer. Tudo acontece e se legitima à sombra duma democracia que querem prostituta.

Partidos, sindicatos, grupos organizados, etc. instalam-se no aparelho do Estado. Numa guerrilha ímpar de aumentar o próprio lucro e “honra” agregam-se à volta do Estado como chulos à volta do bordel. Por todo o lado se encontram guardiães da revolução, cães de guarda duma liberdade oferecida não conquistada mas em benefício de adeptos e adversários. Privilegiados da revolução agarram-se todos ao vermelho da ideologia ou da parceria perdendo o sentido pela riqueza das cores.

A consciência da liberdade partidária negligencia a liberdade pessoal e a descoberta da força das próprias possibilidades. Um na ilusão à espera de Godot, outros na letargia, virados para D. Sebastião; tudo se alinha nas ordens de marcha de grupos e de organizações secretas enlaçadas em coutadas de compadrio e na burocracia. Compra-se o indivíduo para se afirmar a hierarquia.

A caminhada para o futuro viu reduzido o seu horizonte ao 10 de Dezembro de 1910 e aos resquícios liberais napoleónicos. Um tradicionalismo obediente e a fé nas razões do poder não conseguiram quebrar o bolor dum liberalismo mafioso e dum republicanismo ultrapassado, guardado na Nação a sete chaves em gavetas intelectuais seguidoras dos excessos do Marquês de Pombal. A visão ideológica impede o olhar pessoal e regional. Nas pistas dum futuro em liberdade esbarramos connosco, repetindo os erros da primeira República.

No comboio da história, numa alternância de cor, continuam os mesmos lugares reservados para os da nova oportunidade; o povo continua em bicha e sempre à chuva, sempre à espera nas estações, sempre na ânsia dum comboio com carruagens para ele. Esperar na desesperança é a sua condição independentemente da cor da governação. Para se entrar no comboio dos donos da razão e do arrazoar, é preciso um compartimento, um vagão do partido, do sindicato, do compadre, do mação. A História, sem heróis, deixa-se conduzir pela banalidade do quotidiano e afasta-se cada vez mais da arraia-miúda. Esta, por sua vez, revela-se massa, sem consciência, sempre à espera dum revisor que lhe cobre o bilhete. Uma elite à trela dum Estado dominado pela insuficiência partidária e grupal não gera civis livres nem sequer heróis. Produz acomodados e mercenários, gera políticos da capitulação a ideologias e à subserviência boçal, não tolera heróis nem homens bons. Um povo unido tornou-se num povo humilde sempre vencido. Povo, sempre ao toque de caixa dos oportunos e que então aplaudia e agora lamenta.

 

quinta-feira, 25 de abril de 2013

«Lasciate ogni speranza…»


Publicou o Dr. Salles no seu blog um texto intitulado “A Parametrização social” apoiado na seguinte observação colhida num livro de D. Manuel Clemente:

 «A ultrapassagem do metafísico pelo positivo só se sustentou enquanto este último viveu da herança dos estádios anteriores (teológico e metafísico). Porém, o sucessivo afastamento e descuido em relação àquelas fontes deixou-o animicamente esvaído e eticamente desamparado».

 Comentou Salles da Fonseca:

«Este raciocínio de D. Manuel Clemente a págs.40 e seg. do seu livro “PORQUÊ E PARA QUÊ – Pensar com esperança o Portugal de hoje” assenta como uma luva à geração pós-moderna actual.

Contudo, a ética cristã de solidariedade e benevolência para com o próximo, de honradez e de trabalho, tem uma versão laica que pergunta, com enorme simplicidade, «o que é que eu posso fazer por ti sem o prejudicar a ele, esse terceiro que nem sequer conheço?». E esta atitude não carece de fundamento teológico.

No início do século XX, a sociedade portuguesa vivia numa quase hierocracia e foi contra esse domínio que a laicização da ética tentou abrir caminho. Mas não terá conseguido vingar no ambiente de iliteracia que então reinava e hoje, passado um século, continuamos a padecer as consequências desse desencontro.

