quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Contagem decrescente


Foi a proposta comemorativa dos 125 anos de publicação de “Os Maias” e dos 40 da fundação do “Expresso”: continuar com a história d’ “Os Maias” do pobre do Eça, que estrebucha na tumba, em renovada agonia, pela obscenidade da ofensa ao seu génio, criador dessa obra prima. E os escritores que aceitaram a incumbência – à maneira de escolinha primária, em que se testa a criatividade das criancinhas mandando-as continuar os enredos das historinhas lidas (o que não é um mau exercício escolar, aliás) - consideram-se gente de bem, gente da moral e da crítica dos costumes nacionais. Bem libertos de autocrítica, na arrogância de todas as permissividades, a garantir todas as capacidades.
Estamos nitidamente na época de todas as traições, a de um Acordo Ortográfico que atraiçoou a língua mãe, a da diluição de conceitos e de desrespeito por homens, animais e coisas, começando pelas florestas que vamos destruindo sem pejo. A última traição é esta – a do seguimento da acção d’ “OS MAIAS” segundo as plumas deambulatórias  dos efabuladores convidados.

É certo que a proposta do “Eça Agora” se circunscrevia a “Os Novos Maias”, em princípio, pois, recriando figuras a partir das figuras de relevo nacional, já caricaturadas na televisão, mais ou menos despudoradamente, por actores ou ícones, reproduzidas as vozes e as figuras com grande eficácia, para o riso alvar, que é geralmente o nosso, mais pronto a saborear o que é imediato à nossa compreensão, a intuir o sentido do traço irónico mais subtil.
Mas “Os Novos Maias”, afinal, estão, nas obras tratadas – salvo, em parte, as narrativas contidas no volume 6º - de Gonçalo M. Tavares - brincalhona e chocarreira e com a amplitude do seu filosofar sintético habitual - e de Clara Ferreira Alves, com a recriação de um enredo em torno de um pretenso neto de Carlos da Maia, pretexto para vazar a sua arte e vivência pessoal de viajante de vários mundos e a sua crítica pautando-se, ao modo queirosiano, pelo desdém intelectual por uma população no seu geral destituída do condimento espiritual que distingue os homens – “Os Novos Maias estão no seguimento dos “velhos”, e isso é que me parece abusivo e denunciante daquilo que Vasco Pulido Valente no Jornal “Público” de 17/8 - “A Atracção da Asneira” – chama de revelador de “abismos de ignorância e de estupidez, que não se imaginariam em qualquer outra parte do mundo civilizado”.

Assim, a narrativa de José Luís Peixoto, no volume 4º, (os três primeiros constituindo a obra “OS MAIAS”) – “Depois de tudo, antes de alguma coisa” – (após um “Prefácio” e uma “Nota Prévia” explicativos) - gira, na 1ª parte, à volta da corrida para o americano do final de “Os Maias”, americano que conseguiram apanhar, bem a tempo do jantar no Bragança - pretexto para a constatação do desleixo e do vazio nacionais habituais - do início de uns amores com uma afrancesada e adúltera Claudine; uma 2ª parte, 10 anos depois, com Ega mais nostálgico e uma Claudine a reproduzir os desesperos anteriores da condessa Gouvarinho, na humilhação dos amores findos, o velho Dâmaso, oco e adoentado; uma 3ª parte baseando-se num quiproquó sobre a notícia - o “alguma coisa” do título – a morte de Dom Carlos e de Luís Filipe, do conhecimento do republicano Ega; o regresso de Maria Eduarda, amiga de Claudina, da estupefacção aterrada de Carlos. A fuga de Carlos para Santa Olávia, como refúgio, e como imitação da fuga de Maria Eduarda para França, após o reconhecimento do incesto, segundo a diegese queirosiana

Segue-se, ainda no volume 4º, “Tudo o que é chama”, por José Eduardo Agualusa, até aos anos vinte, pretexto para um puxar a brasa à sua sardinha, do escritor angolano, com cenas de corrida com flamingos e seu trocadilho com flamengos, os boers da colonização sul africana, de cenas de caçada, de graçolas, de histórias de desbravamento angolano com a indispensável acusação da acção portuguesa, para edificação dos dois amigos Carlos e Ega, e uma 3ª parte com os dois irmãos Carlos e Maria Eduarda vivendo assumidamente os seus amores incestuosos, a descoberta de Rosa, com fuga e zanga, mas o seu regresso final à casa colonial da mãe e do tio, na Restinga do Lobito.

 O 5º volume, preenchido por José Rentes de Carvalho e Mário Zambujal, em, respectivamente, “O Rio somos nós” e “O imenso pulo de Carlos da Maia”. Mistura o primeiro as figuras de Carlos e Ega - e simultaneamente Jacinto e Zé Fernandes em Tormes - com uma acção localizada numa aldeia do Alto Douro, onde Carlos recebe um Ega rezingão e desconfiado, mas saboreando os bons pratos caseiros, em breves referências impacientes ao “Esteves” da ditadura e à PVDE da protecção ao regime. Todavia, apesar de algum vigor dos seus comentários e da sua subida para a aldeia num burro, Ega morre, incoerentemente, durante essa breve estada junto do amigo, em 1937, Carlos no ano a seguir. Maria Eduarda já morrera, contara Carlos, a filha Rosa fora informada pela mãe, do caso fatal por eles vivido.

O livro de Mário Zambujal põe a personagem Carlos a narrar as suas histórias de vida em primeira pessoa, num tom por vezes displicente e observação grosseira que não se coaduna com a personalidade discreta e nobre do “belo cavaleiro da Renascença”. Uma vida aventurosa que passa pela Índia e regressa aos braços de uma Laura que um dia lhe mostrou o retrato da mãe, no qual reconheceu a condessa de Gouvarinho, e portanto Laura como sua filha:

«Martela-me a cabeça um batuque de contas. Sempre fui bom na aritmética e obtenho o resultado: Laura nasceu nove meses após a tarde em que a Gouvarinho e eu rebolámos no tapete persa!
- Que foi? Estás pálido.
- Nada. Água. Tenho sede.
Levanto-me e corro à cozinha, bebo, bebo, molho a cara no jorro da torneira. Nada apaga o lume dentro de mim. Meu Deus! Então Laura é… minha filha? Recuso-me a acreditar mas contas são contas. Choro. Outra vez tombado, inadvertivamente, nas malhas vergonhosas do incesto? Pior agora, a Maria Eduarda era meia irmã, desta sou pai por inteiro!»

Falso alarme do assustado Carlos. A Condessa Gouvarinho era apenas mãe adoptiva, Laura era filha da cozinheira da condessa, que morrera de parto.

«O alívio deu-me para correr e pular em toda a volta do quintal», a justificação do título do conto., que prossegue com a perseguição da PVDE, já a Alemanha invadira a Polónia.

           O “Ainda o apanhamos! Ainda o apanhamos!» do remate em paralelo com o final d’ OS MAIAS refere-se ao comboio que não chegaram a apanhar, na sua fuga. Mas também não seriam presos.
             O sétimo volume é constituído pelo estudo de Carlos Reis “Introdução à leitura d’ “Os Maias”.

             O projecto valeu como difusão de uma obra imperecível e juntamente com um estudo que ajudou gerações de alunos e professores. Isso bastaria como homenagem.  O resto não é sério, nem é a sério.

 

 

 

 

 

domingo, 25 de agosto de 2013

Também para os nossos corpos –S.O.S.And B.


Um texto de Isaías Afonso, saído no blog “A Bem da Nação”, de alerta para o mundo da agressão em que vivemos, causada, aparentemente, pelos fundamentalismos da torpeza humana, a coberto de cartilhas estagnadas no tempo, que mantêm as regras da sua conveniência de perversão imperialista e irrisória. Extremismos que convêm à babugem doutrinária de quem os apoia, num sentido de igualmente provocar desordem e pânico, aparentemente por simpatia humanitária com os mais desfavorecidos, na realidade para boicotar todas as tentativas de reconstrução que as contingências tornam dolorosas e injustas, mas que a intervenção daqueles - igualmente ambiciosos do poder, embora sem o suficiente impacto para estenderem o seu domínio doutrinário farisaico desprestigiado junto das populações cépticas – serve apenas de trombeta esganiçada e ruidosa a impedir a reconstrução pela via da reflexão e da real solidariedade.

                         Um texto que historia os ataques terroristas da Al-Qaeda nos últimos tempos e lança a suspeita sobre as origens dos descarrilamentos e desastres aéreos da actualidade, e a ameaça de novas acções daquela, cada vez mais tentaculares, exigindo intervenções bélicas de quem assume a defesa da nossa tranquilidade para podermos continuar a expandir argumentos e protestos de cínica generosidade.

                         Um texto sério e preocupado. Um texto triste, de Isaías Afonso, de inútil alerta:

 A AMEAÇA ISLÂMICA À EUROPA

Segundo a comunicação social, o fundamentalismo muçulmano intenta levar a cabo acções terroristas na Europa.

Está mais que provado que a informação é extremamente importante para que seja posta em alerta a segurança dos Estados contra o extremismo islâmico, pois este não diferencia as suas vítimas uma vez que pode até atingir muçulmanos no espaço europeu com os seus atentados, sem quaisquer estados de alma.

 Recordamos aqui o que foi há anos o massacre na Rue de Rennes em Paris, frente aos armazéns populares Tati, o ataque ao Metro parisiense, na estação St. Michel, em 25 de Julho de 1995 em que duas das vitimas foram trabalhadoras portuguesas, ou o ataque ao comboio na estação madrilena da Atocha, os ataques a escolas judaicas em Villeurbanne, nos arredores de Lyon, que despoletou, por parte da França, da operação "Vigipirate", os assassinatos em Toulouse e Londres por parte de muçulmanos, a tentativa de estrangulamento e decapitação dum militar no Bairro d e La Défense, em Paris, os milhares de carros queimados em Paris e arredores por extremistas islâmicos, os mais recentes acontecimentos em Trappes, nos arredores de Paris, consequência duma intervenção policial a uma muçulmana portadora de véu integral quando a França proibiu tal uso em espaço público, as bombas em Boston durante a maratona e outros evitados pela pronta intervenção das Autoridades de Segurança dos vários países da Europa.

A existência de mais de 16 milhões de muçulmanos na UE constitui um verdadeiro quebra-cabeças para a segurança, pois embora nem todos sejam terroristas, o certo é que se suspeita da existência de células terroristas muçulmanas adormecidas no espaço europeu.

A proposta terrorista de ataques a comboios leva-nos a voltar a considerar, como aqui já escrevemos, da suspeita de certos descarrilamentos ocorridos ultimamente como aquele que aconteceu em França com um comboio que galgou a gare, atingindo quem esperava no cais e quem nele viajava.

Lendo os comentários de leitores do online de jornais depressa nos apercebemos da existência de duas visões diametralmente opostas quanto às causas das ameaças e dos tristes eventos.

 Os que professam uma ideologia de direita criticam duramente os autores extremistas.

Os que têm um tropismo para a esquerda, nomeadamente a comunista e a extrema-esquerda, têm a tendência para desculpabilizar tal tipo de terrorismo mas responsabilizando os USA pela sua politica externa agressiva para com o mundo muçulmano numa atitude de verdadeiro anti-americanismo primário, a lembrar o tempo da Guerra Fria, quando a URSS era o modelo exemplar a imitar e seguir.

Este posicionamento absurdo, revelador do desconhecimento de duas culturas diferenciadas, como são a dita ocidental e a islâmica, sobretudo referente ao conceito de vida e de morte, torna-a cúmplice das barbaridades cometidas.

Essa tal esquerda lembra sempre as Guerras do Iraque e do Afeganistão ou o apoio intransigente ao Estado de Israel contra o terrorismo do Hamas ou do Hezbollah, movimentos encarados como agentes libertadores e legítimos dum Estado Palestiniano, o qual teria como prioridade o desaparecimento de Israel.

Esquece que é a juventude americana a defender-nos na frente de combate e mais recentemente os jovens militares franceses a enfrentar o terrorismo jihadista, no norte do Mali, evitando aí a criação dum Estado Terrorista da AQMI, (Al Qaeda do Magreb Islâmico) ,com o apoio dos Tuaregs, os protegidos na altura por Kadhafi, os quais vieram a apoderar-se do armamento sofisticado do ditador para colocar em causa os interesses franceses ou a segurança da Europa.

A esquerda portuguesa comunizante não aprendeu nada com a Queda do Muro de Berlim e antes prefere continuar a arvorar de punho erguido as velhas bandeiras ultrapassadas e já colocadas no Museu das Ideologias.

19 de Agosto de 2013

 


 

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

«Minha nossa!»


Este grito de alarme (ou antes de ira, mau grado a nossa incapacidade para nos sentirmos enleadas nos meandros coléricos de poetas e compositores a respeito do “Dies Irae”, com que a Internet nos presenteia sadiamente (/sabiamente) - foi a minha amiga que lançou hoje, a falar da Síria e dos mais de mil mortos num ataque do governo sírio ontem, com armas químicas, contra os opositores rebeldes, que ceifaram vidas tenras e outras, indiscriminadamente, a acrescentar aos mais de cem mil de há dois anos a esta parte, com fuga das populações aterrorizadas para a Líbia e outros lados, a Suíça incluída.

- Aquilo foi uma coisa de horas que matou mil e tal pessoas. Coisa mais miserável, na Síria! O Obama é um bom rapaz! Espero que ele reaja. Ele deve estar tão horrorizado como nós!
Concordei imediatamente que ele era bom rapaz e muito sensível, não só porque acho isso, como porque nem podia achar outra coisa, que a minha amiga iria logo aos arames se discordasse, enervada que estava, com os largos gestos e amplas falas que utilizou, o que me fez logo puxar do bloco e da caneta.
- Não estava à espera que puxasse do coiso! Nunca mais puxou - exclamou, formalizada.
Transcrevi a frase, que me fez ler.
- “Faz favor de pôr a palavra coiso em francês. O coiso é o carnet.” – acrescentou, na sua indignação politicamente correcta e perfeitamente  erudita.
Docilmente obedeci.

Não sei se o Obama se vai indignar contra os massacres, a ponto de providenciar uma guerra mundial. Os rebeldes parece que são ajudados pelos americanos, sobretudo em apoio humanitário, os do governo são-no pela Rússia, que parece ter interesses ali, mais a China e o Japão, mas desconhece-se a origem do arsenal químico utilizado no massacre de ontem e que põe o mundo em alvoroço.
Penso nas nossas tragédias de incêndios, de dívidas monstruosas, de problemas de corrupção e de falta de educação e de emprego, mas se virmos bem a coisa, lá pelo Médio Oriente aquilo é um ver se te avias de misérias que já a Bíblia referia, mesmo só em relação aos hebreus e as suas tribos, que se espalharam hoje até à Al-Qaeda, que está em todas, e não há Jeovás que a petrifiquem em estátuas de sal, como à mulher de Lot, não resignada a perder as suas riquezas na Sodoma destruída como castigo das suas perversões.
O melhor mesmo é, depois de lida a tradução do “Dies Irae” medieval acerca do Juízo Final com o castigo divino, e ouvido no You Tube o “Requiem Dies Irae” de Mozart, transcrever o poema de Miguel Torga sobre igual tema, depois de ouvido no recitativo bem timbrado de Rui de Carvalho:
Miguel Torga- Dies Irae
Setembro 10, 2009

Apetece cantar, mas ninguém canta.
Apetece chorar, mas ninguém chora.
Um fantasma levanta
A mão do medo sobre a nossa hora.

Apetece gritar, mas ninguém grita.
Apetece fugir, mas ninguém foge.
Um fantasma limita
Todo o futuro a este dia de hoje.

Apetece morrer, mas ninguém morre.
Apetece matar, mas ninguém mata.
Um fantasma percorre
Os motins onde a alma se arrebata.

Oh! maldição do tempo em que vivemos,
Sepultura de grades cinzeladas
Que deixam ver a vida que não temos
E as angústias paradas!

Os nossos sofrimentos literários desabam em gritos, bonitos gritos de quem sofre dores da alma e os exprime metaforicamente.

Minha nossa!” repete a minha amiga, na antevisão assustada de uma guerra com armas químicas, que ninguém sabe quem fabrica. Que não é pessoa para soltar o “Lagarto! Lagarto!” da nossa banalidade linguareira, mais virada para a expressão singela do calão caseiro, de uma morfologia solidariamente expansiva: “Minha nossa!”

“Vade retro!” Não apetece morrer ainda e tanta gente que morre! Sem metáfora.

terça-feira, 20 de agosto de 2013

A opção


Um texto cheio de graça, que me chegou por email, de Helena Sacadura Cabral.

E assim nos desenha, no pedantismo de uma linguagem, ora de afectos, dentro do conceito de humanismo igualitário de aproximação das classes – e é de crer seja pertença de uma esquerda sensível à dor e distribuidora de proximidades – laborais e outras – e comiserações dignas das nossas inclinações de religiosidade em Cristo – para com as populações humildes a quem se quer distribuir o reino terrestre, que o celeste lhes está garantido – e em contrapartida com as exaltações para com as elites das suas sanções – ora de uma linguagem de cultura e de primor, tanto da direita como da esquerda intelectuais, dadas às leituras dos livros técnicos e dos jornais estrangeiros, denunciantes de uma investigação prévia que nos serve de bandeja, para fazermos figura sem esforço de maior, nos nossos escritos e discursos.

          Mas de facto o novo-riquismo linguístico não é exclusivo nosso, como bem acentua Helena Sacadura Cabral, que situa os inícios do “fartote pegado” do linguajar sedutor, ou do “politicamente correcto”, por alturas das mudanças humanitárias na USA relativamente à designação para os seus pretos – os “afro-americanos” do seu disfarce anti-racista - por altura, pois, dos anos 60 dos Kennedys e dos Luther Kings, semeadores, como Cristo, das certezas fraternas – o seu continente excluído, todavia, da seara – e dos sonhos condenatórios das “Cabanas do Pai Tomás”.

Não é, pois, só pecha nossa este novo-riquismo da intelectualidade e da fraternidade linguísticas. Aliás, se alguma coisa criámos, nós, “Portugueses, poucos quanto fortes”, não foi, certamente, o altruísmo das modernas demagogias, apesar de sermos inclinados à lamechice e até de termos “dilatado a lei da vida eterna” segundo a visão optimista camoniana. Os ideólogos da fraternidade fundamentam-se em estudos e filosofias mais ou menos racionais e nós não possuímos tantos pensadores assim, mais em união com as exterioridades do passa-culpas estridente e libertador das nossas próprias responsabilidades nos casos dos dislates nacionais.

Mas o novo-riquismo é característico de todos os provincianismos como já o demonstraram as famosas “Preciosas Ridículas” de Molière, Magdelon e Cathos, chegadas da terra com muitos requintes de linguagem e desdéns  nos afectos, prova das suas competências e vaidades, equiparáveis às dos nobres requestadores, indecentemente vingativos.

Sejamos, pois, bons provincianos, na imitação dos bons sentimentos e das boas ideias traduzidos nos amaneiramentos linguísticos da nossa postura moral e social. Viva o nosso provincianismo no postiço do linguajar ou outro qualquer.

Trata-se do velho antagonismo entre o ser e o parecer e das nossas opções.

O texto de Helena Sacadura Cabral, explícito em relação ao  nosso ser, é bem revelador da nossa opção:

 

«Hoje não se fala português...linguareja-se!»

 

«NOVA LÍNGUA PORTUGUESA...IMPERDÍVEL,

Por Helena Sacadura Cabral.utilizada frequentemente em "ciências de educação" ...

Desde que os americanos se lembraram de começar a chamar aos pretos 'afro-americanos',com vista a acabar com as raças por via gramatical, isto tem sido um fartote pegado! As criadas dos anos 70 passaram a 'empregadas domésticas' e preparam-se agora para receber a menção de 'auxiliares de apoio doméstico' .

De igual modo, extinguiram-se nas escolas os 'contínuos' que passaram todos a 'auxiliares da acção educativa' e agora são 'assistentes operacionais'.

Os vendedores de medicamentos, com alguma prosápia, tratam-se por 'delegados de informação médica'.

E pelo mesmo processo transmudaram-se os caixeiros-viajantes em 'técnicos de vendas'.

O aborto eufemizou-se em 'interrupção voluntária da gravidez';

Os gangs étnicos são 'grupos de jovens'

Os operários fizeram-se de repente 'colaboradores';

As fábricas, essas, vistas de dentro são 'unidades produtivas' e vistas da estranja são 'centros de decisão nacionais'.

O analfabetismo desapareceu da crosta portuguesa, cedendo o passo à 'iliteracia' galopante. Desapareceram dos comboios as 1.ª e 2.ª classes, para não ferir a susceptibilidade social das massas hierarquizadas, mas por imperscrutáveis necessidades de tesouraria continuam a cobrar-se preços distintos nas classes 'Conforto' e 'Turística'.

A Ágata, rainha do pimba, cantava chorosa: «Sou mãe solteira...» ; agora, se quiser acompanhar os novos tempos, deve alterar a letra da pungente melodia: «Tenho uma família monoparental...» - eis o novo verso da cançoneta, se quiser fazer jus à modernidade impante.

Aquietadas pela televisão, já se não vêem por aí aos pinotes crianças irrequietas e «terroristas»; diz-se modernamente que têm um 'comportamento disfuncional hiperactivo' Do mesmo modo, e para felicidade dos 'encarregados de educação' , os brilhantes programas escolares extinguiram os alunos cábulas; tais estudantes serão, quando muito, 'crianças de desenvolvimento instável'.

Ainda há cegos, infelizmente. Mas como a palavra fosse considerada desagradável e até aviltante, quem não vê é considerado 'invisual'. (O termo é gramaticalmente impróprio, como impróprio seria chamar inauditivos aos surdos - mas o 'politicamente correcto' marimba-se para as regras gramaticais...)

As p.... passaram a ser 'senhoras de alterne'.

Para compor o ramalhete e se darem ares, as gentes cultas da praça desbocam-se em 'implementações', 'posturas pró-activas', 'políticas fracturantes' e outros barbarismos da linguagem. E assim linguajamos o Português, vagueando perdidos entre a «correcção política» e o novo-riquismo linguístico.

Estamos "tramados" com este 'novo português'; não admira que o pessoal tenha cada vez mais esgotamentos e stress. Já não se diz o que se pensa, tem de se pensar o que se diz de forma 'politicamente correcta'.»

 

 

«A porta de saída»


Foi André Gide que, na sua novela “A porta estreita”, título inspirado no tema da meditação do pastor da capelinha, segundo o Evangelho de S. Lucas, 13 – “Esforçai-vos por entrar pela porta estreita” das palavras de Cristo aos seus seguidores das cidades e aldeias, a caminho de Jerusalém narra os intensos amores de Jerónimo e de Alissa, de impossível realização, devido a uma estrita e desumana obediência, sobretudo da jovem, a um ideal de espiritualidade incompatível, apesar do sofrimento, com a concretização desses amores.

Em Destaque do “Público” de Domingo, 11 de Agosto, na Secção “Emprego” lê-se, na extensa reportagem de Paulo Moura sobre os Call Centers, intitulado “Os Call Centers vão salvar a economia portuguesa?”, que uma das propostas feitas pelos supervisores aos empregados de arribação eventualmente queixosos na pressão a que são sujeitos de prestação de boas performances, apesar da vilipendiosa exploração a que são sujeitos: “Se não estás satisfeito, a porta de saída é ali”.

E é, certamente, uma porta larga, para o corrupio constante da entrada de novos empregados e da sua breve saída como desempregados, gente geralmente jovem, que outro meio de vida não encontra, na miserável crise de desemprego que se atravessa, senão uma colocação temporária nesta falcatrua gerada por um alucinado Sócrates, criador do monstro, que apoia a sua rentabilidade e a riqueza dos seus patrões nos baixos salários próprios de um país subdesenvolvido, em contraposição com a exigência de boas prestações. A exploração em toda a magnitude da crueldade encartada e ditatorial, aceite impunemente por todo um país que lutou – é certo que apenas em gritaria florida e esbanjadora – contra a ditadura anterior, bem menos desumana, contudo, e com uma justiça funcionando melhor.

Leia-se:

“O edifício da Teleperformance da Expo-Oceanário, com o seu ambiente uniformizado e asséptico, jovem e poliglota, disciplinado, eficaz e dócil, garantido por regras austeras, precariedade contratual, horários intensivos e salários baixos, pode de facto ser a imagem do futuro. Do futuro em Portugal.

O segredo (do êxito) parece ser esse: um bom cocktail formado por salários baixos, competências linguísticas, boa estrutura tecnológica, boa localização geográfica. “O governo Sócrates fez um grande investimento em tecnologias de informação e redes comunicacionais. A nossa rede de fibra, por exemplo, praticamente não tem concorrentes no mundo inteiro. O Governo Sócrates deixou um bom legado nesse capítulo”, explica Ramos Pereira.»

«A situação parece poder resumir-se assim: um país pobre com uma boa rede de fibra. E talvez esta seja a fórmula suficiente para atrair os grandes call-centers mundiais.»

Outras magnificências se apontam justificativas da satisfação pelo êxito obtido, seguidas das provas de desrespeito e desprezo dos superiores para com os operadores que se esforçam por cumprir, ainda que blandiciosamente “instruídos para enganar os clientes”, na ameaça constante do despedimento.-

Transcrevo: «A pressão é enorme, e a instabilidade também. Há pessoas a chorar nos intervalos, que não aguentam, diz Carlos, que trabalha no call-center da PT em Coimbra

A porta dos call-centers ampla, para o recrutamento constante, para o despedimento arrogante e sem piedade.

Mas, de facto, ninguém pode pôr cobro a tal situação, num país habituado a esbanjar iniquidade.

A “porta estreita” de Gide, na sua intriga sobre o aperfeiçoamento interior pela renúncia a quaisquer tentações de felicidade terrena, é uma metáfora aplicada ao livre arbítrio do homem. A “porta larga” dos call-centers lembra antes a porta do Inferno de Dante com os dizeres apostos de advertência aos danados: “Lasciate ogni speranza, voi ch’entrate.”

E assim vivemos, na desesperança e na danação de todas as permissividades. Plenos de fibra, muito embora.

sábado, 17 de agosto de 2013

As maçadas causadas pelas gentes mal a(r)madas


Vasco Pulido Valente dá o título de “Protectorado” ao seu artigo no Público de Domingo, 11 de Agosto, designativo do estatuto que Portugal representa, provavelmente na companhia de outros países igualmente pouco cordatos na manipulação de dinheiros alheios, distribuídos segundo um convénio aparentemente generoso de unificação para melhor enfrentamento de borrascas futuras, provindas de leste ou do oeste. Na realidade tais dinheiros, utilizados entre nós numa via de construção/destruição, ou seja, num desenvolvimento em vária escala segundo uma ditadura de imposição de regras que destruíram campos e pescas e que proporcionou avalanche de negociatas, sem controle das regras de economia saudável, proporcionaram igual descontrole em toda uma população que sofregamente se espolinhou nas louras areias das suas praias soalheiras ou noutros meios de aparente enriquecimento cultural ou recreativo, sem preocupação pela hora da prestação de contas.

