domingo, 29 de setembro de 2013

As urgências da nossa relatividade


É com Oliveira Martins e o estado actual da Nação, com breves investidas nos textos daquele para melhor acentuação das semelhanças entre passado e presente, e idêntico sentido crítico com que ambos os historiadores envolvem a respectiva contemporaneidade, que Vasco Pulido Valente inicia o seu artigo do Público, de 20 de SetembroNada de espantar”: «Joaquim Pedro Oliveira Martins foi o  homem que melhor percebeu o Portugal da segunda metade do século XIX.”

Com efeito, ambos os  historiadores parecem irmanados numa comum arte narrativa de historiar os factos da sua contemporaneidade, tendente a uma percepção objectiva da realidade, mas não isenta de zargunchadas críticas, resultantes de idêntica análise polifacetada de um país que endemicamente descambou em situações economicamente catastróficas:

«Os políticos falam hoje constantemente de “erros do passado” mas sem nunca explicarem de que “erros” se trata e sem nunca dizerem com alguma clareza o que espera o país. Com outro carácter e coragem, Oliveira Martins escreveu, em 1894, que a “nação” “se encontrava” perante uma pergunta “vital” : “Há ou não há recursos bastantes, intelectuais, morais, sobretudo económicos, para subsistir como povo autónomo dentro das estreitas fronteiras portuguesas.” Como se chegou aqui em 1894 e como se chegou aqui em 2013? Num artigo breve e claro, Oliveira Martins tenta responder. E a resposta só surpreenderá o pior analfabeto em circulação.

Em 1851, no começo da maior expansão do capitalismo na Europa, as potências financeiras do tempo (a Inglaterra e a França) voltaram a ver em Portugal uma boa oportunidade “a explorar” e as bolsas, “passando a esponja do esquecimento” sobre as “bancarrotas” anteriores, “abriram os seus cofres”. Em 40 anos, o nosso “Tesouro Público (…) conseguiu obter por empréstimo uma soma aproximadamente de 90 milhões esterlinos efectivos, em bom ouro”. O resultado acabou por um “cenário” “que dava a Portugal a aparência de um país rico”, “coalhado” de caminhos-de-ferro e também de estradas, com dois portos modernos, Lisboa e Leixões. E os governos iam garantindo a paz doméstica com o “comunismo burocrático”, que vinha substituir  o antigo “comunismo monacal”: o Estado contratou “muitos milhares de funcionários, mais ou menos opiparamente prebendados”, “a legião nova dos beneficiados de obras públicas e centenas de concessionários”, que rapidamente enriqueceram.

Infelizmente não se podia viver “salariando a ociosidade” e “suprindo a escassez do trabalho interno com subsídios oficiais”, à custa do dinheiro de fora. Portugal não se aguentaria, se continuasse a depender de “recursos estranhos ou anormais”, e não do “fruto” da sua produção e economia. Isto “não era segredo para ninguém mediocremente instruído”. E não se deve considerar o fontismo um erro, como não se deve considerar a política da II República um erro ou uma série de erros. Nos dois casos a fortuna enganadora” do país serviu a ambição e o interesse da elite que tomou conta do regime e de uma classe média ignorante, cretinizada pelos partidos. E quem se espantar que se espante primeiro de si.»

O mergulhar, pela pena de Pulido Valente, em excertos de Oliveira Martins, leva-me a transcrever ainda, (por me parecer pertinente de actualidade e de “relativa” utilidade), de “Explicações”, antepostas à 2ª edição de «Portugal Contemporâneo» (1883), de Oliveira Martins,  o penúltimo parágrafo crítico e moralizador, (se é que este último adjectivo não provoca antes o riso superior dos que o aboliram da sua prática, pelo preconceito, tão banalizado já, da “relativização” dos conceitos:

«As necessidades urgentes de Portugal de Portugal são maiores e mais complexas (do que as preconizadas pelos que, “educados ainda no radicalismo, pensavam que o seu ofício consistia em pregar moral e em decretar reformas radicais”). Liberdade há suficiente, demais até: ninguém pensa hoje em dia em atacar esses direitos do indivíduo que andam erradamente nas Constituições, quando o seu verdadeiro lugar seria o código civil; mas urge reformar num sentido prático os sofismas que, sob o nome de “liberdades”, corrompem até à medula o corpo desta sociedade. Urge moralizar a administração e extirpar o parasitismo que nos rói. Urge pôr um ponto de ordem no desvairado rumo das finanças, no regime iníquo e absurdo do imposto. Urge suster na queda, ou amparar na nascença, a navegação e as indústrias para os nossos filhos não serem forçados, à míngua de ocupações, a pedir por esmola um emprego. Urge povoar um território meio deserto e plantar gente nas brenhas que por toda a parte mancham o País. Urge acabar com a agiotagem que, alimentando um Tesouro mendigo, nos conduz rápido à ruína.  Urge, numa palavra, moralizar uma política desvairada, levantar uma autoridade abatida; e levantá-la não pela força, mas pelo respeito devido ao saber e ao carácter; urge restaurar as forças económicas de uma nação adormecida e o vigor moral de um povo atormentado.»

Mas o nosso mal é como tumor maligno ramificado no território, de pequena gente  saracoteante e palradora. Aponto o exemplo de populações de freguesias destruindo urnas de voto ou boicotando as eleições por motivo da agregação da sua a outras freguesias e o mulherio guinchando razões de vaidades feridas, sem ter em conta as necessidades pecuniárias de reformas administrativas. E aponto, é claro, as vaidades regurgitantes dos partidos que ganharam ao do Governo, que palram e palram, também sem terem em conta as contas, por hábito velho de parasitismo. Não diferem do mulherio.

As urgências pedidas por Oliveira Martins não são exequíveis, que o nosso mal é endémico. E recuado.

