sábado, 26 de outubro de 2013

E depois?

Foi nos tempos de Santana Lopes como Primeiro Ministro, há oito ou nove anos já.
 
Diz-se – é sentença antiga – que o tempo cura mais que o sal, mas nem sempre isso é verdadeiro, até porque se diz também que Cronos, que destronou seu pai Ouranós, foi engolindo os filhos que a esposa Reia lhe dava, com medo de ser por algum deles destronado, o que aconteceu com o último filho – Zeus – salvo pela mãe, o qual conseguiu não só destronar o pai como recuperar os irmãos. Mas foi muito mal feito isso de engolir os filhos, por isso o provérbio sobre o tempo/Cronos curar, está mais que visto que é falso, pois às vezes mata – embora o sal também tenha os seus efeitos perniciosos no nosso organismo, segundo afirmação preocupada do Serviço Mundial da Saúde.
 
O que se verifica entre nós é que o tempo agrava. No tempo de Santana Lopes, por exemplo, a cidade começou a ser plantada de cartazes esclarecedores sobre os embelezamentos na cidade, julgo que encimados da foto de Santana – segundo o nosso carinhoso costume de plantar cartazes eleitorais, para criar postos/postes de trabalho. O meu marido trabalhava na Câmara de Lisboa, fazia parte da equipa encarregada de recuperar as velhas casas dos tempos pombalinos. Mas observou que as reformas santanistas também se faziam ao nível dos interiores, nos gabinetes de trabalho e nas casas de banho que as amigas de Santana recém colocadas exigiam – e eu costumava  lembrar-lhe que a Jacqueline Kennedy já o fizera na Casa Branca quando lá se instalou, que serviu de exemplo à nossa classe média elitista na questão dos arranjos. Também recentemente o Palácio da Justiça mudou de poiso, diz-se que para um sítio esplêndido com vistas para o Tejo, para amenizar as tarefas de descodificação dos processos da acumulação prolongada.
 
Outros muitos exemplos poderia acrescentar, deste esbanjamento narcisístico que o tempo acentua, mas o introito já vai excessivo, de apoio às preocupações que Vasco Pulido Valente revela na sua reflexiva crónica do Público, de 19/10,  “A Classe Média de Estado”, denunciadora de um plano revolucionário sem volta, de “filhos” e “enteados” abocanhando o “pai” Estado até às entranhas, e fazendo greves reivindicativas dos direitos adquiridos:
 
 «Toda a gente lamenta o destino da classe média, que a troika e o Governo estão pouco a liquidar. Mas ninguém se lembra que essa classe média é uma classe média de Estado, ou seja, um produto do Estado, que o Estado deliberadamente fabricou e que não pode ter outro destino, quando acabam os meios de a sustentar, como sucedeu em 2011. Se fosse uma criatura da economia resistiria melhor e até talvez conseguisse influir no “ajustamento” que se combinou com os credores. Infelizmente, foi o contrário que sucedeu. A democracia precisava de uma base de apoio e, como não havia nenhuma, a que havia era muito frágil, não hesitou em se prover com um imenso funcionalismo, por natureza dependente e fiel, e em orientar a escola e a universidade para carreiras que o poder político controlava.
 
E porque a longa fila dos pretendentes não parava de aumentar, os governos começaram a usar artifícios para “colocar” o pessoal que lhes batia à porta. Inventaram novas funções para um Estado que já não conhecia limites, dividiram e redividiram os serviços, fundaram com, ligeireza e gozo as centenas de organismos vaguíssimos, que eram verdadeiros depósitos de empregados sem uso nem utilidade. E este novo funcionalismo também ajudou à obra: imaginava constantemente novos cantos da vida portuguesa em que a sua presença lhe parecia indispensável; e pedia sempre com tenacidade o “espaço” que imaginariamente lhe faltava e o alargamento dos “quadros”, que achava sempre estreitos, mas sobretudo impeditivos da felicidade do povo. O “monstro” de que falava Cavaco foi assim feito (também por ele mesmo).
 
Da enorme multidão que trabalha para o Estado trata o seu emprego (que o contribuinte paga) como uma espécie de rendimento garantido, a que acrescenta vários géneros de actividade privada ou de negócios. Basta pensar nos médicos, por exemplo, ou em gente que dirige empresas (muito suas) com os recursos do ministério onde se instalou. Qualquer abalo sério e racional a  este arranjo iria ameaçar a subsistência a centenas de milhares de pessoas, que se habituaram a um certo estatuto social e se julgam na perpétua posse de “direitos” garantidos pela Constituição. Pior ainda: como, de maneira geral, mandam no PS e no PSD, não lhes faltam meios de impedir que a sua posição seja definitivamente posta em causa. O Estado que os sirva e eles fingem que servem o Estado.»

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