            Mas Vasco Pulido Valente contesta a preocupação que tal estatuto de protectorado provoca no espírito de alguns, como Paulo Portas, atribuindo as culpas do desastre nacional não ao nosso feitio folgazão, mais ligado ao improviso do desenrascanço do que à ponderação racional, mas a um tal Mitterrand e a um Sr. Kohl responsável pela actual Europa, além do nosso hábito ancestral de dobrar a cerviz – primeiro ao rei, nobreza e clero e seguidamente, empobrecidos pelas estroinices régias e desacatos civis ruinosos, além de naturais pretensões a uma modernização restauradora, trazida pela transformação tecnológica ocidental, obrigados a sobreviver - como alegremente clamava o João da Ega para os amigos no “Jantar no Hotel Central” - do imposto e do empréstimo. E foi aqui que a velha aliada dos tempos de D. Fernando e de D. João I, nos ajudou nas crises, protegendo-nos mas governando-se também, à conta da protecção.

Tudo isso findou, com Salazar pagando a dívida e desenvolvendo o país com férrea mão, perante a revolta dos seguidores das ideologias marxistas, e a sua aparência de infinita virtude na defesa de um povo sacrificado, apesar dos muitos que foram sobressaindo nesse povo, pelo seu próprio esforço e inteligência, o que nenhum desses – tal como hoje – parecia reconhecer, imoderadamente alimentados de ódio e de revolta lidas nas cartilhas e ignorando os reais crimes praticados pelos reais estalines das forças, essas sim, barbaramente transformadoras.

Até que, por cá, chegou a Revolução das Flores, e com ela a reabertura de uma situação de protecionismo exterior, velho aliado da nossa idiossincrasia perdulária.

O proteccionismo mudou de protector, por seu turno aquele apoia-se mais na indiferença e desprezo pelas tragédias em que fez mergulhar os países seus protegidos, a quem oferece trocos a troco do sacrifício dos povos, a Srª Merckel essencialmente preocupada com a França, cujas exigências poderão levar a Europa a uma hecatombe inflaccionária. É o que conta Vasco Pulido Valente na sua Página de História, concluindo que “Neste protectorado, o protector gostava principalmente que não o maçassem.”

A Crónica de Vasco Pulido Valente: «O Protectorado»

«Muita gente sofre, como Paulo Portas, com a situação de protectorado a que a dívida e o défice nos fizeram descer. Não têm razão para se afligir. Em primeiro lugar, porque a responsabilidade do euro não é nossa, é, principalmente do sr. Mitterrand, esse génio por quem tanto se chora, e do sr. Kohl, um dos “pais” da Europa em que vivemos. E, em segundo lugar, porque este protectorado continua, numa forma branda, uma velha tradição portuguesa. Desde o fim do século XVIII à ditadura de Salazar, a Inglaterra mandou em nós sem qualquer restrição: armou exércitos, punha e dispunha dos governos, proibiu partidos (como, por exemplo, o de Costa Cabral em 1847), sustentou (ou não sustentou) as nossas finanças como lhe convinha e até exigiu receber directamente uma parte das receitas do Estado, sem perturbar o indigenato por aí além.

A hegemonia, no sentido próprio da palavra, da Alemanha, sob capa da troika, não nos deve hoje indignar como caso único. A Alemanha, de resto, não se interessa particularmente por nós, de quem não quer ou espera nada. A espécie de ditadura que nos resolveu impor não passa de uma medida profilática. O euro, como se sabe, exige uma união política para as coisas correrem bem e essa união política é pura e simplesmente utópica. Entretanto, a Alemanha vai vendo com horror a aproximação do momento em que se tornará o último recurso da irresponsabilidade interna de umas dezenas de países. Se decidiu ser de uma particular severidade connosco e com a Grécia foi para não abrir um precedente. O que a preocupa é a França, que se recusa a qualquer reforma substancial e que não tardará a cair no buraco em que nós caímos.

Ora, se o nosso problema e o problema da Grécia se resolvem com trocos, uma eventual ajuda à França, e com ela à Itália, provocaria provavelmente uma inflação descontrolada. E não existe na Alemanha um medo maior: a memória activa da grande inflação, que as duas desastrosas guerras do século XX provocaram, continua a dirigir o cidadão comum. E segundo uma sondagem séria, o dito cidadão comum prefere o cancro a uma terceira catástrofe financeira. Neste aperto, a sra. Merkel tenta tranquilizar a populaça com a sua intransigência e rigidez, enquanto um pouco à socapa ajuda Portugal e a Grécia a não irem ao fundo. Mas como não autoriza ou determina directamente o nosso orçamento, a nossa dívida e a nossa política, não parece que chegue muito longe. Neste protectorado, o protector gostava principalmente que não o maçassem.»

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Urbano Tavares Rodrigues



Eu tinha 39 anos quando escrevi um texto sobre Urbano Tavares Rodrigues, que incluí na obra ”Cravos Roxos”, sob o tema “Literatura da Resistência” (Livro II). Vivia no sentimento da revolta contra a hediondez de um movimento que esfacelara a pátria, mas trouxera os meus cinco filhos comigo, e aqui nos instalámos, nesta velha casa que os meus pais foram pagando, quando regressados eles próprios da mesma África de palmeiras e liberdade sadia. Organizei a minha vida, dando aulas não oficiais, frequentei um seminário em Coimbra, acompanhei os filhos com a ajuda da minha mãe – o meu pai trabalhava ainda, tinha 73 anos e uma tosse que o atormentaria até o seu final de apenas mais cinco anos. Entretanto, o regresso do meu marido, na avalanche dos restantes, que tendo combatido naqueles espaços de grandeza era renitente a uma descolonização que chegaria nesse ano de 75, fez-nos mudar uma vez mais, aplicando-nos a seguir em frente, como a todos aconteceria, com maior ou menor coragem. O comboio que semanalmente me levava de manhã a Coimbra e de lá me fazia regressar à noite, representava para mim o símbolo de uma travessia feita de vontade e resolução. Durante o resto da semana aplicava-me, entre os outros trabalhos, a ler e a escrever sobre as obras dos autores dessa literatura da resistência que a professora Andrée Crabbé Rocha escolhera para tema do seu Seminário.