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Variações em/com dó

   

O dia de ontem foi para mim prolixo em amostras da gente que somos no país que temos.
Começou pela leitura do “Público “ de sábado passado, 21/9, no, habitualmente lido em primeiro lugar, artigo de Vasco Pulido Valente: “Sem limites” foi sobre o candidato Fernando Seara à Câmara de Lisboa, com promessas utópicas – eu diria anedóticas - nos seus cartazes, para ganhar a Câmara, no que é apoiado pelos partidos do Governo. Transcrevo o parágrafo final:

«António Costa conseguiu ao fim de muito tempo e de muito esforço reduzir a dívida da Câmara de Lisboa e chegar a uma situação financeira sustentável. O programa de Seara (se merece o nome) iria numa dúzia de meses criar uma nova dívida muitas vezes superior à antiga. Mas parece que ninguém lhe chamou a atenção para esse ridículo pormenor; e nem o CDS nem o PSD se importam que ele faça uma campanha destinada a arruinar o Estado e a ludibriar o eleitorado. Esta prática não escandaliza agremiações que por ela sempre manifestaram uma especial deferência. Só não se percebe como, no meio do regabofe estabelecido, o Governo ainda arranja coragem para cortar “dez por cento aos pensionistas do Estado e aos pobres reformados do “regime geral”. A desvergonha é ilimitada.»

Entretanto, telefonou-me um amigo, contando da recandidatura de Carlos Carreiras, também do PSD, à Câmara de Cascais, e a notícia do aumento descomunal da dívida da autarquia relativamente à deixada pelo presidente anterior, António Capucho, que, se bem me lembro, dali saíra por acusações graves de negócios obscuros e agora se propunha para a Câmara de Sintra.

Eu acabara de ler, no mesmo jornal, o texto de José Pacheco Pereira, de verrina contra Paulo Portas – “A natureza da “crise Portas” é ser endémica” – e cansada de tanto ataque certeiro e de tanto saber pujante, pensara na anomalia de um país que vive de abocanhar, de largar bitaites, uns mais estudados do que outros, todos na ânsia de valorização pessoal, mais do que de tentativa de ajudar a salvar esse país. Pensara que, conhecendo pouco de política, ao que se aponta, Passos Coelho era um homem decidido a tentar ultrapassar uma crise, e Paulo Portas pretendia ajudá-lo nisso, e quando Portas usou o seu truque de alarme de saída, tudo ficou aterrado e criticou Portas, com receio de que faltasse a mama europeia, caso se mantivesse a resolução, que obrigou Coelho a fazer cedências a Portas para que reconsiderasse. Mas retomou-se o fôlego, e desde que tudo voltou ao normal tudo voltou a atacar em força, Marques Mendes, Constança Cunha e Sá, os habituais comentaristas, tudo com muita seriedade – ou mesmo sem ela - gente que se considera impecável, vomitando críticas ou impropérios, e embora outros considerem que há factores económicos positivos, isso passa ao largo, ninguém o reconhece ou todos os da crítica o minimizam .

E o que respondi ao meu amigo foi que, entre tantos os nossos bem falantes, nenhum se oferece para fazer melhor, substituindo os mal amados. No fundo, não passamos duns pedantes tão ridículos como os emigrantes pilosos e palreiros que a “Gaiola Dourada”, ao que se diz, põe em destaque. Piores do que estes, todavia, porque estes, pelo menos, apesar dos hábitos parolos com que emigraram, construíram filhos mais requintados, embora não suficientemente bem formados para não cuspirem na malga de que provieram.

É isso que fazemos bem. Cuspirmos, hábito muito nosso. Cospe Jardim também, no mesmo jornal “Público”, com a parolice grosseira de sempre, ao defender “ser necessária uma revolução no país para garantir que todas as conquistas do 25 de Abril não se percam por “imposição do capitalismo estrangeiro”, astutamente fingindo ignorar que as conquistas que conseguiu para a Madeira - tirante a independência desta “dos do Continente” que almeja conseguir – se deveram ao tal capitalismo estrangeiro, sem o qual tais conquistas turísticas não seriam possíveis. A imposição pelo actual Governo, de colaborar no pagamento das dívidas, restringindo-lhe o afluxo dos capitais anteriores, o torna eloquentemente palrador sem respeito pela bandeira do “seu” país.

É um humor sórdido e bem vaidoso o nosso. Acabei o dia a ver o Canal Memória, primeiro com um episódio do Conde de Abranhos, cujos actores acentuam os traços encontrados em Eça, a caricatura neste, transformada naqueles, em arrebiques de ostentação irónica ou grotesca, caso do prego espetado na nádega do sr. desembargador, pai da futura esposa de Alípio, que solícito, com mira na fortuna e mão daquela, o extraiu com as cautelas e servilismos necessários . Mas os berros e gemidos que o descritivo torna hilariantes, ostentados pelo actor-personagem tornam-se não caricatos mas obscenos. Em seguida foi o programa “Por Outro Lado”, apresentado com elegância por Ana Sousa Dias, de entrevista a António Lobo Antunes, que já em tempos vira e me desconcertara pelos trejeitos de lábios e voz e mãos em movimento, e dedos na boquinha ou no nariz, o olhar fugidio, em esgares e contorções, dizendo coisas para surpreender, contestando, mostrando desgostos, usando discursos pedantes de falsa modéstia e falsa vergonha a estralejar de orgulho e de falsa bondade e compreensão.

Um dia em cheio sobre as nossas gentes, imagem do que somos, papagaios vistosos e palradores, pretensiosos conhecedores e críticos de nós próprios, mas  ninguém se propondo para assumir e fazer diferente. Os desligados do poder, apenas. Que os “ligados” condenam e prometem mudança, mas apenas para efeitos eleitoralistas. As contingências do status não possibilitam diferenças. Senão para pior.

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Orates


Vivemos num mundo maluco
De ventos incertos
E muitos moinhos
Que Sócrates espalhou
Para criar energia,
Segundo explicou.
Contra esses, nem Quixote se atiraria,
Que logo seria levado nos ares
E não se estatelaria
No chão pedregoso
Das suas manchegas andanças
Plenas de muita
Sabedoria,
Quando Quixote se punha a discursar
Com sensatez,
Fora do âmbito das histórias velhas
De cavalaria
Que a volta ao siso lhe deram
E quase o desfizeram.
Florian no cavaleiro pegou
E na ribalta o colocou
De um novo ofício.
Mas o artifício não lhe valeu
Como Florian provou
Com o prazenteiro expressar
Do seu humanístico saber:

