segunda-feira, 16 de setembro de 2013

O SEXO FORTE


Quando, em 1936, Henry de Montherlant publicou os quatro volumes de “Les jeunes filles”, cujo primeiro volume, que lemos, tem o mesmo título da série, ainda Simone de Beauvoir não publicara “O Segundo Sexo”, (1949) Nada mais díspar de convicção e intenção. Montherlant, através de várias histórias de mulheres em torno do protagonista Pierre Costals, mostra a submissão daquelas em relação ao homem – o “escritor” que as seduz pela arte com que descreve o universo das relações humanas, o “homem” que muitas vezes desdenha responder às cartas das jovens apaixonadas, definindo-se este como um carácter profundamente egoísta, rasando o sádico, lembrando o comportamento libertino do Visconde de Valmont das “Liaisons Dangereuses”, com, todavia, uma sensibilidade piedosa – muitas vezes irónica - sobre o sofrimento que inflige, sensibilidade inexistente em Valmont, que emparelha em vileza de carácter com a diabólica marquesa de Merteuil, a verdadeira manipuladora dos caracteres e da intriga. Romance epistolar, este terá um desfecho moral, de punição dos galantes algozes e de autopunição das vítimas, de acordo com os preceitos morais do século em que viveu Choderlos de Laclos, cuja aristocracia pretendeu atingir, conseguindo-o amplamente.

“Les jeunes filles” seduz pela riqueza de percepção da realidade humana, análise psicológica, poder satírico, expressividade sintética do descritivo. As “jeunes filles” apaixonadas vão descrevendo, nas suas cartas - as mais das vezes sem resposta - sem grande pudor mas com uma intensidade passional que lembra os intensos desabafos de paixão obsessiva pelo major Chamilly da nossa freira de Beja do século XVII, sóror Mariana Alcoforado. De resto, uma das protagonistas epistolares – Mademoiselle Thérèse Pantevin, com que se inicia a novela e que será a última a fechar o círculo das correspondentes, e com isso a primeira novela – é o tipo da devota cujo amor – não correspondido - por Costals conduz a convulsões espasmódicas, lembrando os espectáculos violentos de possessões demoníacas. Mas outras personagens femininas vão confessando as suas paixões, entre as quais Andrée Hacquebaut, de idêntica força espiritual e cultural do homem que ama, sem pejo de o declarar, analisando-lhe o carácter e o seu próprio, ora com humildade ora com altivez, esbarrando sempre com a frieza educada do homem que, sabendo-a intelectualmente sua igual, lhe prefere qualquer jovem bonita de ocasião, embora desprezando esta na sua ignorância juvenil e manhas de sedução. Outras personagens femininas surgem ainda, pretexto para a revelação de cinismo de um homem um tanto masoquista ou mesmo misógino, numa novela sobre a condição feminina, em que alternam registos vários de cartas ou de relatos de narrador não interveniente na intriga ou mesmo do protagonista da acção, pretexto para uma descrição do mundo masculino e feminino, não isento de páginas de anúncios matrimoniais de mulheres oferecendo-se, o que provocará os seus comentários de piedade, ironia e indignação, sobre esse mundo de degradação.

Por esse motivo, quando Simone de Beauvoir faz depender inteiramente a condição feminina, não de características fisiológicas mas sociais, económicas e civilizacionais – “On ne naît pas femme, on le devient” – no seu intuito feminista de defender uma igualdade entre os sexos, os livros referidos – e tantos outros - revelam que as diferenças entre os homens e as mulheres afinal se medem por características biológicas, de temperamento e de educação, mau grado as obstruções postas desde sempre pela sociedade ao paralelismo educacional entre os homens e as mulheres, que se deveram sobretudo à força física masculina, violenta e castradora.

Embora o carácter de Costals se assemelhe mais ao de um anti-herói egoísta e perverso, na sua fatuidade intelectual – não, por consequência, generalizável – traduzo um capítulo do livro de Montherlant citado, por me parecer uma análise aplicável a muitos seres masculinos, e contestando desta forma muito das teses de Simone de Beauvoir, no seu estudo “O Segundo Sexo”, por revelar, com bastante justeza, uma natureza masculina rebelde à dedicação amorosa feminina, independentemente do meio cultural em que foi educado, e revelando uma aridez presunçosa – com, aliás, boas razões para se furtar às perseguições amorosas das suas correspondentes enfeitiçadas e nada retraídas em descrever os seus estados de alma ou os seus gestos de ternura sensual:

“Artigo de Costals”

(Fragmento)

“O ideal do amor é amar sem ser correspondido”

 

«A esta repugnância em ser-se amado que sentem alguns homens, encontro várias razões, contraditórias como é justo, já que a incoerência é um traço masculino.

