Foi
um texto que escrevi aos trinta anos, encontrado entre os papéis salvos da
reciclagem. Admirava Camões, lera-lhe o teatro e espantava-me como nas escolas
os manuais de literatura não fornecessem sequer um cheirinho das suas qualidades
como dramaturgo, ou ao menos integrassem versos da sua dramaturgia –
essencialmente lírica e psicológica – entre os seus poemas líricos de estudo
obrigatório. Não é um estudo circunspecto, projectando o estudioso tanto quanto
a obra estudada. Trata-se de uma análise sem rebuscamentos, como narrativa
inspirada subjectivamente na admiração e no encantamento por um génio que nos
pertenceu, motivo do nosso amor e do nosso orgulho. E assim transcrevo o texto,
do blocozinho que com tanto gosto encontrei, (onde o Ricardo, com sete anos,
escreveu também uma carta ao vovô, datada de 65, e a Paulinha, com cinco,
escreveu pá, pé, pi, po, pu, umas contas de somar e também um desenho) Fiz,
naturalmente, alguns ajustamentos ao texto, para guardar no meu blog e reviver:
«Camões dramaturgo»
«…
Espírito verdadeiramente humanista, manejando com facilidade os clássicos
latinos, e capaz de abarcar todos os aspectos de uma cultura, quis Camões
ensaiar-se igualmente no género dramático, onde, se não atingiu as culminâncias
dos outros géneros literários a que se dedicou, não deixamos, em todo o caso,
de sentir bem presente a sua personalidade literária inconfundível.
São
três as comédias que escreveu. O “Auto dos Anfatriões” o “Auto de
El-Rei Seleuco” e o “Auto de Filodemo”. Se o primeiro é directamente
inspirado no “Amphytruo” plautino, e o segundo de um episódio narrado por
Plutarco na “Vida de Demétrio”, o “Auto de Filodemo” desliza no rasto do teatro
vicentino de carácter novelesco.
Trata-se,
pois, de um teatro romanesco, um teatro de Amor, de intriga resultante quer de
equívoco – “Anfatriões”- quer de incesto – “El-Rei Seleuco” –
quer de diferenciação social – “Filodemo”. Não é nele visível a crítica
social que marcou o teatro vicentino - embora exista intenção crítica sobre a
dialéctica amorosa - nem de profundidade caracterológica, como, um século
depois, encontraremos na comédia molieresca em França.
Apesar
dos temas clássicos de duas delas, e apesar dos novos ventos classicistas
contrários ao uso da redondilha, como já Sá de Miranda e António Ferreira
tinham salientado nas comédias em prosa, que escreveram, e na tragédia “Castro”
do último, em decassílabo branco, é entre os cantares na medida velha que se
incluem os autos camonianos, embora os dois últimos sejam entremeados de prosa
e verso. E o lirismo das suas peças tem a mesma leveza e graciosidade e a mesma
subtileza na análise do sentimento amoroso, que apresentam as suas cantigas à
maneira tradicional. De facto, a essa característica psicológica se resumem,
quase unicamente, os conceitos expressos, excluída a intenção de crítica
social, embora não o cómico resultante das situações de quiproquó, já
existentes na peça de Plauto.
De
notar ainda a sua maior unidade em relação às peças de Gil Vicente, unidade proveniente
do maior conhecimento que possuía Camões da estrutura das peças clássicas,
conhecimento que escapava a Gil Vicente, mas também resultante dos temas de
duas delas - de importação – “Anfatriões” e “El-Rei Seleuco” – e focando casos que
tinham forçosamente que se deslindar dentro de um prazo limitado de tempo (um
dia, segundo a regra clássica das três unidades –( o lugar era
convencionalmente o mesmo e a acção sequente e coesa, segundo uma estrutura
interna de Exposição, Conflito e Desenlace - a estrutura externa, de várias
unidades sequenciais num único acto, como o próprio nome “auto” traduz). Em
todo o caso, a unidade de acção não é absoluta, não só pelas cenas em prosa de
função vária, mas pelos episódios secundários entre os servidores dos amos,
desnecessários para o desenvolvimento da intriga central, embora se tornem natural
fonte de cómico. Também no “Auto de Filodemo” não se observa a unidade de
lugar, pelo posicionamento da acção em dois espaços.
