quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Destinos


Mais uma de Florian que já agora
Podemos aceitar como se fora
Feita para nós sem mais demora,
Que andamos por aqui todos à nora
Pecadores por direito e muita honra.
Até aterra! Poça!
(Mas quem preferir mais precisão,
na exclamação,
Pode, em vez do c cedilhado,
Pôr na expressiva interjeição
Os rr do nosso eu irritado.
Sem nenhum intento inferior
De ofender seja quem for):

«A toupeira e os coelhos»
«Cada um de nós conhece às vezes bem os seus defeitos.
Reconhecê-los é outra questão;
Prefere-se muitas vezes sofrer os males
Com todos os seus feios jeitos
A confessar que os nossos defeitos
São deles a verdadeira razão.
Lembro-me a este respeito
De ter testemunhado um feito
Bastante espantoso e difícil de crer.
Mas eu assisti, não há que duvidar,
Eis a história que vos vou contar:

Perto de um bosque, ao entardecer,
A um canto de soberba pradaria
Uns coelhos divertiam-se, sobre a relva florida
A brincar à cabra-cega com grande energia.
Coelhos! direis vós, é impossível!
Nada é mais certo, todavia:
Uma folha flexível
Sobre os olhos de um deles
Em banda era aplicada
E depois ao seu pescoço atada.
A coisa era de truz:

Aquele a quem a fita privava de luz
Ficava no meio, os outros em redor
Com grande ardor
Saltavam, dançavam, faziam maravilhas,
Afastavam-se, vinham alternadamente
Puxar-lhe a cauda ou as orelhas.
O pobre cego, então, voltando-se de repente
Sem recear tormenta, lança ao acaso a pata.
Mas o bando escapa-se à pressa,
Ele apenas apanha vento, em vão se dana,
Ficará lá, pela certa,
Até de manhã.
Uma toupeira estouvada,
Que debaixo da terra ouviu o barulho
Sai imediatamente do seu entulho
E vai ver o sarilho.
Vocês bem podem supor
Que nada enxergando, cegueta,
Foi apanhada como uma seta
Na brincadeira sem meta,
Como foi a tão conhecida
Da lebre e da tartaruga.
Senhores, disse um coelho doutor,
Seria de boa consciência,
E a justiça assim o requer,
Que à nossa irmã façamos um favor,
Ela está sem olhos e sem defesa:
Assim, sou de opinião…
Não! Responde com calor
A toupeira: fui apanhada,
Justamente agarrada,
Ponham-me a banda…
- De bom grado, minha cara,
Aqui está; mas acho que será bera
Se o nó ficar demasiado
Apertado.
- Perdoe-me, senhor,
Respondeu ela com grande ira,
Apertem bem, porque estou a ver,
Apertem mais, e mais,
Que ainda estou a ver.»


E aqui está como uma toupeira
Useira e vezeira a escavar no chão
É apanhada de supetão
No vaivém esporádico
De um coelho cego,
Em aparato lúdico.
O orgulho burro
Ou apenas casmurro
Da toupeira
De permanente cegueira
A impede de reconhecer
Que a sua cegueira é causa constante
Do seu sofrer.

E aqui está como nós outros,
Toupeiras de cegueira permanente
Que Saramago descreveu calorosamente,
Nos metemos na mixórdia triste
Da discussão de dedo em riste
E espada fruste.
E não arredamos pé das nossas posições,
Que a empáfia de nos querermos afirmar
Nos livra de darmos o braço a torcer
Mesmo que saibamos que nos estamos a espetar
Só a barafustar, a barafustar,
Ceguinhos a mergulhar
Na terra seca do nosso deserto
No poço fundo do desacerto,
Jamais querendo confessar
A parte da culpa que nos cabe.
Diz quem sabe.
Diz Florian
Que sempre soube.

Nenhum comentário: