quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

“Camões, grande Camões”


Foi um texto que escrevi aos trinta anos, encontrado entre os papéis salvos da reciclagem. Admirava Camões, lera-lhe o teatro e espantava-me como nas escolas os manuais de literatura não fornecessem sequer um cheirinho das suas qualidades como dramaturgo, ou ao menos integrassem versos da sua dramaturgia – essencialmente lírica e psicológica – entre os seus poemas líricos de estudo obrigatório. Não é um estudo circunspecto, projectando o estudioso tanto quanto a obra estudada. Trata-se de uma análise sem rebuscamentos, como narrativa inspirada subjectivamente na admiração e no encantamento por um génio que nos pertenceu, motivo do nosso amor e do nosso orgulho. E assim transcrevo o texto, do blocozinho que com tanto gosto encontrei, (onde o Ricardo, com sete anos, escreveu também uma carta ao vovô, datada de 65, e a Paulinha, com cinco, escreveu pá, pé, pi, po, pu, umas contas de somar e também um desenho) Fiz, naturalmente, alguns ajustamentos ao texto, para guardar no meu blog e reviver:

«Camões dramaturgo»

«… Espírito verdadeiramente humanista, manejando com facilidade os clássicos latinos, e capaz de abarcar todos os aspectos de uma cultura, quis Camões ensaiar-se igualmente no género dramático, onde, se não atingiu as culminâncias dos outros géneros literários a que se dedicou, não deixamos, em todo o caso, de sentir bem presente a sua personalidade literária inconfundível.
São três as comédias que escreveu. O “Auto dos Anfatriões” o “Auto de El-Rei Seleuco” e o “Auto de Filodemo”. Se o primeiro é directamente inspirado no “Amphytruo” plautino, e o segundo de um episódio narrado por Plutarco na “Vida de Demétrio”, o “Auto de Filodemo” desliza no rasto do teatro vicentino de carácter novelesco.
Trata-se, pois, de um teatro romanesco, um teatro de Amor, de intriga resultante quer de equívoco – “Anfatriões”- quer de incesto – “El-Rei Seleuco” – quer de diferenciação social – “Filodemo”. Não é nele visível a crítica social que marcou o teatro vicentino - embora exista intenção crítica sobre a dialéctica amorosa - nem de profundidade caracterológica, como, um século depois, encontraremos na comédia molieresca em França.
Apesar dos temas clássicos de duas delas, e apesar dos novos ventos classicistas contrários ao uso da redondilha, como já Sá de Miranda e António Ferreira tinham salientado nas comédias em prosa, que escreveram, e na tragédia “Castro” do último, em decassílabo branco, é entre os cantares na medida velha que se incluem os autos camonianos, embora os dois últimos sejam entremeados de prosa e verso. E o lirismo das suas peças tem a mesma leveza e graciosidade e a mesma subtileza na análise do sentimento amoroso, que apresentam as suas cantigas à maneira tradicional. De facto, a essa característica psicológica se resumem, quase unicamente, os conceitos expressos, excluída a intenção de crítica social, embora não o cómico resultante das situações de quiproquó, já existentes na peça de Plauto.
De notar ainda a sua maior unidade em relação às peças de Gil Vicente, unidade proveniente do maior conhecimento que possuía Camões da estrutura das peças clássicas, conhecimento que escapava a Gil Vicente, mas também resultante dos temas de duas delas - de importação – “Anfatriões” e “El-Rei Seleuco” – e focando casos que tinham forçosamente que se deslindar dentro de um prazo limitado de tempo (um dia, segundo a regra clássica das três unidades –( o lugar era convencionalmente o mesmo e a acção sequente e coesa, segundo uma estrutura interna de Exposição, Conflito e Desenlace - a estrutura externa, de várias unidades sequenciais num único acto, como o próprio nome “auto” traduz). Em todo o caso, a unidade de acção não é absoluta, não só pelas cenas em prosa de função vária, mas pelos episódios secundários entre os servidores dos amos, desnecessários para o desenvolvimento da intriga central, embora se tornem natural fonte de cómico. Também no “Auto de Filodemo” não se observa a unidade de lugar, pelo posicionamento da acção em dois espaços.