«Auto dos Anfatriões»
Directamente
inspirado do “Amphytruo” de Plauto, o “Auto dos Anfatriões” expõe
um tema muito aproveitado pelos comediógrafos clássicos, ou mesmo contemporâneos
– Molière, Giraudoux… – ou a “ópera” jocosa do nosso Judeu, “Anfitrião” ou
“Júpiter e Alcmena”, do século XVIII. Também a peça “Um Deus dormiu lá em
casa” (1949) do escritor brasileiro Guilherme de Figueiredo se inspira no
tema, mas alterando jocosamente os dados.
A
intriga do auto fundamenta-se, como já na comédia plautina, em um equívoco
resultante das semelhanças de dois Anfitriões e de dois Sósias. Esse equívoco é
provocado pela paixão de Júpiter por Alcmena - fiel esposa de um general tebano,
ausente na guerra – o qual, industriado por Mercúrio, reveste os traços
daquele, enquanto, para maior mistificação, Mercúrio adquire os de Sósia,
criado de Anfitrião, igualmente na guerra.
É
evidente que tal dualidade se prestaria a forte manancial de gargalhadas
resultante da estupefacção das personagens reais, ignorantes do quiproquó,
sobretudo quando se defrontassem os criados ou mesmo os amos, ou quando se
pusessem os dois Anfitriões na presença de Alcmena, caso este que em Camões se
não observa.
Exposição:
Entra
em cena uma Alcmena enamorada, exprimindo as suas saudades do marido, numa
análise de finura psicológica e linguagem conceituosa, pelo paralelismo e o trocadilho:
“Ah! Senhor Anfitrião,
Onde está todo o meu bem!
Pois meus olhos vos não vêem
Falarei com o coração
Que dentro n’alma vos tem.
Ausentes duas vontades,
Qual corre mores perigos,
Qual sofre mais crueldades:
Se vós entre os inimigos,
Se eu entre as saudades.
Que a Ventura que vos traz
Tão longe da vossa terra,
Tantos desconcertos faz,
Que se vos levou à guerra,
Não me quis deixar em paz.”
Segue-se
o diálogo com Brómia, sua criada, num papel de amiga e conselheira - muito
generalizado no teatro clássico, para efeito de economia da intriga - a qual
exprime observações de um conceito simples mas não banal:
“Que
nunca se viu prazer
Senão
quando não se espera”
“Que
a verdadeira afeição
Na
longa ausência se prova.”
A
cena entre Brómia e o criado Feliseu, chamado para ir saber novas do amo, enquanto
Alcmena ofertará sacrifícios aos deuses pelo marido, em nada contribuirá para a
compreensão do nó da intriga. É uma cena secundária, movimentada no diálogo, em
que Camões põe em jogo as suas qualidades de diletante do sentimento amoroso,
cheio de esquivanças, de zelos e de traições dos namorados.
Um
Júpiter muito humano, preso de uma paixão terrena, exprime pateticamente a
insensatez dos seus amores, tão inferiores à sua dignidade de pai dos deuses,
enquanto ingenuamente observa a sua incompetência para quebrar a virtude de
Alcmena. A solução dá-lha o industrioso Mercúrio, por meio de um processo de
transformação fácil para o deus soberano: o de revestir as formas de Anfitrião
enquanto ele, Mercúrio, tomará as de Sósia. E o ardente namorado, pouco
escrupuloso, resolve pôr imediatamente em prática tal estratagema, só
estranhando não se ter lembrado dele, atribuindo o facto à cegueira proveniente
do seu muito amor:
Quem
arde em tamanho fogo
Tira-lhe
a virtude a cor
De
subtil e sabedor;
E
quem fora está do jogo
Enxerga
o lanço melhor.”
