sábado, 7 de dezembro de 2013

“Às vezes é no meio do silêncio”

Foi, de facto, em meio do silêncio, numa entrevista a Cavaco Silva sobre o homem do ruído merecido – Nelson Mandela - que as palavras da tão bonita canção de Maria Guinot – “Silêncio e tanta gente” - me vieram à memória, enquanto me extasiei com a simplicidade altiva e corajosa de um homem a quem muito eu admirara nos seus tempos de primeiro ministro, e sucessivamente fora provocando desconcertantes sentimentos ora de desdém, ora de pena e desejo de apoio a esse homem tantas vezes enxovalhado, quer pelos partidos da esquerda quer pelos intelectuais de direita a quem as indecisões de Cavaco Silva, como Presidente da República, nem sempre são de molde a uma compreensão paciente da turba ruidosa em que nos tornámos, na dificuldade sentida de uma sucessiva degradação económica e moral.

Do meu livro “Anuário- Memórias Soltas” transcrevo o texto “Figuras de Papelão”, prova dessa admiração e do repúdio, nesses anos de 95, por entrevistadores de um exibicionismo de intelectualidade grosseira, com as suas questões em que a indelicadeza era a pedra de toque para destruir mitos e aparentemente erguer anões:

“Figuras de papelão”
«Três protagonistas. Uma entrevista pouco cívica. Um cenário macabro, de figuras de cartão envolvendo-os circularmente, símbolos hílares e grotescos de sardónicas intenções desfeiteadoras.

Um gigante enfrentando dois anões: bem-falantes, escudados nos seus textos, o rosto severo tentando afanosamente denunciar as irregularidades de um comportamento ambíguo. Truques de uma sagacidade antiga, bem presentes nas velhas fábulas clássicas. O leão escouceado à beira da morte pelo próprio burro, o leão impotente ante o mosquito astuto, a rã inchando a rivalizar com o boi…

Um gigante. Defendendo-se sem impaciência das críticas perversas e estouvadas, imagem de segurança e honestidade, cônscio do seu papel de vários anos de um trabalho empenhado, de irrefutável intenção patriótica: erguer o país do atoleiro, criar estruturas para uma continuidade possível, fazer obra necessária, embora sempre atropelado pelos defensores das ideologias fáceis, quando manipuladas na sombra de oposições palreiras e velhacamente destrutivas.
Um gigante. Num país de muitos anões, protagonizados no cerco das figuras de papelão de um cenário agressivo, enxovalhante e lorpa e nos entrevistadores soturnos, de ataque pouco educado e ingrato, às reais qualidades do entrevistado preferindo sobrepor o sensacionalismo das acusações ligeiras, em propósito exibicionista de pseudo-agudeza crítica.
Sem efeito, contudo.
Porque breve se impunha o magnetismo do gigante, na sua personalidade sóbria, consciente do seu valor e do trabalho feito.
Um gigante. Cavaco Silva.»

Ontem ouvi Cavaco Silva, e juntamente  Frederik de Klerk, último presidente branco da África do Sul. Falaram daqueles tempos da libertação de Mandela, em que de Klerk teve acção predominante quer na extinção do apartheid quer na mudança do governo concedido a um natural sul africano negro, e com isso tendo de enfrentar a oposição dos brancos e as violências desencadeadas. Graças a essa figura de grande envergadura moral que foi Mandela, a passagem do testemunho foi conseguida modelarmente, mostrando-se de Klerk um homem de grande coragem e dimensão moral, e a nação sul africana um país modelo, igualmente, entre as várias nações de África, entregues a chefes as mais das vezes ambiciosos e sem escrúpulos.
Nelson Mandela foi figura de doçura, dos deuses amado, a merecer a explosão das homenagens e admiração mundiais. Mas admirei, na entrevista, de Klerk e a sua coragem e dimensão humana. E igualmente Cavaco Silva, que merecera, pouco antes, os rugidos de parte da assembleia, ao dar-se conhecimento de que aquele, em tempos, não fora adepto da saída de Mandela da sua prisão. Na sua voz calma, expôs conceitos e razões, mostrou-se o homem corajoso e altivo, de quem prossegue na sua linha de firmeza e responsabilidade, indiferente ao clamor, apesar do desprezo da intelectualidade inerte. Gostei muito da reportagem no Canal 1.
E lembrei a linda melodia de Maria Guinot, como retrato desse homem silencioso mas eficaz, nos altos e baixos de uma actuação profundamente difícil, a que devíamos ser mais gratos. A canção de Maria Guinot, na solidão como tema, pode bem retratar a figura de Cavaco Silva, nos escolhos de uma governação penosa, num mundo de gente que “grita” “em qualquer lugar”:

“Silêncio e tanta gente”
«Às vezes é no meio do silêncio
Que descubro o amor em teu olhar
É uma pedra
Ou um grito
Que nasce em qualquer lugar

Às vezes é no meio de tanta gente
Que descubro afinal aquilo que sou
Sou um grito
Ou sou uma pedra
De um lugar onde não estou

Às vezes sou também
O tempo que tarda em passar
E aquilo em que ninguém quer acreditar

Às vezes sou também
Um sim alegre
Ou um triste não
E troco a minha vida por um dia de ilusão
E troco a minha vida por um dia de ilusão

Às vezes é no meio do silêncio
Que descubro as palavras por dizer
É uma pedra
Ou um grito
De um amor por acontecer

Às vezes é no meio de tanta gente
Que descubro afinal p'ra onde vou
E esta pedra
E este grito
São a história d'aquilo que sou»

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