«Auto dos Anfatriões»

Directamente inspirado do “Amphytruo” de Plauto, o “Auto dos Anfatriões” expõe um tema muito aproveitado pelos comediógrafos clássicos, ou mesmo contemporâneos – Molière, Giraudoux… – ou a “ópera” jocosa do nosso Judeu, “Anfitrião” ou “Júpiter e Alcmena”, do século XVIII. Também a peça “Um Deus dormiu lá em casa” (1949) do escritor brasileiro Guilherme de Figueiredo se inspira no tema, mas alterando jocosamente os dados.
A intriga do auto fundamenta-se, como já na comédia plautina, em um equívoco resultante das semelhanças de dois Anfitriões e de dois Sósias. Esse equívoco é provocado pela paixão de Júpiter por Alcmena - fiel esposa de um general tebano, ausente na guerra – o qual, industriado por Mercúrio, reveste os traços daquele, enquanto, para maior mistificação, Mercúrio adquire os de Sósia, criado de Anfitrião, igualmente na guerra.

É evidente que tal dualidade se prestaria a forte manancial de gargalhadas resultante da estupefacção das personagens reais, ignorantes do quiproquó, sobretudo quando se defrontassem os criados ou mesmo os amos, ou quando se pusessem os dois Anfitriões na presença de Alcmena, caso este que em Camões se não observa.

Exposição:
Entra em cena uma Alcmena enamorada, exprimindo as suas saudades do marido, numa análise de finura psicológica e linguagem conceituosa, pelo paralelismo e o trocadilho:

“Ah! Senhor Anfitrião,
Onde está todo o meu bem!
Pois meus olhos vos não vêem
Falarei com o coração
Que dentro n’alma vos tem.
Ausentes duas vontades,
Qual corre mores perigos,
Qual sofre mais crueldades:
Se vós entre os inimigos,
Se eu entre as saudades.
Que a Ventura que vos traz
Tão longe da vossa terra,
Tantos desconcertos faz,
Que se vos levou à guerra,
Não me quis deixar em paz.”

 Segue-se o diálogo com Brómia, sua criada, num papel de amiga e conselheira - muito generalizado no teatro clássico, para efeito de economia da intriga - a qual exprime observações de um conceito simples mas não banal:

 “Que nunca se viu prazer
Senão quando não se espera”

 “Que a verdadeira afeição
Na longa ausência se prova.”

 A cena entre Brómia e o criado Feliseu, chamado para ir saber novas do amo, enquanto Alcmena ofertará sacrifícios aos deuses pelo marido, em nada contribuirá para a compreensão do nó da intriga. É uma cena secundária, movimentada no diálogo, em que Camões põe em jogo as suas qualidades de diletante do sentimento amoroso, cheio de esquivanças, de zelos e de traições dos namorados.

Um Júpiter muito humano, preso de uma paixão terrena, exprime pateticamente a insensatez dos seus amores, tão inferiores à sua dignidade de pai dos deuses, enquanto ingenuamente observa a sua incompetência para quebrar a virtude de Alcmena. A solução dá-lha o industrioso Mercúrio, por meio de um processo de transformação fácil para o deus soberano: o de revestir as formas de Anfitrião enquanto ele, Mercúrio, tomará as de Sósia. E o ardente namorado, pouco escrupuloso, resolve pôr imediatamente em prática tal estratagema, só estranhando não se ter lembrado dele, atribuindo o facto à cegueira proveniente do seu muito amor:

 Quem arde em tamanho fogo
Tira-lhe a virtude a cor
De subtil e sabedor;
E quem fora está do jogo
Enxerga o lanço melhor.”