Urbano Tavares Rodrigues foi um dos escritores estudados e não foi muito favorável a minha opinião sobre ele, não por preconceito, por ser escritor de esquerda pois o meu conceito de liberdade e democracia não provinha de qualquer alquimia arrivista, mas era consequência de uma genuína educação que sempre se habituara a respeitar e a distinguir, segundo padrões humanistas. Outros escritores analisei na altura, “O Malhadinhas” de Aquilino, Gedeão, Torga para breve confronto, e apreciei-os por sensibilidade à sua arte, apesar do seu estatuto político idêntico ao do primeiro.

Urbano Tavares Rodrigues morreu no dia 9 de Agosto, com cerca de noventa anos, e naturalmente os espaços mediáticos e as personalidades gradas e da mesma linha ideológica pronunciaram as condolências da praxe, lembrando vagamente o amigo, o combatente, o escritor multifacetado, para além do homem de inteireza de carácter, como é do uso nestes casos.

Tenho na minha frente o jornal “Público” com fotos e episódios da sua vida e apreciações de críticos vários, todos pela positiva, escassas as análises da obra em si.

O texto que escrevi aos 39 anos, também não prima pelo rigor de análise propriamente literária, circunscrito aos poucos livros que mão fraterna então me emprestara, para além de alguma ingenuidade nos juízos de valor sobre a expressão do erotismo em Tavares Rodrigues, hoje apenas merecedores de chufas, mas ao relê-lo, observo que pelo menos pretende enquadrar-se numa análise sobre a temática explorada por Urbano Tavares Rodrigues - a da pecha manipuladora e anquilosante da criatividade neo-realista, que a exigência de orientação social intervencionista limitaria na profundidade da intriga ou na densidade dos caracteres. Exceptuam-se obras como “Uma abelha na chuva”, de Carlos de Oliveira, “O Barão” de Branquinho da Fonseca, em que se fundem valores de simbolismo ou de atmosfera irreal no relevo narrativo. Ou “A Curva da Estrada” de Ferreira de Castro que me impressionou, ainda estudante, entre outras preferências do meu pai, como “A Selva”, Terra Fria”, “A Lã e a Neve”. “O Malhadinhas” será também um conto a imortalizar o seu autor, Aquilino Ribeiro, “O Cavalo Espantado” de Alves Redol, além de outras obras suas, como “A Barca dos Sete Lemes” e “Barranco dos Cegos”, ocupam lugar à parte na ficção portuguesa, sem esquecer o livro maravilhoso de Torga “Bichos”, que fugindo ao contexto neo-realista, é um encantador livro de contos em que a ternura pelo bicho-homem ou pelo-bicho animal se harmoniza com os extraordinários efeitos evocativos de uma linguagem poética.

Eis o texto sobre Urbano Tavares Rodrigues, escrito em 1975:

«Urbano Tavares Rodrigues tem uma abundante obra literária, distribuída por “ficção”, “viagens e crónica” e “ensaio e crítica”. Referir-nos-emos apenas às obras de ficção lidas – “Bastardos do Sol”(1ª Ed. 1959), “As Aves da Madrugada” (1959), “Imitação da Felicidade”(1966), prémio literário e “Dissolução” (1974).

Da leitura destas obras ficámos com a impressão de um escritor sem dúvida com domínio da língua, mas com certa indigência criativa, que quase se limita a uma análise crítica da sociedade em que vive e o reflexo desta sobre o seu temperamento de revoltado e insatisfeito.

O último livro em causa apelidou-o de romance, não percebemos bem porquê, nem ele tampouco, pois no prefácio que o introduz sublinha a designação “romance” com um ponto de interrogação dubitativo e subitamente considera-o um misto de poema, crónica, romance e ensaio. A parte poética propriamente dita torna-se difícil de destrinçar, a não ser que as frases buriladas com sugestões de Pessoa lhe tenham lembrado a designação. Exemplificamos:

“A tristeza absurda do ar azul destes dias de sol em que se acorda estrangulado por memórias dispersas e sem saber a quantos vai a vida…Eu todo aos pedacinhos… O que sou do que fui? O que sou do que julgo ser? Como posso andar assim desfeito, errante mesmo no espaço exíguo do quotidiano, trabalhando, alienadamente e tanto, de forma tão sem sentido, tal como amo, tal como leio a argila dos rostos que se me oferecem?” (p. 226)

A parte romanesca julgamos antevê-la nas frequentes aventuras eróticas, por Tavares  Rodrigues analisadas com muita minúcia, para industriar os leitores ingénuos ou menos aventureiros, a respeito da sua ciência no capítulo. Transcrevemos apenas um passo do mesmo livro, “Dissolução”:

“Ficámos na penumbra, com desgosto meu, que a queria ver bem.

É lisa e dura, de seios pequenos, que me cabem nas mãos, ancas sacudidas de égua azul. Todas as nossas saliências e reentrâncias se esposam miraculosamente, acertos de acaso. Escalda como se tivesse febre depois da chuva. Com os lábios acorda sensações que vão até ao gemido, até à dor, em todo o meu corpo. Apesar da pupila desmaiada e da sobrancelha castanha, tem o púbis escuro e muito cerrado. O sexo húmido.

