terça-feira, 3 de setembro de 2013

Homo lupus homini


Tem La Fontaine uma fábula
Dedicada ao Duque de Borgonha,
Com bastos elogios prévios
Que não traduzo por serem desnecessários
No âmbito da fábula,
E até nos entristecerem
Por nos mostrarem
Que, para merecerem
Ser admirados e mesmo esportulados
Com tenças que, cá entre nós,
Nem davam para comer,
Os poetas tinham que lisonjear
Quem tinha posses
Para as lisonjas pagar.
Contos largos, que nos fazem lembrar
Camões, ou Nicolau Tolentino
Que desse meio de pedincha
Fez sátira bem engraçada
De autocrítica.
Os meios hoje são outros
De autores divulgar,
Não vamos esmiuçar
Para não aborrecer quem nos quiser ler.
Quanto à história
Contada por La Fontaine,
Eu sempre ouvi dizer
- E até está escrito, no canto X da Odisseia, a sua origem –
Que foi em porcos que a Circe transformou
Os companheiros de Ulisses
E não em animais de maior gabarito,
Como conta La Fontaine,
Seguindo uma via moralista,
Mais própria do fabulista,
Transformando em apólogo
Uma história de magia
Com muita mestria:

«Os companheiros de Ulisses»

«Após dez anos em alarmes de errância,
Os companheiros de Ulisses seguiam
Ao sabor dos ventos, incertos os destinos,
Quando ancoraram num porto onde a filha
Do deus do dia, Circe apelidada,
Mantinha a sa corte bem guardada.
Ela fê-los engolir uma bebida
Deliciosa mas contendo
Fatal veneno.
Primeiro perderam a razão,
Seguidamente rosto e corpo adquiriram
Os traços de diversos animais:
Ei-los tornados
Ursos, leões, elefantes,
Uns sob uma massa enorme fabricados,
Outros sob outra forma apresentados.
Só Ulisses escapou,
Desconfiado do traiçoeiro licor.
Como ele aliasse ao muito saber
O rosto dum herói e o trato ameno,
De tal modo se comportou que a feiticeira,
Caindo na esparrela,
Tomou outro veneno pouco diferente do dela.
Declarou a Ulisses o seu amor.
Ulisses era demasiado esperto para não aproveitar
Tamanha conjuntura.
Recebeu a promessa daquela
De que os seus homens recobrariam a anterior figura.
“Mas, disse a Ninfa, vão eles aceitar?
Vai já à tua trupe isso perguntar.”
Ulisses foi e lhes disse: “A feiticeira
Cortou no remédio que eu vos estou a oferecer.
Caros amigos, quereis homens voltar a ser?
A fala já retomastes.”
Responde o leão, pensando rugir:
“Não sou eu assim tão louco!
Eu? Renunciar
Aos dons que acabo de adquirir?
Tenho garras e dentes para em bocados  desfazer
Quem me venha atacar.
Sou rei! Em cidadão de Ítaca vou-me tornar?
Tu far-me-ás simples soldado!
Não, não quero mudar de estado.”
Do Leão, Ulisses corre ao Urso:
“Eh! Meu irmão! Como tu estás feito,
Tu que eras tão bonito!”
“Ah! Na verdade, eis-nos aqui,
Retomou o Urso à sua maneira.
Como estou feito! Como deve estar um Urso, ora essa!
Quem te disse a ti
Que uma forma é mais bela do que outra?
Pertencerá porventura à tua
Julgar da nossa?
Revejo-me nos olhos de uma Ursa amada
Desagrado-te? Vai-te embora!
Segue a tua rota e deixa-me na minha;
Eu vivo livre, contente, sem cuidado
Que me afronte.
E digo-te chãmente:
Não quero mudar de estado!”
O príncipe grego vai junto do Lobo
Propor igual assunto.
E diz-lhe com risco de igual recusa:
“Camarada, estou desconfiado
Que uma jovem e bela Pastora
Conta aos ecos os apetites glutões
Que te fizeram devorar os seus cordeiros
Dantes viam-te salvar
O rebanho, honesta vida levar.
Deixa estes bosques e volta a ser
Em vez de Lobo, um Homem de bem,
Como ninguém.”
“Estás aí? - lhe diz o Lobo. Por mim, não vejo assim.
Tratas-me de animal carniceiro!
Tu que falas, tu que és?
Não teríeis vós, sem mim, estes animais comido, que agora
Toda a aldeia chora?
Se eu fosse Homem, como tu és,
Gostaria eu menos de carnificina?
Por uma simples palavra, quantas vezes,
Vós vos matais.
Não sois vós, uns para os outros,
Verdadeiros lobos?
Tudo bem considerado,
Sustento, sem dúvida alguma,
Que, celerado por celerado
Vale mais ser Lobo do que Homem.
Não quero mudar de estado!”
Ulisses a todos fez o mesmo apelo,
Cada um a mesma resposta lhe deu
O grande como o pequeno:
A liberdade, as leis, seguir os seus apetites
Eram supremas delícias.
Todos renunciavam às glórias
Das belas acções.
Delas se libertavam
Seguindo as suas paixões
Escravos só de si mesmos.
…. Os companheiros de Ulisses, enfim, se ofereceram
Dos prazeres as amarras romperam.
Com Ulisses seguiram…»

  No universo, muitos há como eles,
Amantes dos prazeres fatais,
Mas que jamais
As amarras dos prazeres quebraram,
Lobos ou chacais
Dos outros homens.
Pelo menos é o que lemos nos jornais.
Mas também há quem lhes chame sanguessugas
Pois tudo sugaram
Entre nós, Portugas.

 

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