Segue-se nova cena secundária, em que Calisto e Feliseu discutem sobre amores e arte de trovar.

 Conflito:

Júpiter e Mercúrio, já transformados respectivamente em Anfitrião e Sósia, analisam os últimos pormenores da mistificação. Surge Alcmena que, naturalmente, mal pode crer nos seus olhos:

 “Vejo eu Anfitrião
Ou a vista me afigura
O que está no coração?”

 Mas Júpiter/Anfitrião desfaz-lhe as dúvidas, numa linguagem preciosa e galante.
É cheia de chiste a cena com o verdadeiro Sósia, que leva a Alcmena um aviso da chegada de Anfitrião ao porto de Tebas.
Notemos, a propósito, a necessidade de, para maior unidade da peça, o verdadeiro Anfitrião regressar nesse dia – desse modo a acção decorrerá no tempo requerido pelas regras da unidade clássica.

 Sósia, feliz, volta da guerra, entoando cânticos sobre a bravura de Anfitrião – ele que é um poltrão – quando lhe sai ao encontro Mercúrio disfarçado em Sósia. Facilmente o astucioso deus o consegue convencer – se não com argumentos ao menos com pancadas – de que o verdadeiro Sósia é ele, Mercúrio. E o pobre Sósia, perplexo, duvida de si, da sua própria razão:

 «Pues luego, si yo no soy yo
Aunque nadie me mató
Soy luego cosa ninguna.
Oh! Dioses, que desconcierto!
Yo por ventura soy muerto,
Ó murió me la razón?
Yo no soy de Anfitrión?
El no me mandó del puerto?
Yo sé que no estoy loco.
De mi madre no nací?
No ando? No hablo aquí?»

 E a seguir:

«Quién seré de aquí adelante
Pues no soy quien de antes era?»

A perplexidade de Sósia, a perda da sua própria identidade, tornam-se magnífica fonte de cómico. Observemos que, ao contrário do criado, nunca Anfitrião perde a consciência da sua personalidade, julgando-se vítima de um engano. Da mesma forma é cheio de comicidade o diálogo entre um Sósia desvairado por não ser ele, e Anfitrião, intrigado com a falta de siso do criado.

O encontro do verdadeiro Anfitrião com Alcmena teria forçosamente que provocar melindres entre os cônjuges: Anfitrião, porque esperava um acolhimento mais expansivo da parte de Alcmena, que há tanto tempo não via, e Alcmena porque não compreendia os exageros do marido, que há poucos momentos a deixara. E ao ser informado da noite que passara com a sua própria mulher, fica furioso e resolve ir à nau buscar o patrão Belferrão, como testemunha idónea de que passara a noite no barco. Mas Alcmena, inocente e cônscia da sua verdade, afirma:

 «Nenhuma coisa me obriga
A que não creia o que vi.»

Pouco depois de Anfitrião se ter retirado, aparece Júpiter/Anfitrião que, com suaves argumentos consegue abrandar os despeitos da ofendida Alcmena.

Traduzindo o próprio pensamento céptico camoniano, um Anfitrião desencantado da vida exprime considerações pessimistas sobre o desconcerto que preside aos bens deste mundo:

«Quis-nos nossa natureza
Com tal condição fazer,
Que já temos por certeza
Não haver grande prazer
Sem mistura de tristeza.

 Este decreto espantoso
Que instituiu nossa sorte
É tal e tão rigoroso
Que ninguém antes da morte
Se pode chamar ditoso.
Com esta justa balança
O fado grande, profundo,
Nos refreia a esperança,
Porque ninguém neste mundo
Busque bem-aventurança.

 Eu, que cuidei de viver
Sempre contente de mi,
Com tamanho rei vencer,
Venho achar minha mulher
De todo fora de si.
Mas de outra parte que digo?
Que se é verdade o que vi,
E o que ela diz é assi,
Virei a cuidar comigo
Que eu sou fora de mi.

 E ao querer penetrar na sua casa, embarga-lhe a entrada Mercúrio – que ele supõe Sósia.
É no inocente Sósia que surge com Belferrão, que vinga a sua sanha de amo desatendido e insultado. E quando aparece Júpiter, o próprio Sósia o reconhece por seu senhor, porque aquele que lhe bate injustamente não pode ser seu amo.
Chegámos a uma cena capital da peça – a do encontro dos dois Anfitriões. Anfitrião não perde nunca a consciência da sua identidade, discute acaloradamente, e embora abandonado por todos, só pensa na vingança:
 «Ah! ira p’ra se não crer,
Em que minha alma se abrasa,
Que me faz ensandecer,
E não me ajuda a romper
As paredes desta casa!
E porque não tenho eu
Forças, que tudo destrua,
Pois que tanto a salvo seu,
Outro acho que possua
A melhor parte do meu?

Eu irei hoje buscar
Quem me ajude a vir queimar
Toda esta casa sem pena,
Donde veja arder Alcmena
Com quem a vejo enganar…»

 Citemos ainda estes expressivos dizeres de Anfitrião, mais calmo, chorando a sua dita perdida, e pensemos no que eles implicam de desdobramento psicológico do eu camoniano, segundo a especificidade temática do seu lirismo:

«Se ver desonra tão clara
Me não tivera o sentido
Totalmente endoudecido,
Que gravemente chorara
Ver tão grande amor perdido!
E quando vejo a verdade
Do nosso amor e amizade
Desfeita com tanta mágoa,
Enchem-se-me os olhos de água
E a alma de saudade.

 Assi, que quis minha estrela,
Para nunca ser contente,
Que agora, estando presente,
Viva mais saudoso dela,
Que quando dela era ausente…»

 Desenlace:
Finalmente, tudo se deslinda, Júpiter resolve desaparecer, depois de os deslumbrar a todos com luz divina. E magnanimamente, a sua voz explica a Anfitrião o estranho caso, prometendo honrar-lhe a geração, com um filho que se chamará Hércules e cujas proezas o imortalizarão.

 «Auto de El-Rei Seleuco» em curta síntese

O «Auto de El-Rei Seleuco» é precedido de um anteacto em prosa, para gáudio dos espectadores, e no qual sobressai a figura do Moço, o “servus” latino, gracioso de resposta sempre pronta em linguagem vulgar e tosca e atitude irrespeitosa, com parentesco também no herói pícaro da novela espanhola.
O assunto da lenda grega supõe-se que o colheu Camões em Petrarca. Trata-se da paixão de Antíoco, filho do Rei Seleuco, por Estratónica, sua madrasta. Levado pelo seu amor de pai, Seleuco cede a mulher ao filho.
A análise do sentimento amoroso em Antíoco, que a ninguém quer revelar a causa do seu sofrer, está feita com bastante perspicácia e eloquência. Da mesma forma nos parece a reacção da rainha ao saber do amor do enteado. Confessa à criada ( e confidente) Frolalta que o amava como a um filho – não podemos esquecer que é uma mulher digna, como logo na primeira cena, em, conversa com o marido revelara. Em todo o caso, não suporta a ideia de que Antíoco morra e deseja morrer com ele. Esse seu desejo acaba por traí-la, denunciando a sua paixão pelo enteado:

 “Sejamos juntos na morte
Pois o não somos na vida.”

E lamenta ter-se casado com Seleuco por interesse:

“Que não há mor desvario
Que o forçado casamento
Por alcançar alto assento;
Que enfim todo o senhorio
Está no contentamento.”