Orgulho – Desejo de guardar a iniciativa. No amor que nos dedicam, há qualquer coisa que nos escapa, que se arrisca a surpreender-nos, talvez a incomodar-nos, que é um atentado contra nós, que quer manipular-nos. Mesmo no amor, mesmo sendo dois, não se deseja ser-se dois, deseja-se ser-se só.

Humildade, ou, se a palavra parece demasiado forte, ausência de fatuidade. – A humildade dum homem lúcido, que não reconhece em si tanta beleza nem tanto valor, e que acha que há qualquer coisa de ridículo no facto de os seus menores gestos, palavras, silêncios, etc., criarem felicidade ou infelicidade. Que injusto poder lhe dão! Eu não faço grande caso de alguém que ousa pensar em voz alta: “Ela ama-me”, sem tentar ao menos diminuir a coisa dizendo: “O seu amor por mim subiu-lhe à cabeça”. O que sem dúvida rebaixa a mulher, mas só o faz porque primeiro se rebaixou a si próprio.

Sentimento que eu aproximo, por exemplo, do do escritor que achasse ridículo ter “discípulos”, porque ele sabe de que é feita a sua personalidade, e o que colhe das “mensagens”. Um homem digno deste nome, despreza a influência que exerce, seja em que sentido for que ela se exerça, e sofre por ter que exercer uma. Nós, nós queremos não depender. E estimaríamos as almas que se colocam sob a nossa dependência? É por uma alta ideia da natureza humana, que a gente se recusa a ser chefe.

Dignidade –Opressão e vergonha do papel passivo do homem que é amado. Ser amado, pensa ele é um estado que não convém senão às mulheres, aos animais e às crianças. Deixar-se beijar, amimar, oprimir a mão, olhar com olhar turvo: para um homem, pu! que nojo! (A maior parte das crianças, por muito femininas que sejam em França, não gostam que as beijem. Deixam-se levar por delicadeza, e por conveniência, as pessoas crescidas sendo mais musculadas do que elas. A sua impaciência destas lambuzadelas não escapa senão ao lambuzador, que julga que elas ficam encantadas.

Desejo de permanecer livre, de se preservar. – Um homem que é amado é prisioneiro. Isso é por demais conhecido, não insistamos.»

 

Afinal, o que comanda o mundo para os seres machos ou fêmeas é mesmo só o amor, nas suas divergências naturais, de diferentes sexos e de diferentes funções, que se completam ou se incompatibilizam, segundo os trâmites da própria vida, ou da arte com que é descrita, ao longo dos tempos.

Ouçamos uma vez mais Amália:

«Cheia de penas me deito
E com mais penas me levanto
Já me ficou no meu peito
O jeito de te querer tanto.

Tenho por meu desespero
Dentro de mim o castigo
Eu digo que não te quero
E de noite sonho contigo.

Se considero que um dia hei-de morrer
No desespero que tenho de te não ver
Estendo o meu xaile no chão
E deixo-me adormecer.

Se eu soubesse que morrendo
Tu me havias de chorar
Por uma lágrima tua
Que alegria! me deixaria matar.»
Mas Florbela, também:
«Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: Aqui... além...
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente
Amar! Amar! E não amar ninguém!»
 
 
Ou Jacques Brel:
«Ne me quitte pas
Il faut oublier
Tout peut s'oublier
Qui s'enfuit déjà
Oublier le temps
Des malentendus
Et le temps perdu
À savoir comment
Oublier ces heures
Qui tuaient parfois
À coups de pourquoi
Le coeur du bonheur
Ne me quitte pas (x4)
Moi je t'offrirai
Des perles de pluie
Venues de pays
Où il ne pleut pas
Je creuserai la terre
Jusqu'après ma mort
Pour couvrir ton corps
D'or et de lumière
Je ferai un domaine
Où l'amour sera roi
Où l'amour sera loi
Où tu seras reine
Ne me quitte pas (x4)
Ne me quitte pas
Je t'inventerai
Des mots insensés
Que tu comprendras
Je te parlerai
De ces amants là
Qui ont vu deux fois
Leurs coeurs s'embrasser
Je te raconterai
L'histoire de ce roi
Mort de n'avoir pas
Pu te rencontrer
Ne me quitte pas (x4)
On a vu souvent
Rejaillir le feu
De l'ancien volcan
Qu'on croyait trop vieux
Il est paraît-il
Des terres brûlées
Donnant plus de blé
Qu'un meilleur avril
Et quand vient le soir
Pour qu'un ciel flamboie
Le rouge et le noir
Ne s'épousent-ils pas
Ne me quitte pas (x4)
Ne me quitte pas
Je ne vais plus pleurer
Je ne vais plus parler
Je me cacherai là
À te regarder
Danser et sourire
Et à t'écouter
Chanter et puis rire
Laisse-moi devenir
L'ombre de ton ombre
L'ombre de ta main
L'ombre de ton chien
Ne me quitte pas (x4)»
 
 

 

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