Segue-se
nova cena secundária, em que Calisto e Feliseu discutem sobre amores e arte de
trovar.
Conflito:
Júpiter
e Mercúrio, já transformados respectivamente em Anfitrião e Sósia, analisam os
últimos pormenores da mistificação. Surge Alcmena que, naturalmente, mal pode
crer nos seus olhos:
“Vejo
eu Anfitrião
Ou
a vista me afigura
O
que está no coração?”
Mas
Júpiter/Anfitrião desfaz-lhe as dúvidas, numa linguagem preciosa e galante.
É
cheia de chiste a cena com o verdadeiro Sósia, que leva a Alcmena um aviso da
chegada de Anfitrião ao porto de Tebas.
Notemos,
a propósito, a necessidade de, para maior unidade da peça, o verdadeiro
Anfitrião regressar nesse dia – desse modo a acção decorrerá no tempo requerido
pelas regras da unidade clássica.
Sósia,
feliz, volta da guerra, entoando cânticos sobre a bravura de Anfitrião – ele
que é um poltrão – quando lhe sai ao encontro Mercúrio disfarçado em Sósia.
Facilmente o astucioso deus o consegue convencer – se não com argumentos ao
menos com pancadas – de que o verdadeiro Sósia é ele, Mercúrio. E o pobre
Sósia, perplexo, duvida de si, da sua própria razão:
«Pues luego, si yo no soy yo
Aunque nadie me mató
Soy luego cosa ninguna.
Oh! Dioses, que desconcierto!
Yo por ventura soy muerto,
Ó murió me la razón?
Yo no soy de Anfitrión?
El no me mandó del puerto?
Yo sé que no estoy loco.
De mi madre no nací?
No ando? No hablo aquí?»
E a seguir:
«Quién seré de aquí adelante
Pues no soy quien de antes era?»
A
perplexidade de Sósia, a perda da sua própria identidade, tornam-se magnífica
fonte de cómico. Observemos que, ao contrário do criado, nunca Anfitrião perde
a consciência da sua personalidade, julgando-se vítima de um engano. Da mesma
forma é cheio de comicidade o diálogo entre um Sósia desvairado por não ser ele,
e Anfitrião, intrigado com a falta de siso do criado.
O
encontro do verdadeiro Anfitrião com Alcmena teria forçosamente que provocar
melindres entre os cônjuges: Anfitrião, porque esperava um acolhimento mais
expansivo da parte de Alcmena, que há tanto tempo não via, e Alcmena porque não
compreendia os exageros do marido, que há poucos momentos a deixara. E ao ser
informado da noite que passara com a sua própria mulher, fica furioso e resolve
ir à nau buscar o patrão Belferrão, como testemunha idónea de que passara a
noite no barco. Mas Alcmena, inocente e cônscia da sua verdade, afirma:
«Nenhuma
coisa me obriga
A
que não creia o que vi.»
Pouco
depois de Anfitrião se ter retirado, aparece Júpiter/Anfitrião que, com suaves
argumentos consegue abrandar os despeitos da ofendida Alcmena.
Traduzindo
o próprio pensamento céptico camoniano, um Anfitrião desencantado da vida
exprime considerações pessimistas sobre o desconcerto que preside aos bens
deste mundo:
«Quis-nos
nossa natureza
Com
tal condição fazer,
Que
já temos por certeza
Não
haver grande prazer
Sem
mistura de tristeza.
Este
decreto espantoso
Que
instituiu nossa sorte
É
tal e tão rigoroso
Que
ninguém antes da morte
Se
pode chamar ditoso.
Com
esta justa balança
O
fado grande, profundo,
Nos
refreia a esperança,
Porque
ninguém neste mundo
Busque
bem-aventurança.
Eu,
que cuidei de viver
Sempre
contente de mi,
Com
tamanho rei vencer,
Venho
achar minha mulher
De
todo fora de si.
Mas
de outra parte que digo?
Que
se é verdade o que vi,
E
o que ela diz é assi,
Virei
a cuidar comigo
Que
eu sou fora de mi.