 »Dom Quixote«

«Forçado a renunciar à cavalaria
Dom Quixote decidiu um dia,
Para se ressarcir dessa dor,
Levar uma vida mais doce,
E escolheu a vida de pastor.
Ei-lo, pois, que toma cajado e surrão
O chapeuzinho redondo guarnecido de fita
Fazendo sob o queixo uma roseta.
Julguem da graça e do ar
Deste novo Tircis!
Sobre a sua gaita de foles roufenha
Ele tenta o eco encantar
Daqueles cantões.
Compra dois carneiros no talho do lugar,

Arranja um cão sarnento e neste aparato,
No mais frio inverno, há muito não visto,
Conduzindo o seu gado pelas margens do Tejo,
No meio da neve, ele canta com garra
A primavera.
Até aqui, tudo bem : cada um à sua maneira
É livre de escolher o seu prazer.
Mas passou por ali uma gorda vaqueira ;
E o pastor, movido de amoroso desejo
Corre e cai a seus pés: ó bela Timarette
Disse ele, tu que vemos entre as tuas jovens irmãs
Como o lírio entre as flores,
Caro e cruel objecto da secreta chama
Que me inflama,
Abandona por momentos o cuidado dos teus cordeiros,
Vem ver um ninho de pombinhos
Que eu descobri neste carvalho.
Eu quero ofertar-tos, ai! É o meu único bem.
São brancos: é a tua, Timarette, a sua cor;
Mas para minha dor,
Não é o teu o seu coração.
A este discurso a Timarette,
Cujo verdadeiro nome era Fanchon,
(Tal como a bela Dulcineia fora
Uma tal Aldonça
Para mais, Lourenço),
Abre uma boca espantada,

Bem escancarada,
E com um olhar parado e animal
Contempla o velho Céladon.
Quando um criado da quinta, amoroso da bela,
Aparece de repente, aquele cai à paulada

Em cima do pastor terno e fiel
E estende-o sobre o relvado.
Dom Quixote gritava : “Pára,

Pastor ignorante e brutal ;
Não conheces as nossas leis ? O coração de Timarette
Deve ser o prémio dum combate pastoral.”
­- “Canta  e não batas”,
Em vão o pastor implora. O outro desancava sempre,
 E ainda desancaria
Se não tivessem vindo o rapaz socorrer
E à fúria dele arrancá-lo.
Assim, curar uma loucura,
Por vezes não traduz  mais do que mudá-la.»

 

A loucura de Quixote
Só contra ele se voltava.
A loucura em que vivemos
Num mundo grotesco ou tosco,
A todos envolve
Em fraternidade,
Em animosidade:
Que a corda bamba
Em que nos balançamos,
Ao ser esticada,
Rebenta e lá vamos,
Lá vamos,
Lá vamos. Todos.
Sem nada.

 

 

 

terça-feira, 24 de setembro de 2013

A razão das sem-razões


 Um texto já antigo – de 2011 - de João César das Neves que o Dr. Salles achou por bem colocar no seu blog “A Bem da Nação”, por, certamente, lhe parecer de uma actualidade  e pertinência totais. Antes de condenarmos as acções dos que governam e impõem despedimentos, a isso forçados, pelas razões óbvias de uma crise surgida há muito, também por excesso de colocação, a dada altura dos trâmites piedosamente e astutamente revolucionários, de funcionários não necessários, que oneraram extraordinariamente os Serviços Públicos, deveríamos ponderar, como informa César das Neves, na parte que nos cabe a todos, de aceitar que um ínfimo país preguiçoso necessite de tantos funcionários, muitos deles oportunistas sem brio, que não trabalham nem estão presentes, quando países de maior envergadura reduzem o seu funcionalismo, ao qual fazem exigências de comportamento eficaz que entre nós só seguem os profissionais autênticos, por motivação e zelo pessoais.


ARMADILHA DE FUNCIONÁRIO

Os funcionários públicos têm razão para se sentirem perseguidos, sempre chamados à primeira linha dos sacrifícios. É compreensível que imaginem uma conspiração nacional contra eles e é natural o desânimo, indignação, até raiva de tantos trabalhadores honestos, cumpridores e dedicados à causa pública. Nestes momentos não é fácil fazer uma análise serena e profunda da questão, mas é exactamente agora que é mais necessária. Antes de julgar é preciso entender.

A simples observação numérica mostra logo algo estranho. Nos indicadores da União Europeia vemos que Portugal em 1995, primeiro ano comparável, era o sexto país com maior peso dos salários de funcionários públicos no PIB, 12,5%. Acima de nós só os três nórdicos, França e Áustria; a média dos então quinze era 10,8%. Dez anos depois, em 2005, apesar do alargamento, subíramos para o impressionante quarto lugar, com 13,9%, apenas ultrapassado por Dinamarca, Suécia e Chipre. Aí começou a alegada perseguição. A austeridade do último Governo corrigiu em parte a situação insustentável, mas em 2011 a nossa posição é ainda de 12.º, com 11,5%, bem acima da média dos 27 (10,7%) e de parceiros como Espanha (11,1%), Itália (10,7%), Holanda (9,7%) e Alemanha (7,1%). Temos de descer mais.

A função pública é uma vasta realidade, diversificada e complexa, impossível de resumir em alguns parágrafos. Mas dois problemas básicos dominam a instituição e explicam a referida perseguição. O principal drama dos funcionários públicos não é que ganhem muito, mas que sejam muitos. São imensos, certamente mais de 12% da população activa, valor impossível de suportar. A austeridade nunca consegue actuar nessa dimensão, por ser quase proibido dispensar trabalhadores. Assim é obrigada à alternativa de apertar a remuneração individual que não só é injusta mas ineficaz.

Pior ainda, este problema quantitativo é agravado por uma questão de qualidade. Os funcionários não só aceitaram sem protestar que os seus números explodissem, mas permitiram que fosse eliminada qualquer forma eficaz de avaliação relativa. Na função pública existem os melhores e os piores trabalhadores do País, todos tratados da mesma forma com iguais regalias e segurança. Há funcionários vitais e indispensáveis, de quem depende a operação de serviços essenciais, ao lado de parasitas que tomam café e complicam o trabalho alheio. As prateleiras douradas estão por cima de repartições exemplares.