Uma população tutelada pela ameaça da ira divina, não teve arcaboiço para se harmonizar eticamente sem tutela num espaço que se pretendia republicano, responsável. Aos portugueses, iletrados e habituados a uma estrutura social muito parametrizada, foi então pedido que assumissem uma plena cidadania. Mas, na verdade, nada lhes foi pedido: foi-lhes consumado o facto e, desenquadrados, deixados entregues a si próprios.

E como as elites republicanas se limitaram a copiar as homólogas monárquicas que as tinham antecedido digladiando-se em lutas renhidas pelo Poder, o vulgo continuou ignaro, não opôs resistência quando o mandaram morrer na Flandres e não fez «cara feia» quando apareceu alguém disposto a pôr ordem onde se instalara a desavença constante, o «tira-te tu para me pôr eu», a falência.

Seguiu-se nova parametrização social, rigor financeiro, resfriamento das vontades que se apresentavam aquecidas.

Essa parametrização durou 40 anos. Praticamente tantos como agora levamos de militância pós moderna.

Teremos entretanto conseguido fundamentar a liberdade de que queremos usufruir empreendendo uma síntese do que aprendemos entretanto para nos retomarmos como humanidade? Tenho esta como a questão portuguesa historicamente mais pertinente.

Ou será que não aprendemos nada? E andará por aí alguém com poder de síntese?»

           A síntese do Dr. Salles, que com tanto gosto guardo no meu blog, afigura-se bastante pertinente, apontando dados precisos que, pondo a tónica na incurável iliteracia de que enfermou o povo português ao longo dos séculos, a sua formação para a cidadania dependendo não de valores éticos ou humanistas mas de ameaças punitivas do pecado, numa cultura por longos anos acanhadamente hierática e maniqueísta, o projectou numa incapacidade de evoluirmos num sentido de dignificação e ajustamento a outras formas de pensamento mais equiparáveis à de outros povos que estudam e trabalham e planeiam o futuro das gerações que se lhes seguirão.

          A ele apus o comentário

 «A cultura em Portugal fez-se sempre por processos elitistas, em fracturas estrondosas - entre a cidade e o campo, entre os ricos e os pobres, entre os nobres e a plebe. Nunca houve uma generalização cultural que impusesse o respeito humano sem ser sob o efeito da subserviência ou do favorecimento. Mesmo os méritos são avaliados segundo parâmetros de participação política. A democracia trouxe uma reviravolta que é só aparente, vazia e oca, o povo chamado a manifestar-se, a maioria das vezes não como seres conscientes, mas como rebanho indisciplinado, manipulado pelos condutores instigadores. A nobreza dos valores abstractos, como o sentido de pátria, foi riscada do mapa das consciências, cada um pugnando pelos seus direitos próprios, não pelo estudo e a reflexão, mas pela sensibilidade folclórica que o fado nos inspira. »

 Enquanto, para D. Manuel, o espiritualismo, apoiado nos valores transcendentais, parece dever impor-se sobre os valores do materialismo, Salles da Fonseca põe a tónica na formação racionalista, como fundamental para a tomada de consciência e o reconhecimento dos limites da liberdade, ou da autenticidade do sentido de democracia.

 O dia de hoje, 25 de Abril, mostrou em pleno Parlamento que tal sentido é inexistente para a maioria - nos discursos denegridores dos parlamentares da esquerda, na deselegante falta de aplauso e de respeito pelos discursos da maioria, e do Presidente da República visivelmente preocupados com o estado da Nação, nos comentários posteriores daqueles sobre o discurso do PR – que achei excelente - decididos a apear o Governo, “custe o que custar”, indiferentes ao custo e às consequências gravosas dessa acção. E logo a Opinião Pública no Canal 5 da SIC pôde dar largas a igual ódio “democrático”, que é feita de ódio a sua democracia, ódio orquestrado por toda essa “plebe” dos seus condutores de opinião. Ódio real pelos que defendem a honestidade, falsa solidariedade para com os espoliados dos seus direitos.

Pergunta Salles da Fonseca:

 «Teremos entretanto conseguido fundamentar a liberdade de que queremos usufruir empreendendo uma síntese do que aprendemos entretanto para nos retomarmos como humanidade? Tenho esta como a questão portuguesa historicamente mais pertinente.»
 
          É óbvio que não. Os componentes espirituais e racionais das elites vociferantes estão submersos sob a camada do sentimentalismo adiposo e chiante.