E
ao querer penetrar na sua casa, embarga-lhe a entrada Mercúrio – que ele supõe
Sósia.
É
no inocente Sósia que surge com Belferrão, que vinga a sua sanha de amo
desatendido e insultado. E quando aparece Júpiter, o próprio Sósia o reconhece
por seu senhor, porque aquele que lhe bate injustamente não pode ser seu amo.
Chegámos
a uma cena capital da peça – a do encontro dos dois Anfitriões. Anfitrião não
perde nunca a consciência da sua identidade, discute acaloradamente, e embora
abandonado por todos, só pensa na vingança:
«Ah!
ira p’ra se não crer,
Em
que minha alma se abrasa,
Que
me faz ensandecer,
E
não me ajuda a romper
As
paredes desta casa!
E
porque não tenho eu
Forças,
que tudo destrua,
Pois
que tanto a salvo seu,
Outro
acho que possua
A
melhor parte do meu?
Eu
irei hoje buscar
Quem
me ajude a vir queimar
Toda
esta casa sem pena,
Donde
veja arder Alcmena
Com
quem a vejo enganar…»
Citemos
ainda estes expressivos dizeres de Anfitrião, mais calmo, chorando a sua dita
perdida, e pensemos no que eles implicam de desdobramento psicológico do eu
camoniano, segundo a especificidade temática do seu lirismo:
«Se
ver desonra tão clara
Me
não tivera o sentido
Totalmente
endoudecido,
Que
gravemente chorara
Ver
tão grande amor perdido!
E
quando vejo a verdade
Do
nosso amor e amizade
Desfeita
com tanta mágoa,
Enchem-se-me
os olhos de água
E
a alma de saudade.
Assi,
que quis minha estrela,
Para
nunca ser contente,
Que
agora, estando presente,
Viva
mais saudoso dela,
Que
quando dela era ausente…»
Desenlace:
Finalmente,
tudo se deslinda, Júpiter resolve desaparecer, depois de os deslumbrar a todos
com luz divina. E magnanimamente, a sua voz explica a Anfitrião o estranho caso,
prometendo honrar-lhe a geração, com um filho que se chamará Hércules e cujas
proezas o imortalizarão.
«Auto de El-Rei Seleuco» em curta síntese
O
«Auto de El-Rei Seleuco» é precedido de um anteacto em prosa, para
gáudio dos espectadores, e no qual sobressai a figura do Moço, o “servus”
latino, gracioso de resposta sempre pronta em linguagem vulgar e tosca e
atitude irrespeitosa, com parentesco também no herói pícaro da novela
espanhola.
O
assunto da lenda grega supõe-se que o colheu Camões em Petrarca. Trata-se da
paixão de Antíoco, filho do Rei Seleuco, por Estratónica, sua madrasta. Levado
pelo seu amor de pai, Seleuco cede a mulher ao filho.
A
análise do sentimento amoroso em Antíoco, que a ninguém quer revelar a causa do
seu sofrer, está feita com bastante perspicácia e eloquência. Da mesma forma
nos parece a reacção da rainha ao saber do amor do enteado. Confessa à criada (
e confidente) Frolalta que o amava como a um filho – não podemos esquecer que é
uma mulher digna, como logo na primeira cena, em, conversa com o marido
revelara. Em todo o caso, não suporta a ideia de que Antíoco morra e deseja
morrer com ele. Esse seu desejo acaba por traí-la, denunciando a sua paixão
pelo enteado:
“Sejamos
juntos na morte
Pois
o não somos na vida.”
E
lamenta ter-se casado com Seleuco por interesse:
“Que
não há mor desvario
Que
o forçado casamento
Por
alcançar alto assento;
Que
enfim todo o senhorio
Está
no contentamento.”
Há
alguma inverosimilhança na atitude do rei Seleuco, em face da alternativa malabarística
apresentada pelo médico de ver o filho morrer ou dar-lhe a própria mulher em
casamento. É pobre de emoção, de debate interior, a sua reacção bonacheirona de
ceder a mulher ao filho, desejando festas e alegria, quando pouco antes
elogiara a mulher como causa do seu remoçamento, pelo muito amor que esta lhe
inspirava.