A nossa função pública tem múltiplos serviços fundamentais e milhares de funcionários solícitos, competentes e sacrificados. Mas, como eles sabem melhor que ninguém, também tem múltiplos departamentos inúteis, ociosos e até nocivos, e graves problemas de carreirismo, burocracia, desperdício e abuso. O simples facto de nem se saber bem o total de servidores do Estado é disso sinal evidente. Entretanto, as regras internas implicam que o único incentivo para a eficiência é a consciência pessoal do próprio trabalhador, porque os apáticos ganham o mesmo sem riscos.

As causas destes dois problemas de quantidade e qualidade são variadas, mas o próprio corpo de funcionários está longe de ser inocente. Acima de tudo a culpa cai na responsabilidade directa de governantes laxistas e tíbios, que verteram facilidades e benefícios sobre aqueles que davam corpo à sua acção. É verdade que esses políticos saíram incólumes e hoje muitos gozam reformas de luxo, enquanto os antigos subordinados suportam austeridade. Mas estes não se podem eximir de culpas.

Aliás, ao lado do vaivém dos políticos, supostamente responsáveis pelas decisões, a acção e estabilidade do sistema deve-se precisamente aos servidores do Estado e às suas organizações. Foram eles e elas que assistiram passivamente, senão activamente, ao degradar da situação. Não podem hoje acusar do desastre os sucessivos ministros que serviram. Não só porque ganharam muito com a derrapagem, mas sobretudo porque permitiram em silêncio que a sua actividade tão digna fosse degradada. É esta a terrível armadilha dos funcionários.

31 de Outubro de 2011

  João César das Neves



 

Triste pecúnia

 
Quando comecei a leccionar, no liceu de Aveiro, em finais de 57, em substituição de uma professora, só em Abril é que tive direito a receber os quatro primeiros meses de vencimento pelo trabalho exercido, o que constituiu espórtula de envergadura – para cima de 12.000$00 – que me pôs logo em azáfama para arranjar casa e os móveis imprescindíveis para os livros, as louças, os lençóis e o primeiro filho a caminho, iniciando o processo de prestações, como coroa, não de glória mas de espinhos que me selou a vida inteira, e me fez viver feliz no imediato, é certo, sem o espectro da expectativa a realizar só para quando os ventos favoráveis da fortuna o permitissem. A fortuna – no seu sentido inebriante de riqueza – nunca me foi favorável, todavia, porque sempre a antecipei no gozo da obtenção do prazer imediato, com a colaboração compreensiva dos vendedores das minhas alfaias, logo seguida, hélas! dos doze meses, quando não anos infindáveis, a saldar a dívida. Daí os espinhos da minha coroa serem antes de brando plástico, de tal maneira que nunca me  poderia orgulhar de construir os versos das grandes tristezas, como o “Erros meus, má fortuna” – que também incluiu a falha de proventos, pese embora o comedimento da espiritualidade clássica - ou mesmo “O dia em que nasci moura e pereça”, ambos do estro de Camões, que foi desgraçado a sério - “Que este dia deitou ao Mundo a vida / Mais desgraçada que jamais se viu!”, enquanto que o meu dia de nascimento não deitou nada disso cá para fora. Apenas atribuladas – é certo - prestações mensais.

Vem a história a propósito do chefe de secretaria do liceu de Aveiro, homem pesado, de compleição atrabiliária, que, ao entregar-me os doze contos e picos referentes aos primeiros quatro meses e picos de aulas por mim leccionadas, me disse de forma iracunda, que acolhi com deferência maravilhada, não só pelo desafogo inesperado, como pelo prodígio do vaticínio, que nem Nostradamus se arrogaria a executar: “Nunca a senhora virá a receber tanto na sua vida”.

Era ele o encarregado da distribuição dos vencimentos, o que lhe dava inegável autoridade e prestígio, por poder mergulhar mensalmente os olhos e as mãos naquelas muitas notas de que era obrigado a desfazer-se de seguida, mas enquanto isso, pudera sentir-se um novo Creso a contemplá-las. Suponho que se julgava o dono delas a distribuí-las com autoridade. E isso o pude comprovar noutras escolas, enquanto os vencimentos eram distribuídos em notas pelos chefes responsáveis, deuses arrogantes do seu poder distribuidor. Mais tarde os vencimentos foram distribuídos em cheques, não causariam tantos eflúvios de prazer, mas a arrogância manteve-se, pela concessão do poder de traçar cifras para o pessoal. Hoje as coisas tornaram-se assépticas, impessoais, abstractas, com a máquina multibanco a trabalhar incansável, eficaz e providencial, sem vaidades tolas, apenas emperrando, como defeito da sua contingência.

Mas sempre pude verificar,  e cada vez com mais consciência, que o poder, qualquer que seja, transforma os homens em feras raivosas e imponentes, criadores de criaturas à sua imagem, eficientes, enfiadas na mesma rede de desumanidade para com os fracos, de subserviência prestável para com os que comandam.

A história que transcrevo do Público de 15 de Setembro, lida em “Espaço Público” é exemplo, não só de truques mistificatórios dos governos centrais a fim de distorcer a imagem do desemprego, mas dessa desumanidade arrogante para com os que precisam de emprego ou de subsídio e que não podem falhar às imposições de comparência, ainda que seja enganosa, sob pena de perderem o direito ao subsídio ou à oferta de trabalho. Afinal, qualquer ser humano se pode transformar em lorpa fera, desde que lhe seja fornecido o meio adequado. A falta de educação ainda enfatiza mais os casos, não devemos atacar só os cimeiros da nossa inveja.

Leiamos o texto, de José Manuel Silva, de Odivelas:

“A escravatura como forma de combater o desemprego?”

«Permitam-me acrescentar algumas notas relativamente ao desemprego, a propósito do texto de José Vítor Malheiros “A escravatura como forma de combater o desemprego?”, publicado no Público no dia 10 de Setembro.

Como aí se diz, a taxa de desemprego mede apenas quem procura trabalho, mas como se sabe quantas são as pessoas desempregadas que não procuram trabalho? Ora bem, em Odivelas, que pertence ao Centro de emprego de Loures, convocam-se as pessoas que já não recebem subsídio de desemprego para sessões de presença obrigatória – a última a que assisti foi no dia 16 de Agosto, sexta feira (a seguir ao feriado) – sob ameaça de a falta implicar a anulação da inscrição no centro de emprego e inibição de reinscrição nos 90 dias seguintes.

