quinta-feira, 22 de agosto de 2013

«Minha nossa!»


Este grito de alarme (ou antes de ira, mau grado a nossa incapacidade para nos sentirmos enleadas nos meandros coléricos de poetas e compositores a respeito do “Dies Irae”, com que a Internet nos presenteia sadiamente (/sabiamente) - foi a minha amiga que lançou hoje, a falar da Síria e dos mais de mil mortos num ataque do governo sírio ontem, com armas químicas, contra os opositores rebeldes, que ceifaram vidas tenras e outras, indiscriminadamente, a acrescentar aos mais de cem mil de há dois anos a esta parte, com fuga das populações aterrorizadas para a Líbia e outros lados, a Suíça incluída.

- Aquilo foi uma coisa de horas que matou mil e tal pessoas. Coisa mais miserável, na Síria! O Obama é um bom rapaz! Espero que ele reaja. Ele deve estar tão horrorizado como nós!
Concordei imediatamente que ele era bom rapaz e muito sensível, não só porque acho isso, como porque nem podia achar outra coisa, que a minha amiga iria logo aos arames se discordasse, enervada que estava, com os largos gestos e amplas falas que utilizou, o que me fez logo puxar do bloco e da caneta.
- Não estava à espera que puxasse do coiso! Nunca mais puxou - exclamou, formalizada.
Transcrevi a frase, que me fez ler.
- “Faz favor de pôr a palavra coiso em francês. O coiso é o carnet.” – acrescentou, na sua indignação politicamente correcta e perfeitamente  erudita.
Docilmente obedeci.

Não sei se o Obama se vai indignar contra os massacres, a ponto de providenciar uma guerra mundial. Os rebeldes parece que são ajudados pelos americanos, sobretudo em apoio humanitário, os do governo são-no pela Rússia, que parece ter interesses ali, mais a China e o Japão, mas desconhece-se a origem do arsenal químico utilizado no massacre de ontem e que põe o mundo em alvoroço.
Penso nas nossas tragédias de incêndios, de dívidas monstruosas, de problemas de corrupção e de falta de educação e de emprego, mas se virmos bem a coisa, lá pelo Médio Oriente aquilo é um ver se te avias de misérias que já a Bíblia referia, mesmo só em relação aos hebreus e as suas tribos, que se espalharam hoje até à Al-Qaeda, que está em todas, e não há Jeovás que a petrifiquem em estátuas de sal, como à mulher de Lot, não resignada a perder as suas riquezas na Sodoma destruída como castigo das suas perversões.
O melhor mesmo é, depois de lida a tradução do “Dies Irae” medieval acerca do Juízo Final com o castigo divino, e ouvido no You Tube o “Requiem Dies Irae” de Mozart, transcrever o poema de Miguel Torga sobre igual tema, depois de ouvido no recitativo bem timbrado de Rui de Carvalho:
Miguel Torga- Dies Irae
Setembro 10, 2009

Apetece cantar, mas ninguém canta.
Apetece chorar, mas ninguém chora.
Um fantasma levanta
A mão do medo sobre a nossa hora.

Apetece gritar, mas ninguém grita.
Apetece fugir, mas ninguém foge.
Um fantasma limita
Todo o futuro a este dia de hoje.

Apetece morrer, mas ninguém morre.
Apetece matar, mas ninguém mata.
Um fantasma percorre
Os motins onde a alma se arrebata.

Oh! maldição do tempo em que vivemos,
Sepultura de grades cinzeladas
Que deixam ver a vida que não temos
E as angústias paradas!

Os nossos sofrimentos literários desabam em gritos, bonitos gritos de quem sofre dores da alma e os exprime metaforicamente.

Minha nossa!” repete a minha amiga, na antevisão assustada de uma guerra com armas químicas, que ninguém sabe quem fabrica. Que não é pessoa para soltar o “Lagarto! Lagarto!” da nossa banalidade linguareira, mais virada para a expressão singela do calão caseiro, de uma morfologia solidariamente expansiva: “Minha nossa!”

“Vade retro!” Não apetece morrer ainda e tanta gente que morre! Sem metáfora.

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