Não
podemos, como paralelo, deixar de referir que, com idêntico tema, compôs Racine
uma tragédia, onde a tirania e a vileza das paixões, fizeram de “Phèdre” uma
obra-prima do teatro de todos os tempos.
Mas
não se trata esta peça de tragédia e o próprio Mordomo, ou “dono da casa” a
apresenta como “Isopete”, isto é, uma farsa com moralidade, à maneira de Esopo,
segundo o Autor humorista:
“Eis,
Senhores, o Autor, por me honrar nesta festival noite, me quis representar uma
farsa; e diz que, por não se encontrar com outras já feitas, buscou uns novos
fundamentos para a quem tiver um juízo assi arrazoado satisfazer. E diz que
quem se dela não contentar, querendo outros novos acontecimentos, que se vá aos
soalheiros dos escudeiros da Castanheira, ou de Alhos Vedros e Barreiro, ou
converse na Rua Nova em casa do boticário, e não lhe faltará que conte. Porém,
diz o Autor que usou nesta obra da maneira de Isopete. Ora, quanto à obra, se
não parecer bem a todos, o Autor diz que entende dela menos que todos os que lha
puderem emendar. Todavia, isto é para praguentos, aos quais diz que responde
com um dito de um filósofo que diz: “Vós outros estudastes para praguejar, e eu
para desprezar praguentos”. E contudo quero saber da farsa, em que ponto vai.
Moço! Lançarote!»
3- Auto de Filodemo
Também
o “Auto de Filodemo” é entremeado de prosa e verso. Filia-se nas tragicomédias
vicentinas de tipo novelesco, a “Comédia de Rubena”, “D. Duardos”.
Antes
de se entrar propriamente em acção, expõe-se, em prosa, o argumento do Auto: duas
crianças nascidas de um fidalgo português e de uma princesa dinamarquesa, fugida
de casa com o amado, numa galé que naufraga e donde só ela escapa, acabando por
morrer depois de as dar à luz, foram recolhidas, por um pastor que lhes chamou
Filodemo e Florimena. Aquele acaba por ir para a cidade servir a um D.
Lusidardo que se prova mais tarde ser seu tio, apaixonando-se por sua prima
Dionisa. Florimena fica com o pastor, guardando-lhe o gado. Um filho de D.
Lusidardo, Venadoro, andando à caça, encontra a jovem e dela se enamora, pela
sua beleza e o seu espírito pouco em harmonia com o ambiente em que vive. Não
regressa a casa, e quando o pai o encontra, vê-o transformado em humilde
cabreiro. O reconhecimento da sua alta estirpe é feito pelo pastor que salvara
os dois irmãos, afinal primos dos filhos de D. Lusidardo, pelo que os
respectivos casamentos se tornam possíveis.
A
acção desdobra-se, assim, em dois andamentos: o primeiro em torno do par
Filodemo- Dionisa, o segundo em torno do par Florimena – Venadoro, com cenas
intermédias entre personagens secundárias, ou mesmo em prosa, entre principal
(Filodemo) e secundária (Duriano, seu amigo), sobre a dialéctica de oposição
entre o amor pela passiva (platónico, que se satisfaz na contemplação) e o amor
pela activa (o de Duriano em que “ela há-de ser a paciente e eu agente”).
É, de resto, sobre a análise do sentimento do amor e os seus efeitos que versam
as falas das personagens principais, e mesmo de secundárias, como Solina,
intermediária nos amores da ama Dionisa, espécie de Celestina ou alcoviteira, e
ela própria também interessada por Duriano.
Filodemo
faz considerações sobre o seu próprio caso, sobre a ambição que nele implica o
ter-se enamorado de uma jovem doutra posição. Acaba por saber, através de Solina,
que lhe não é indiferente, e em linguagem rebuscada, tão invulgar em criado,
responde a Solina, admirada de que ele seja “amante tão fino”.