Há alguma inverosimilhança na atitude do rei Seleuco, em face da alternativa malabarística apresentada pelo médico de ver o filho morrer ou dar-lhe a própria mulher em casamento. É pobre de emoção, de debate interior, a sua reacção bonacheirona de ceder a mulher ao filho, desejando festas e alegria, quando pouco antes elogiara a mulher como causa do seu remoçamento, pelo muito amor que esta lhe inspirava.
Não podemos, como paralelo, deixar de referir que, com idêntico tema, compôs Racine uma tragédia, onde a tirania e a vileza das paixões, fizeram de “Phèdre” uma obra-prima do teatro de todos os tempos.
Mas não se trata esta peça de tragédia e o próprio Mordomo, ou “dono da casa” a apresenta como “Isopete”, isto é, uma farsa com moralidade, à maneira de Esopo, segundo o Autor humorista:

 “Eis, Senhores, o Autor, por me honrar nesta festival noite, me quis representar uma farsa; e diz que, por não se encontrar com outras já feitas, buscou uns novos fundamentos para a quem tiver um juízo assi arrazoado satisfazer. E diz que quem se dela não contentar, querendo outros novos acontecimentos, que se vá aos soalheiros dos escudeiros da Castanheira, ou de Alhos Vedros e Barreiro, ou converse na Rua Nova em casa do boticário, e não lhe faltará que conte. Porém, diz o Autor que usou nesta obra da maneira de Isopete. Ora, quanto à obra, se não parecer bem a todos, o Autor diz que entende dela menos que todos os que lha puderem emendar. Todavia, isto é para praguentos, aos quais diz que responde com um dito de um filósofo que diz: “Vós outros estudastes para praguejar, e eu para desprezar praguentos”. E contudo quero saber da farsa, em que ponto vai. Moço! Lançarote!»

 3- Auto de Filodemo

 Também o “Auto de Filodemo” é entremeado de prosa e verso. Filia-se nas tragicomédias vicentinas de tipo novelesco, a “Comédia de Rubena”, “D. Duardos”.

Antes de se entrar propriamente em acção, expõe-se, em prosa, o argumento do Auto: duas crianças nascidas de um fidalgo português e de uma princesa dinamarquesa, fugida de casa com o amado, numa galé que naufraga e donde só ela escapa, acabando por morrer depois de as dar à luz, foram recolhidas, por um pastor que lhes chamou Filodemo e Florimena. Aquele acaba por ir para a cidade servir a um D. Lusidardo que se prova mais tarde ser seu tio, apaixonando-se por sua prima Dionisa. Florimena fica com o pastor, guardando-lhe o gado. Um filho de D. Lusidardo, Venadoro, andando à caça, encontra a jovem e dela se enamora, pela sua beleza e o seu espírito pouco em harmonia com o ambiente em que vive. Não regressa a casa, e quando o pai o encontra, vê-o transformado em humilde cabreiro. O reconhecimento da sua alta estirpe é feito pelo pastor que salvara os dois irmãos, afinal primos dos filhos de D. Lusidardo, pelo que os respectivos casamentos se tornam possíveis.

A acção desdobra-se, assim, em dois andamentos: o primeiro em torno do par Filodemo- Dionisa, o segundo em torno do par Florimena – Venadoro, com cenas intermédias entre personagens secundárias, ou mesmo em prosa, entre principal (Filodemo) e secundária (Duriano, seu amigo), sobre a dialéctica de oposição entre o amor pela passiva (platónico, que se satisfaz na contemplação) e o amor pela activa (o de Duriano em que “ela há-de ser a paciente e eu agente”). É, de resto, sobre a análise do sentimento do amor e os seus efeitos que versam as falas das personagens principais, e mesmo de secundárias, como Solina, intermediária nos amores da ama Dionisa, espécie de Celestina ou alcoviteira, e ela própria também interessada por Duriano.

 Filodemo faz considerações sobre o seu próprio caso, sobre a ambição que nele implica o ter-se enamorado de uma jovem doutra posição. Acaba por saber, através de Solina, que lhe não é indiferente, e em linguagem rebuscada, tão invulgar em criado, responde a Solina, admirada de que ele seja “amante tão fino”.