O objectivo da sessão é verificar as faltas e dizer tão-só aos presentes que se devem dirigir ao Gabinete de Inserção Profissional da Junta de Freguesia de Odivelas, que fica do outro lado da freguesia.

Parece estúpido mas é isto: convocam-se por carta as pessoas para uma morada, apenas para lhes comunicar que devem ir a outra morada.

O que faz o Gabinete de Inserção Profissional? Verifica se a pessoa apareceu e recomenda que procure trabalho nos anúncios ou que se inscreva em cursos para aprender a trabalhar com o Word (incluindo licenciados e mestres)…

O ritual repete-se a cada trimestre, desde Abril. O objectivo real das sessões, que os funcionários já não conseguem esconder ao ponto de o admitirem, é fazer as pessoas andarem de um lado para o outro até falharem uma presença, e voilà, a inscrição anula-se, o desemprego desce, o país fica feliz.

A taxa de desemprego passa assim apenas a reflectir o desemprego recente, das pessoas que ainda recebem subsídio. Os restantes são toureados até saírem da estatística por falta de comparência.

Pelo meu lado vou continuar a procurar trabalho, mas, tal como a estatística já demonstra, vou deixar de aparecer nestas sessões de humilhação colectiva com objectivo de apenas manipular as estatísticas.

Parece-me um caminho socialmente perigoso, mas o que mais me impressiona é a eficácia com que está a ser executada esta orientação. Se tudo na administração pública funcionasse assim tão eficazmente…»

José Manuel Silva, Odivelas


Um texto de fino humor e muita amargura. Não haverá quem o reconheça e igualmente as capacidades intelectuais do seu  autor e lhe proporcione o emprego a que tem direito, segundo a  Declaração Universal dos Direitos Humanos (artigo 23º)?

 

 

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Literatura cor de rosa


Um texto de José Pacheco Pereira, de sábado passado, do blog ABRUPTO. Sobre um livro de Judite de Sousa sobre Álvaro Cunhal:

«Um dos resultados das comemorações do centenário de Álvaro Cunhal foi a deliberada construção, feita por propagandistas e inocentes úteis, de um Cunhal méli-mélo, cheio de "interesse humano" e vazio de política. O livro de Judite de Sousa, apressado, cheio de incongruências e contradições, é o culminar desse processo, que já vinha de antes. O PCP, que não abre nenhuma informação dos seus arquivos aos historiadores, abre-se generosamente a jornalistas e autores, mesmo muito sensacionalistas e muito de direita, dando-lhes acesso a depoimentos e testemunhos - não a papéis, mas a testemunhos.

 O resultado é a imagem "humana" de um Cunhal sensível, familiar, amigo das crianças, amoroso, marido atento, irmão e filho dedicado, a somar ao artista e escritor. Cunhal pode ter sido todas estas coisas, - não foi, - mas isso só é relevante no contexto da sua persona política, que é o que o torna uma figura publica com um papel muito importante na história portuguesa do século XX. Não menosprezo o papel que a sua vida pessoal e íntima possa ter tido na sua biografia, mas verdadeiramente nem sequer fico a saber muito mais por esta literatura cor-de-rosa, até porque ela continua a seguir as conveniências e o cânone, ocultando dados e pessoas, fazendo uma amálgama de testemunhos e interpretações, errando ou sendo vago nas datas e nos locais.

A mitificação de Cunhal nestes termos tem implícita a ideia de que se pode ser um duro e ortodoxo dirigente comunista, e ser "humano", comum, frágil como toda a gente, ou seja, um de nós, que ainda se torna melhor por ter essa dimensão afectiva que ganha tal dimensão porque é apresentada como uma “descoberta”, à revelia do seu secretismo e da sua imagem de dureza. Ora, qualquer pessoa que saiba alguma coisa do comunismo e do modo como os partidos comunistas moldam os seus cultos de personalidade, - e o culto de personalidade é inerente à construção propagandística dos lideres, - sabe que esta construção "humana" é a regra para todos os dirigentes, a começar por Staline. Foi feita para Thorez e Togliatti, para ir buscar dois exemplos próximos. Aparecer com crianças é uma das imagens icónicas, beijando-as, erguendo uma, recebendo com um enorme sorriso um ramo de flores. Outra representação da iconografia comunista são gestos de companheirismo, de igualdade, de humildade. O grande líder caminha ao lado, ou à frente ou ao meio de um grupo, em gestos comuns com gente comum, tudo imagens estereotipadas. As mangas de camisa de Krutchov e a roupa desalinhada revelava o filho de camponeses, em Thorez, o mineiro, o “filho do povo”. Ou então aparecem rindo-se, conversando ou jogando, bebendo uns copos de vinho tinto, ou aparecem nostálgicos e vagamente tristes. Uma versão, de que há exemplos muito parecidos para Mao Zedong e, imagine-se Salazar, visto por Rosa Casaco, é o líder solitário, diante do mar, ou numa via-férrea, olhando para o infinito, pensando, com o peso do mundo nas costas, mas de pé e firme.

Em todas estas fotos, (e noutra altura falarei da Fotobiografia organizada pelo PCP) convém não esquecer que alguém escolheu aquela que foi divulgada e não outra , pode ter sido o próprio, ou alguém próximo. Não são nunca verdadeiras fotos de família, a não ser na infância e adolescência, ou então são tiradas pela “outra” parte da família. Cunhal, que era particularmente fotogénico e sabia disso, está lá, mas é abusivo ir muito longe nas conclusões, até porque, vistos com atenção aos pormenores de postura, e lidos, com rigor, os depoimentos e testemunhos não são assim tão “afectivos” como parecem.

               Significa isto que Cunhal era um homem insensível, sem sentimentos, nem qualidades “humanas”? Longe disso, só que nem sempre são os que lhe atribuem, como, mesmo esses, eram mitigados por uma dedicação maior à sua causa. É nessa dedicação que reside o verdadeiro Cunhal, o Cunhal que é diferente, e que transportou as suas inegáveis qualidades e talentos, para um combate político que é o que foi, e não o que agora se pretende adocicar com esta face meli-melo do “Àlvaro”, em conjugação com a “Eugénia” e “Ana”, como aparece no título do livro de Judite de Sousa, tudo construções ficcionais mais do que pessoas. »



               Eis, pois, um texto sábio, muito expressivamente  construído, em torno de uma sociedade que constrói os seus ídolos segundo romanticismos adaptáveis à nossa estridência emotiva, habilmente manipulados pelo jogo partidário – neste caso, de um partido que há muito inocula doces blandícias de direitos devidos às classes trabalhadoras ou ao povo que se continua a medir pela cartilha do suor e da exploração empobrecedora, a isso contrapondo o fervor do ódio gritante contra quem detém o poder de orientar os destinos da nação.