As
manifestações do sentimento do amor em Dionisa parecem-nos das mais completas do
teatro camoniano, lembrando as comédias psicológicas de Marivaux, no séc. XVIII. “Le Jeu de l’Amour et du
Hasard”, por exemplo, versa um tema parecido: dois jovens de posições distintas
que supõem o outro de baixa condição,
porque ambos se vestem de criados, para poderem avaliar melhor o pretendente
(da escolha paterna) e que insensivelmente se enamoram, embora contrariados,
devido ao equívoco, em virtude do espírito que ambos revelam nos seus diálogos.
Dionisa
procura lugares onde possa praticar com a criada sobre o jovem Filodemo que
ama, embora com despeito, por aquele ser seu criado. Exalta-se contra Solina
porque revelou a Filodemo que a ama escutava os seus cantares, assim
denunciando o seu interesse por ele, tal que descera a ouvir a conversa dos
criados. Afirma que receia a indiscrição de Filodemo. Solina, porém,
tranquiliza-a dizendo-lhe:
“Que
qualquer segredo nele
É
como pedra num poço.”
Dionisa
tem um rebate de orgulho:
“E
eu que segredo quero
De
um criado de meu pai?”
Pretende
mostrar-se desdenhosa e altiva, mas deixa transparecer ironia ciumenta ao ver
como a criada o escuta com prazer, ou talvez como pretexto para dele falar:
“Então
vós, gentil donzela,
Folgais
muito de o ouvir?”
Solina
não a desmente. Mas adianta que o prazer que sente resulta de que as suas
conversas só versam sobre a ama. De resto, a própria Dionisa lhe pedira que
fosse falar com ele. Dionisa não quer dar o braço a torcer e finge-se trocista
e agreste:
“Disse-vo-lo
assi zombando.
Vós
logo o tomais em grosso
Tudo
quanto me escutais.
Parvo!
Que vê-lo não posso!”
Defende-se
com o pai e o irmão que, se viessem a descobrir esses amores
“Não
há ele de folgar.”
E,
finalmente, manda a criada buscar almofadas para lavrar:
“Que
em cousas tão mal olhadas
Não
se há o tempo de gastar.”
A
esperta Solina conhece lindamente a ama e traça-nos o quadro das suas
transformações de comportamento e das suas contradições:
“Quem
a vira o outro dia
Um
poucochinho agastada,
Dar
no chão com a fantasia,
Toda
noutra transformada!
Outro
dia lhe ouvirão
Lançar
suspiros a molhos,
E
com a imaginação
Cair-lhe
a agulha da mão,
E
as lágrimas dos olhos!
Ouvir-lhe-eis,
à derradeira,
A
ventura maldizer,
Porque
a foi fazer mulher.
Então
diz que quer ser freira,
E
não se sabe entender.
Então
gaba-o de discreto
De
músico e bem disposto
De
bom corpo e de bom rosto.
Quant’a
então eu vos prometo
Que
não tem dele desgosto.
Despois,
se vem a atentar,
Diz
que é muito mal feito
Amar
homem deste jeito;
E
que não pode alcançar
Pôr
seu desejo em efeito.
Logo
se faz tão senhora,
Logo
lhe ameaça a vida,
Logo
se mostra nessa hora
Muito
segura de fora,
E
de dentro está sentida.
Quando
regressa com a almofada pedida, a ama revela as suas inquietações e
enfadamentos de mulher prisioneira, a quem não é permitido expandir, como aos
homens, os seus sofrimentos - a condição feminina, não ainda de marginalização
mas de limitação, já perceptível, como, de resto, também o fora na farsa " Inês
Pereira” de Gil Vicente:
Bofé,
que estava em cuidado,
Que
é muito para haver dó
Da
mulher que vive amando.
Que
um homem pode passar
A
vida mais ocupado:
Com
passear, com caçar,
Com
correr, com cavalgar,
Forra
parte do cuidado.