As manifestações do sentimento do amor em Dionisa parecem-nos das mais completas do teatro camoniano, lembrando as comédias psicológicas de Marivaux, no séc. XVIII. “Le Jeu de l’Amour et du Hasard”, por exemplo, versa um tema parecido: dois jovens de posições distintas que  supõem o outro de baixa condição, porque ambos se vestem de criados, para poderem avaliar melhor o pretendente (da escolha paterna) e que insensivelmente se enamoram, embora contrariados, devido ao equívoco, em virtude do espírito que ambos revelam nos seus diálogos.

Dionisa procura lugares onde possa praticar com a criada sobre o jovem Filodemo que ama, embora com despeito, por aquele ser seu criado. Exalta-se contra Solina porque revelou a Filodemo que a ama escutava os seus cantares, assim denunciando o seu interesse por ele, tal que descera a ouvir a conversa dos criados. Afirma que receia a indiscrição de Filodemo. Solina, porém, tranquiliza-a dizendo-lhe:

 “Que qualquer segredo nele
É como pedra num poço.”

 Dionisa tem um rebate de orgulho:

 “E eu que segredo quero
De um criado de meu pai?”

 Pretende mostrar-se desdenhosa e altiva, mas deixa transparecer ironia ciumenta ao ver como a criada o escuta com prazer, ou talvez como pretexto para dele falar:

“Então vós, gentil donzela,
Folgais muito de o ouvir?”

 Solina não a desmente. Mas adianta que o prazer que sente resulta de que as suas conversas só versam sobre a ama. De resto, a própria Dionisa lhe pedira que fosse falar com ele. Dionisa não quer dar o braço a torcer e finge-se trocista e agreste:

 “Disse-vo-lo assi zombando.
Vós logo o tomais em grosso
Tudo quanto me escutais.
Parvo! Que vê-lo não posso!”

Defende-se com o pai e o irmão que, se viessem a descobrir esses amores

 “Não há ele de folgar.”

E, finalmente, manda a criada buscar almofadas para lavrar:

 “Que em cousas tão mal olhadas
Não se há o tempo de gastar.”

 A esperta Solina conhece lindamente a ama e traça-nos o quadro das suas transformações de comportamento e das suas contradições:

 “Quem a vira o outro dia
Um poucochinho agastada,
Dar no chão com a fantasia,
Toda noutra transformada!
Outro dia lhe ouvirão
Lançar suspiros a molhos,
E com a imaginação
Cair-lhe a agulha da mão,
E as lágrimas dos olhos!

Ouvir-lhe-eis, à derradeira,
A ventura maldizer,
Porque a foi fazer mulher.
Então diz que quer ser freira,
E não se sabe entender.
Então gaba-o de discreto
De músico e bem disposto
De bom corpo e de bom rosto.
Quant’a então eu vos prometo
Que não tem dele desgosto.

 Despois, se vem a atentar,
Diz que é muito mal feito
Amar homem deste jeito;
E que não pode alcançar
Pôr seu desejo em efeito.
Logo se faz tão senhora,
Logo lhe ameaça a vida,
Logo se mostra nessa hora
Muito segura de fora,
E de dentro está sentida.

Quando regressa com a almofada pedida, a ama revela as suas inquietações e enfadamentos de mulher prisioneira, a quem não é permitido expandir, como aos homens, os seus sofrimentos - a condição feminina, não ainda de marginalização mas de limitação, já perceptível, como, de resto, também o fora na farsa " Inês Pereira” de Gil Vicente:

 Bofé, que estava em cuidado,
Que é muito para haver dó
Da mulher que vive amando.
Que um homem pode passar
A vida mais ocupado:
Com passear, com caçar,
Com correr, com cavalgar,
Forra parte do cuidado.

Mas a coitada
Da mulher sempre encerrada,
Que não tem contentamento,
Não tem desenfadamento
Mais que agulha e almofada?”

 Ao ler a carta de Filodemo, que lhe apresenta Solina, finge inicialmente desconhecer o seu autor, mas finalmente:

 “Certo que é de quem temo,
Que os ditos que nele achei
São todos de Filodemo.

 “Este homem, que atrevimento
É este que foi tomar?
Qual será seu fundamento
Que mil vezes me faz dar
Mil voltas ao pensamento?
Não entendo dele nada.
Mas inda que isto é assi,
Me sinto tão alterada
Que me arreceio de mi.”

 Solina sossega-lhe o espírito, comentando que o querer bem é natural e que, segundo ouvira já, Filodemo era de alta geração.  Dionisa está finalmente rendida, embora preocupada com a opinião pública:

“Tudo isso cuido e vi
Mil vezes miudamente;
Mas estas mostras assi
São desculpas para mi,
E não para toda a gente.”

Também a paixão lhe faz perder o apetite e o desejo de ver gente:

“Oh! Quem pudera escusar
De comer, nem de ver gente!”

“Irei, mas não por jantar
Que quem vive descontente
Mantém-se de imaginar.”

 Paralelo com o romance Filodemo-Dionisa, no espaço da casa de D. Lusidardo, processa-se o de Venadoro-Florimena, no espaço do monte com uma fonte. É encantadora e cheia de lirismo e graciosidade a cena do enamoramento entre os dois jovens, reveladora de um espírito forjado no maneirismo retórico e conceptual a lembrar o petrarquismo e os cantares na medida velha.

 Venadoro:
“Oh! Que formosa serrana
À vista se me oferece!
Deusa dos montes parece
E se é certo que é humana,
O monte não na merece.-

Pastora tão delicada,
De gesto tão singular,
Parece-me que em lugar
De perguntar pela estrada
Por mim lhe hei-de perguntar.

Até qui sempre zombei
De qualquer outra pessoa
Que afeiçoada topei,
Mas agora zombarei
De quem se não afeiçoa.

Serrana, cuja pintura
Tanto a alma me moveu,
Dizei-me: Por qual ventura
Andareis nesta espessura
Merecendo estar no céu?

 Florimena:
Tamanho inconveniente
Andar na serra parece?
Pois a ventura da gente
Sempre é muito diferente
Da que, ao parecer, merece.

Venadoro:
Tal resposta é manifesto
Não se aprender entre as cabras.
Pois não vos parece honesto
Saberdes matar co gesto
Senão inda com palavras.

 No mato tudo é rudeza:
Há tal gesto e discrição?
Não no creio:

Florimena:
Porque não?
Não suprirá natureza
Onde falta criação?

Venadoro:
Já logo nisso, Senhora,
Dizeis, se não sinto mal,
Que do vosso natural
Não era serdes pastora.

 Florimena:
Digo, mas pouco me vale.

 Venadoro:
Pois quem vos pôde trazer
À conversação do monte?

 Florimena:
Perguntai-o a essa fonte,
Que as cousas duras de crer,
Um as faça, outro as conte.

Venadoro:
Esta fonte que está aqui,
Que sabe do que dizeis?

 Florimena:
Senhor, mais não pergunteis
Porque outra cousa de mim,
Sabei que não sabereis.
De vós agora sabei
O que não tendes sabido:
Se quereis água, bebei;
Se andais, por dita, perdido
Eu vos encaminharei.

 Venadoro:
Senhora, eu não vos pedia
Que ninguém me encaminhasse;
Que o caminho que eu queria
Se o eu agora achasse,
Mais perdido me acharia.
Não quero passar daqui
E não vos pareça espanto,
Que em vos vendo me rendi,
Porque quando me perdi,
Não cuidei de ganhar tanto.