Já Garrett escrevera, sensível que era aos desmandos de uma sociedade de aristocracia e monopólio da propriedade, que cedo o fizeram participar activamente nos arreganhos liberais que inicialmente o ostracizaram, e seguidamente o fizeram empenhar-se na defesa e aplicação dos seus princípios – mais literários do que políticos, de que “Viagens na minha Terra”, constitui  exemplo de extraordinária amplitude, nos primórdios da  revolução industrial inglesa, com consequências sobre os inícios da modernidade, acompanhada da destruição da natureza e da formação do capitalismo e da exploração do homem operário. Tudo isso que ditou filosofias responsáveis por tanto do alarido em torno dessa mesma exploração que chegou aos tempos de Cunhal, que se prolonga nos nossos tempos, descontroladamente. Escreveu Garrett, no segundo capítulo das suas “Viagens”, texto de extrema actualidade:

«Não: plantai batatas, ó geração de vapor e de pó de pedra, macadamizai estradas, fazei caminhos de ferro, construí passarolas de Ícaro, para andar a qual mais depressa, estas horas contadas de uma vida toda material, maçuda e grossa como tendes feito esta que Deus nos deu tão diferente do que a que hoje vivemos. Andai, ganha-pães, andai; reduzi tudo a cifras, todas as considerações deste mundo a equações de interesse corporal, comprai, vendei, agiotai. No fim de tudo isto, o que lucrou a espécie humana? Que há mais umas poucas dúzias de homens ricos. E eu pergunto aos economistas políticos, aos moralistas, se já calcularam o número de indivíduos que é forçoso condenar à miséria, ao trabalho desproporcionado, à desmoralização, à infâmia, à ignorância crapulosa, à desgraça invencível, à penúria absoluta, para produzir um rico? - Que lho digam no Parlamento inglês, onde, depois de tantas comissões de inquérito, já devia andar orçado o número de almas que é preciso vender ao diabo, número de corpos que se tem de entregar antes do tempo ao cemitério para fazer um tecelão rico e fidalgo como Sir Roberto Peel, um mineiro, um banqueiro, um granjeeiro, seja o que for: cada homem rico, abastado, custa centos de infelizes, de miseráveis.»

É essa mesma sensibilidade social que esclarece a figura de Cunhal, pese embora o diferente cariz literário e humano das suas figuras. Cunhal esteve na Rússia, endureceu nas doutrinas de um comunismo fechado a uma doutrina de cristianismo que apela ao amor, os exemplos da crueldade totalitarista de chefes russos ambiciosos de poder universal não lhe repugnavam, certamente, nem a abertura de fronteiras por um humano e sedutor Gorbatchev o fizeram mudar de rumo ideológico.

Por isso, o retrato humano que dele faz Judite de Sousa  e que José Pacheco Pereira tão brilhantemente condena na sua página de uma literatura hábil, parece desnecessário. Hitler foi um monstro como Estaline foi, mas amou os cães – matando-os é certo, para testar a eficácia do veneno com que se suicidariam, ele e Eva Braun. Cunhal não foi um monstro, manteve-se coerente sempre no desbobinar de razões doutrinárias bem encasquetadas no seu cérebro fechado a quaisquer argumentos contrários. As pieguices da sua vida familiar não lhe valorizam a figura. De resto, mefistofélica. É assim que o recordo.

Que não falte a galinha



Do blog “A Bem das Nação” extraio o texto da jornalista Ana Sá Lopes que Henrique Salles da Fonseca transcreveu no seu artigo “DIZ-SE QUE HERR SCHÄUBLE É MAU!” tecendo em seguida considerações que, aceitando o repto que Ana Sá Lopes usa em tom crítico a respeito do discurso optimista de reconstrução europeia pronunciado pelo ministro alemão das Finanças, o desconstrói em sentido inverso ao da jornalista portuguesa, com o seu habitual sentido crítico de moderação e coragem em arrostar contra as demagogias dos que, estimulados na luxúria dos bons sentimentos, têm uma visão unilateral de enfado contra os “ricos” causadores da pobreza dos “explorados”, sem consentir na constatação de que as políticas de “largueza económica” a todos beneficiou, mas estavam erradas porque eram dinheiros de factura alheia que teríamos necessariamente que saldar com lágrimas.

Salles da Fonseca inverte as premissas derrotistas de ataque ao discurso de Herr Schäuble escritas por Ana Lopes e usa os considerandos daquele para provar que o seu optimismo é positivo e está certo. E sobretudo defende as políticas dos governantes actuais, que tentam corrigir o muito que se errou, na avalanche de serviços que foram distribuídos, na acomodação às incompetências e faltas de profissionalismo de grande parte, em que éramos useiros e vezeiros.

Talvez que se crie, de facto, uma consciência de que é necessário ser-se sério no trabalho, embora o desemprego atinja desbragadamente tantos  que são competentes e sem culpa.

Mas o texto crítico de Salles da Fonseca aponta um caminho de confiança e de esperança, contrariamente ao dos “profetas da desgraça”. A verdade é que o Governo tenta atamancar a crise do desemprego com os subsídios temporários, na mira de uma mudança positiva, o que mostra que não é – nem podia ser -  insensível às aflições que causa, não por vontade própria mas a isso forçado.

Um texto, como sempre, temerário, o de Salles da Fonseca, que sabe quanto este tipo de comentários está fora do âmbito dos habituais esclarecedores da verdade.

«Diz-se que

«O ministro alemão das Finanças ignora de modo grotesco a crise social europeia»;

Herr Schäuble afirma: “Ignorem os profetas da desgraça. A Europa está a ser consertada.”

E mais se diz que

«O mundo, visto de Berlim, é quase perfeito: “A receita está a funcionar, para desgosto dos numerosos críticos nos media, nas universidades e nas organizações políticas internacionais. O ajustamento era ambicioso e, por vezes, doloroso, mas a sua implementação é flexível e adaptável. As redes de segurança europeias providenciaram uma mistura bem calibrada de incentivos e solidariedade para amortecer o sofrimento.