Mas
a coitada
Da
mulher sempre encerrada,
Que
não tem contentamento,
Não
tem desenfadamento
Mais
que agulha e almofada?”
Ao
ler a carta de Filodemo, que lhe apresenta Solina, finge inicialmente
desconhecer o seu autor, mas finalmente:
“Certo
que é de quem temo,
Que
os ditos que nele achei
São
todos de Filodemo.
“Este
homem, que atrevimento
É
este que foi tomar?
Qual
será seu fundamento
Que
mil vezes me faz dar
Mil
voltas ao pensamento?
Não
entendo dele nada.
Mas
inda que isto é assi,
Me
sinto tão alterada
Que
me arreceio de mi.”
Solina
sossega-lhe o espírito, comentando que o querer bem é natural e que, segundo
ouvira já, Filodemo era de alta geração. Dionisa está finalmente rendida, embora
preocupada com a opinião pública:
“Tudo
isso cuido e vi
Mil
vezes miudamente;
Mas
estas mostras assi
São
desculpas para mi,
E
não para toda a gente.”
Também
a paixão lhe faz perder o apetite e o desejo de ver gente:
“Oh!
Quem pudera escusar
De
comer, nem de ver gente!”
“Irei,
mas não por jantar
Que
quem vive descontente
Mantém-se
de imaginar.”
Paralelo
com o romance Filodemo-Dionisa, no espaço da casa de D. Lusidardo, processa-se
o de Venadoro-Florimena, no espaço do monte com uma fonte. É encantadora e
cheia de lirismo e graciosidade a cena do enamoramento entre os dois jovens, reveladora
de um espírito forjado no maneirismo retórico e conceptual a lembrar o
petrarquismo e os cantares na medida velha.
Venadoro:
“Oh!
Que formosa serrana
À
vista se me oferece!
Deusa
dos montes parece
E
se é certo que é humana,
O
monte não na merece.-
Pastora
tão delicada,
De
gesto tão singular,
Parece-me
que em lugar
De
perguntar pela estrada
Por
mim lhe hei-de perguntar.
Até
qui sempre zombei
De
qualquer outra pessoa
Que
afeiçoada topei,
Mas
agora zombarei
De
quem se não afeiçoa.
Serrana,
cuja pintura
Tanto
a alma me moveu,
Dizei-me:
Por qual ventura
Andareis
nesta espessura
Merecendo
estar no céu?
Florimena:
Tamanho
inconveniente
Andar
na serra parece?
Pois
a ventura da gente
Sempre
é muito diferente
Da
que, ao parecer, merece.
Venadoro:
Tal
resposta é manifesto
Não
se aprender entre as cabras.
Pois
não vos parece honesto
Saberdes
matar co gesto
Senão inda com palavras.
No
mato tudo é rudeza:
Há
tal gesto e discrição?
Não
no creio:
Florimena:
Porque não?
Não
suprirá natureza
Onde
falta criação?
Venadoro:
Já
logo nisso, Senhora,
Dizeis,
se não sinto mal,
Que
do vosso natural
Não
era serdes pastora.
Florimena:
Digo,
mas pouco me vale.
Venadoro:
Pois
quem vos pôde trazer
À
conversação do monte?
Florimena:
Perguntai-o
a essa fonte,
Que
as cousas duras de crer,
Um
as faça, outro as conte.
Venadoro:
Esta
fonte que está aqui,
Que
sabe do que dizeis?
Florimena:
Senhor,
mais não pergunteis
Porque
outra cousa de mim,
Sabei
que não sabereis.
De
vós agora sabei
O
que não tendes sabido:
Se
quereis água, bebei;
Se
andais, por dita, perdido
Eu
vos encaminharei.
Venadoro:
Senhora,
eu não vos pedia
Que
ninguém me encaminhasse;
Que
o caminho que eu queria
Se
o eu agora achasse,
Mais
perdido me acharia.
Não
quero passar daqui
E
não vos pareça espanto,
Que
em vos vendo me rendi,
Porque
quando me perdi,
Não
cuidei de ganhar tanto.