 Florimena:
Senhor, quem na serra mora,
Também entende a verdade
Dos enganos da cidade,
Vá-se embora ou fique embora
Qual for mais sua vontade.

Venadoro:
Oh! Lindíssima donzela
A quem ventura ordena
Que me guie como estrela!
Quereis-me deixar a pena
E levar-me a causa dela?!
E já que vos conjurastes
Vós e Amor para matar-me
Oh! Não deixeis de escutar-me!
Pois a vida me tirastes
Não me tireis o queixar-me!”

Não nos parece longa a distância que separa esta discreta Florimena, da donzela espirituosa, feminina, graciosa e rebelde do teatro marivaudesco, dois séculos mais tarde.

 A mudança que o amor provoca nos seres é bem expressa neste diálogo entre Lusidardo e Venadoro:

 Lusidardo:
“Oh! Venadoro, meu filho!
És tu este?

 Venadoro:
Tal estou
Que julgo que este não sou.

Lusidardo
Certo que me maravilho
De quem tanto te mudou!
Como estás assi mudado
No rosto e no vestido?

Venadoro
Ando já todo trocado
Tanto que fiquei pasmado
De como fui conhecido.”

 Enquanto Lusidardo procura o filho perdido no monte, em casa, Dionisa, não menos perdida, expande junto de Solina as contradições e ânsias em que vive, em dialéctica de sofrimento a que a própria psicanálise responderá hoje:

“Oh! Solina, minha amiga,
Que todo este coração
Tenho posto em vossa mão!
Amor me manda que diga
Vergonha me diz que não.
Que farei?
Como me descobrirei?
Porque a tamanho tormento
Mais remédio lhe não sei,
Que entregá-lo ao sofrimento.

 Meu pai muito entristecido
Se vai pela serra erguida,
Já da vida aborrecido,
Buscando o filho perdido,
Tendo a filha cá perdida!
Sem cuidar, foi a casa encomendar
A quem destruir-lha quer.
Olhai que gentil saber,
Que vai comigo leixar
Quem me não leixa viver.”

E, não resistindo, concerta com a criada um encontro com Filodemo,

“Para ver
Se é por ventura verdade
O que dizeis que me quer.”

Mas quando aquele lhe aparece, o mesmo embaraço a toma:

 “Agora me quisera eu
Daqui cem mil léguas ver.”

Filodemo exprime exaltadamente o seu amor e o desejo de se sacrificar para lho provar. Dionisa manifesta uns últimos rebates de altivez:

“Nesse deserto apartado
De toda a conversação
Merecíeis degradado
Por justiça. Com pregão,
Que dissesse: “Por ousado”.
E eu também merecia
Metida a grave tormento,
Pois que, como não devia,
Vim a dar consentimento
A tão sobeja ousadia.”

 Mas o sofrimento e a humildade de Filodemo comovem-na e, ao querer dar-lhe uma resposta cabal, pede a Solina que o faça por ela, pois

 “Já não tenho em mim poder,
Segundo me sinto agora,
Para poder responder.”

 Enfim, um remate de ficção cor de rosa resulta da descoberta da nobreza dos dois jovens e do seu parentesco com D. Lusidardo e os filhos. Já encontráramos esse enredo de fantasia em Gil Vicente, na tragicomédia “D. Duardos”, por exemplo, onde o hortelão não passa de um príncipe disfarçado, apaixonado pela princesa Flérida, e outras peças de igual cariz romanesco, próprias dos enredos fantásticos de cavalaria do ciclo bretão e outas lendas em que o maravilhoso imperava.

 Cingimo-nos, nesta peça, à análise dos dois casos de “travesti” amoroso que o destino conduziu a bom porto, abandonando cenas e personagens secundárias, por efeitos de maior coesão. O objectivo foi, realmente, o de reviver momentos de prazer literário há muito sentidos, na estranheza pela indiferença pedagógica pela faceta dramática de Luís de Camões.


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