O texto de Herr Schäuble é assustador porque é um dogma de fé. As “organizações internacionais” e as “universidades” bem podem produzir estudos – que, entretanto, se têm vindo a comprovar – sobre os riscos da política económica seguida pela Alemanha que, do alto do seu poder e da sua religiosidade intrínsecas, Schäuble ignora-os. A crise social nos países do Sul, os 27,8% da população grega sem emprego, os 16,5% de portugueses sem emprego, os 26,3% de espanhóis sem emprego e os 17,3% de cipriotas sem emprego não entram nas contas de Herr Schäuble.

O ministro alemão das Finanças ignora, de um modo grotesco, a mais grave crise social depois do fim da Segunda Guerra, afirmando que, “em apenas três anos, os custos unitários de trabalho e a competitividade estão rapidamente a ajustar-se (...) e os défices a desaparecerem”. A recessão na zona euro acabou.

O mais traumático no texto de Herr Schäuble, mesmo que tenha sido escrito na semana decisiva de uma campanha eleitoral onde o seu posto está a votos, é que ele despreza ostensivamente a realidade e, nomeadamente, os números. O final do texto é particularmente esclarecedor da arrepiante mistura de fé com bruxaria: “Os sistemas adaptam-se, as tendências mudam. Por outras palavras, o que foi partido pode ser reparado. A Europa de hoje é a prova.”

É extremamente grave o delírio de Herr Schäuble. Mas o mais grave ainda é que ele se pega.»

Ana Sá Lopes



E, contudo, sou da opinião de que Schäuble está dentro da razão.

Porquê?

Porque:

  • A Europa do Sul foi tomada por uma classe de políticos que não hesitou em «comprar» votos usando a demagogia paga com dinheiros públicos e daí surgiram os défices públicos;
  • A Europa do Sul sempre gostou muito mais de folgar nas belas praias (o famoso licenciado em «5º ano de praia») do que estudar nos livros, daí a grande deficiência na instrução e formação e, daí, a pobreza estrutural dos PIB's com inerente dependência económica externa e consequentes dívidas privadas;
  • Os políticos da Europa do Sul convenceram as suas populações de que é aos ricos que cumpre pagar a crise travestindo esse conceito marxista na famosa «solidariedade europeia»;
  • A Europa do Sul contou com todos esses ovos na cloaca da galinha e agora diz que os culpados são os ricos que não querem pagar a factura dos seus dislates, da sua «dolce vita»;
  • O escol de cada povo da Europa do Sul (não confundir com Governos nem com políticos demagogos) já percebeu que a mudança era inevitável e urgente;
  • O escol de cada povo da Europa do Sul rapidamente se apercebeu de que ele próprio teria que ser o agente dessa mudança não esperando pelas medidas de política sempre emperradas por Tribunais Constitucionais e organizações quejandas;
  • O escol de cada povo da Europa do Sul não perguntou aos Governos o que deveria fazer: fez!

Schäuble tem razão: a Europa do Sul está a safar-se, a modificar estruturalmente os «modelos de desenvolvimento» que a atiraram para o abismo acabando com as actividades que se revelaram perniciosas e a desenvolver as que são efectivamente virtuosas, a substituir inaptos profissionais por gente profissionalmente competente, a exportar em vez de chorar sobre a ruína dos respectivos mercados domésticos.

O que os Governos forem fazendo sempre há-de ajudar alguma coisa mas o escol de cada povo da Europa do Sul não conta com esse tipo de ovos na cloaca das galinhas.
 
E, se necessário, há-de-se inventar galinha sem cloaca!

Setembro de 2013»

 

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

“Elle aura lieu”



Vasco Pulido Valente, refere - no artigo do “Público” de 7/9 – “Não lhes toquem” - a imprudência de uma intervenção baseada, ao que parece, em bons sentimentos, visto que punitiva, de retaliação pelo uso de armas químicas sobre inocentes civis sírios, com origem na governação de Bashar al-Assad contra a sua própria gente. No artigo de 13/9 – “A Rússia ganha” – refere a inépcia de Obama em todo o processo interventivo junto da Rússia e outras competências europeias, com hipóteses de resoluções sem fins, por enquanto, à vista, mas indiscutivelmente, com a humilhação de Obama que, todavia, para salvar a honra do seu convento, informa que  o acordo para a destruição de armas químicas foi possível graças à "ameaça credível do uso da força pelos EUA".

A insistência de Pulido Valente na questão demonstra bem a preocupação acerca de um conflito, que, a continuar segundo os trâmites da piedade castigadora do Presidente americano poderá ter consequências terríveis à escala do orbe terrestre e talvez mesmo do espaço envolvente, graças ao apuramento cada vez mais sofisticado dos meios mortíferos criados pelo engenho humano, a quem não falta igualmente a arte do espectáculo universal. As duas primeiras guerras do século passado no-lo ensinaram, com a criação dos meios submarinos e aéreos, além da fabricação da bomba atómica que os Estados Unidos não se importaram de utilizar, aqui há uns anos – quase sete décadas - creio que também por motivos de bons sentimentos, embora mais do foro nacionalista, de amor pátrio contemplando um justo sentimento de vingança retaliatória.

Eis o primeiro texto de Vasco Pulido Valente:

«Não lhes toquem»

«Não há diferença entre uma acção punitiva, como a que Obama planeia contra a Síria, e uma guerra. Para ganhar uma guerra, são necessárias três condições. Primeira, que os objectivos estejam bem definidos. Segunda, que uma vez cumpridos, retirem radicalmente ao inimigo as possibilidades de retaliação. E terceira, que o agressor tenha um plano para substituir o regime que liquidou ou caiu por efeito da sua ingerência. Na Síria, a América não pode contar com nenhuma destas condições. Não existe maneira de avaliar ao certo a que objectivos (muitos deles dispersos, depois do anúncio oficial de Obama) os mísseis da América conseguirão chegar. A queda imediata de Assad não parece fatal. E, pior do que tudo isso, não existe um partido ou uma aliança política capaz de sustentar em relativa ordem um novo regime.