Florimena:
Senhor,
quem na serra mora,
Também
entende a verdade
Dos
enganos da cidade,
Vá-se
embora ou fique embora
Qual
for mais sua vontade.
Venadoro:
Oh!
Lindíssima donzela
A
quem ventura ordena
Que me guie como estrela!
Quereis-me
deixar a pena
E
levar-me a causa dela?!
E
já que vos conjurastes
Vós
e Amor para matar-me
Oh!
Não deixeis de escutar-me!
Pois
a vida me tirastes
Não
me tireis o queixar-me!”
Não
nos parece longa a distância que separa esta discreta Florimena, da donzela
espirituosa, feminina, graciosa e rebelde do teatro marivaudesco, dois séculos mais
tarde.
A mudança que o amor provoca nos seres é bem expressa neste
diálogo entre Lusidardo e Venadoro:
Lusidardo:
“Oh! Venadoro, meu filho!
És tu este?
Venadoro:
Tal estou
Que julgo que este não sou.
Lusidardo
Certo que me maravilho
De quem tanto te mudou!
Como estás assi mudado
No rosto e no vestido?
Venadoro
Ando já todo trocado
Tanto que fiquei pasmado
De como fui conhecido.”
Enquanto Lusidardo procura o filho perdido no monte, em
casa, Dionisa, não menos perdida, expande junto de Solina as contradições e
ânsias em que vive, em dialéctica de sofrimento a que a própria psicanálise responderá
hoje:
“Oh! Solina, minha amiga,
Que todo este coração
Tenho posto em vossa mão!
Amor me manda que diga
Vergonha me diz que não.
Que farei?
Como me descobrirei?
Porque a tamanho tormento
Mais remédio lhe não sei,
Que entregá-lo ao sofrimento.
Meu pai muito entristecido
Se vai pela serra erguida,
Já da vida aborrecido,
Buscando o filho perdido,
Tendo a filha cá perdida!
Sem cuidar, foi a casa encomendar
A quem destruir-lha quer.
Olhai que gentil saber,
Que vai comigo leixar
Quem me não leixa viver.”
E, não resistindo, concerta com a criada um encontro com
Filodemo,
“Para ver
Se é por ventura verdade
O que dizeis que me quer.”
Mas quando aquele lhe aparece, o mesmo embaraço a toma:
“Agora me quisera eu
Daqui cem mil léguas ver.”
Filodemo exprime exaltadamente o seu amor e o desejo de se
sacrificar para lho provar. Dionisa manifesta uns últimos rebates de altivez:
“Nesse deserto apartado
De toda a conversação
Merecíeis degradado
Por justiça. Com pregão,
Que dissesse: “Por ousado”.
E eu também merecia
Metida a grave tormento,
Pois que, como não devia,
Vim a dar consentimento
A tão sobeja ousadia.”
Mas o sofrimento e a humildade de Filodemo comovem-na e, ao
querer dar-lhe uma resposta cabal, pede a Solina que o faça por ela, pois
“Já não tenho em mim poder,
Segundo me sinto agora,
Para poder responder.”
Enfim, um remate de ficção cor de rosa resulta da descoberta
da nobreza dos dois jovens e do seu parentesco com D. Lusidardo e os filhos. Já
encontráramos esse enredo de fantasia em Gil Vicente, na tragicomédia “D.
Duardos”, por exemplo, onde o hortelão não passa de um príncipe disfarçado,
apaixonado pela princesa Flérida, e outras peças de igual cariz romanesco, próprias
dos enredos fantásticos de cavalaria do ciclo bretão e outas lendas em que o
maravilhoso imperava.
Cingimo-nos, nesta peça, à análise dos dois casos de “travesti”
amoroso que o destino conduziu a bom porto, abandonando cenas e personagens secundárias,
por efeitos de maior coesão. O objectivo foi, realmente, o de reviver momentos
de prazer literário há muito sentidos, na estranheza pela indiferença
pedagógica pela faceta dramática de Luís de Camões.