As fronteiras da Síria com o Líbano, a Jordânia, o Iraque, a Turquia e principalmente Israel permitem a Assad criar o caos na região e alargar a guerra, hoje propagandeada como uma espécie de “operação cirúrgica”, e uma guerra regional em que, tarde ou cedo, o Irão também se envolverá. Diga Obama o que disser, o que a América agora começar não acabará tão facilmente como começou. Não surpreenderia ninguém que durasse tanto ou mais do que a campanha do Iraque e do Afeganistão, que continua sem fim à vista, excepto o de uma retirada vexatória. O “castigo” porque Obama e, por exemplo, Hollande, falam esta linguagem “moralizadora” corre o perigo de se transformar num corpo a corpo universal para a recomposição ”nacional” e religiosa do Médio Oriente, que a Inglaterra e a França talharam e retalharam em 1918 para os seus próprios interesses.

Sobre isto, a oposição na Síria (como, em parte, o partido do Governo) é um aglomerado de grupos, que se detestam por razões religiosas, políticas, tribais, linguísticas, geográficas, mas fundamentalmente étnicas. Basta dizer que, quando era uma colónia da França, a Síria foi dividida em quatro províncias, que entre si viviam isoladas e só comunicavam com Damasco. Os famosos “liberais” de que a propaganda ocidental não pára de falar, não passam de uma pequena “clique”, sem força ou influência, perdida na turbulência da guerra interna, para que, aliás, não contam. Obama devia perceber mas provavelmente os seus serviçais não o ajudam, que a América, como a Europa, a China, a Índia e o Brasil – gente de outros mundos, de outras culturas, de outras tradições – não se pode imiscuir nos problemas dos islamismos, sem grave risco para o Islão e para si mesmos.»

Eis o segundo texto de Vasco Pulido Valente:

«A Rússia ganha»

«A intervenção cirúrgica que Obama prometeu foi felizmente comprometida pela inabilidade dele e por causa de uma coisa de que já ninguém se lembrava, excepto para a desprezar: a opinião pública. A data estava marcada e o plano pronto, quando Cameron e Obama descobriram, para sua surpresa, que a Inglaterra e a América não queriam qualquer espécie de guerra. O Parlamento paralisou Cameron; e Obama, isolado doméstica e diplomaticamente, resolveu adquirir alguma legitimidade e pedir ao Congresso que o apoiasse, mas logo se viu que esse apoio era duvidoso, mesmo entre os representantes do seu próprio partido. De fora, só ficou a França, que sempre viveu entre o autoritarismo e as revoluções. Bastou a Hollande uma discussão sem votos na Assembleia Nacional para reafirmar uma aventura que mais de 60 por cento o eleitorado rejeita.

A incerteza e as demoras que estas peripécias provocaram deram à Rússia uma grande oportunidade: a oportunidade de aparecer como intermediária entre a Síria e Obama numa situação em que o Ocidente se tinha metido num beco sem saída. Que vantagens tira a Rússia disso? Fora o prestígio de Estado “normal” (que anda longe de ser), mete a América, se ela por acaso aceitar, num sarilho sem fim. A proposta de retirar ou destruir o arsenal químico de Assad (que se calcula entre 1000 e 10000 toneladas de gás) é manifestamente absurda. Para começar, exige que Assad confesse onde o escondeu, ou seja, por outras palavras, concede a Assad uma grotesca confiança. Em segundo lugar, exige à volta de 1000 peritos, que para se moverem em segurança, precisam de tropas da América, da Europa e da Rússia. Em terceiro lugar, exige dinheiro, muito dinheiro. Em quarto lugar exige um armistício entre as várias partes da guerra civil, que pode durar, com optimismo, quatro ou cinco anos. Finalmente, exige o fortalecimento de Assad – como se compreenderá, indispensável a tudo isto.

A situação agora é esta. Se as negociações entre a América e a Rússia falharem, a Rússia acusará. Como de costume, a América de imperialismo e má fé; e Obama ficará praticamente impedido de avançar com a sua “intervenção cirúrgica”. Se as negociações não falharem, a América entregará sem um gesto ao sr. Putin. Mas, pior do que isso, a incapacidade da esquerda (americana ou não) para perceber as realidades do poder será arrasadoramente provada e a América voltará tarde ou cedo a uma forma atenuada de isolacionismo. O que de certeza não fará bem nenhum ao mundo.»

 

 No caso de não incumprimento do governo sírio, transcrevo da Internet:

«Mas ainda que o plano traçado não se refira directamente ao uso da força, os dois responsáveis comprometeram-se a apresentar uma resolução no Conselho de Segurança que deixe em aberto o recurso ao Capítulo VII da Carta das Nações Unidas, se o regime sírio não cumprir a parte que lhe compete – como se pode ler no 4.º parágrafo do texto do acordo (documento em inglês).

Este capítulo prevê "a interrupção completa ou parcial das relações económicas, dos meios de comunicação ferroviários, marítimos, aéreos, postais, telegráficos, radioeléctricos, ou de outra qualquer espécie, e o rompimento das relações diplomáticas", mas também dá ao Conselho de Segurança a possibilidade de "levar a efeito, por meio de forças aéreas, navais ou terrestres, a acção que julgar necessária para manter ou restabelecer a paz e a segurança internacionais".

Como diria Heitor em “La guerre de Troie n’aura pas lieu” de Jean Giraudoux: “Elle aura lieu”.

O farfalhudo das conversações, a luta das vaidades, vão empolar a questão e conduzi-la  ao irremediável. Foi assim na primeira e na segunda guerras, foram muitos milhões os que morreram e os que foram exterminados nas câmaras de horrores fabricadas pelos homens para o domínio do seu universo.

Uma amiga minha mandou-me imagens da Síria – de Damasco e outras terras, “antes que tudo isso fosse destruído”. Que beleza! Quanta recordação do passado, quanta elegância do presente, na modernidade das universidades, dos teatros, dos edifícios, o movimento, a simplicidade dos estudantes no seu trajar, sem o pretensiosismo do trajar académico de alguns nossos… Gostei das fotos reveladoras de um índice civilizacional elevado. Mas os facciosismos religiosos e as lutas pelo poder impõem a guerrilha que degenerará em guerra. La guerre qui aura lieu. Mundial. Salvadora da paz. Até um dia.