Há pouco artificial, ou irreal, não sei bem, agora, no ritmo do amor, na perda de consciência do orgasmo, é de uma inocência absoluta e linda…” (p. 13)

Este aspecto do erotismo é um factor constante, e num escritor com tantos pruridos de consciência, sempre em choque com a sociedade dita fascista, espanta-nos de que não se aperceba de quanto implica de desprezo e orgulho másculos a atitude solta de descrever minudências que desrespeitam e coisificam o sexo feminino.

Por outro lado, contudo, “Imitação de Felicidade” pretende focar, por intermédio de duas francesas, as reivindicações feministas, reduzidas em fim de contas a aventuras pouco dignas de libertinagem temperadas com um certo fundo de sensatez própria de todas as burguesias, incluindo a francesa, que obriga a um casamento forçado para tapar as bocas do mundo. A atitude aparentemente liberal e modernista de aceitar todas as reivindicações progressistas, no fundo não passa de “bluff”, pois para o escritor a mulher será apenas e sempre, livre objecto de prazer, escrava das perversões do homem.

Na sua crónica “Dissolução”, amálgama de questões na ordem do dia, além, pois, das frequentes incursões no campo sexual, talvez como processo delatório de uma virilidade que a todo o transe se nos quer revelar em força e variedade  – novo don Juan? – assistimos ao tema do desprezo rácico segregativo, ao ódio salteador e destruidor dos bons carros, à miséria social, com os necessários inquéritos sobre as condições de vida dos humilhados – fonte inspiradora, pelos vistos, dos actuais inquéritos televisivos, tão bem desnudando as escrófulas sociais, assaltos a bancos, mortes no ultramar em luta, estes dois últimos transcritos, sem comentários, de jornais, em todo o seu significado trágico e acusatório identificável com os métodos dos pintores cubistas. E a necessária náusea de viver, muito na ordem do dia também, analisada com um gosto narcísico de quem sofre e se requinta a exprimi-lo.

No livro “As Aves da Madrugada” outros temas se focam: o da rapariga solitária e sem amor que, cheia de complexos de culpa por ter sido iniciada nas relações sexuais normais, mata um pássaro já moribundo das garras de um gato, e descobre assim que, para ela, a felicidade consiste em se tornar necessária, ainda que furtivamente. Ao contrário, pois, da afirmação de Sartre “L’enfer c’est les autres” (“Huis Clos”), a rapariga do conto “A Ave Esventrada” descobre a felicidade suprema da comunicabilidade sexual.

“Margem Esquerda” explora a temática da represália sexual facinorosa e inútil.

“A Prova dos Nove”, conto autobiográfico, põe em destaque a ânsia de sobressair do irmão mais novo perante o irmão mais velho, o herói da sua adolescência, de um comunicativo fogo interior e vontade forte que o espicaçavam.

“Aves da Madrugada” expõe o velho tema das damas das camélias, certas situações caricatas, as necessidades não isentas de sentido humanitário dessas criaturas que Tavares Rodrigues parece conhecer bem.

Em “Mesmo que assim seja” transcreve-se o drama do encarcerado político, das torturas a que o submetem, da sua férrea vontade de não ceder, ainda quando o seu gesto de protesto resulte inútil.

“Bastardos do Sol”, romance, segundo o autor, mas que o prefaciador da segunda edição, Luís Francisco Rebello, considera uma novela, segue uma técnica de desobediência ao habitual processar cronológico da acção. O passado vai sendo reconstituído através da rememoração das personagens – um passado de desonra para a irmã, de ultraje reclamador de vingança do irmão sobre o que a desencaminhou, seguido da sua prisão e do suicídio final de Delfino – ser instável e um tanto sádico, Casanova ou Don Juan mal sucedido. O final do livro – o abandono de Irisalva da casa paterna e da consequente tutela do bruto irmão, termina simbolicamente com a oferta à criança do comboio da rosa quase vermelha do cinto – implicando assim, o seu desbotado, o esquecimento desse passado em que as flores vermelhas lhe eram oferecidas pelo namorado.

Reduzidas as acções dos seus livros ao plano esquemático, verificamos, pois, que não é brilhante o poder criador de Urbano Tavares Rodrigues, essencialmente denunciante de uma sociedade que condena, ou analista da alma humana, por meio de um estilo seguro e vigoroso, mas pobre de engenho para criar verdadeiras intrigas novelescas.»

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Destinos


Mais uma de Florian que já agora
Podemos aceitar como se fora
Feita para nós sem mais demora,
Que andamos por aqui todos à nora
Pecadores por direito e muita honra.
Até aterra! Poça!
(Mas quem preferir mais precisão,
na exclamação,
Pode, em vez do c cedilhado,
Pôr na expressiva interjeição
Os rr do nosso eu irritado.
Sem nenhum intento inferior
De ofender seja quem for):

«A toupeira e os coelhos»
«Cada um de nós conhece às vezes bem os seus defeitos.
Reconhecê-los é outra questão;
Prefere-se muitas vezes sofrer os males
Com todos os seus feios jeitos
A confessar que os nossos defeitos
São deles a verdadeira razão.
Lembro-me a este respeito
De ter testemunhado um feito
Bastante espantoso e difícil de crer.
Mas eu assisti, não há que duvidar,
Eis a história que vos vou contar:

Perto de um bosque, ao entardecer,
A um canto de soberba pradaria
Uns coelhos divertiam-se, sobre a relva florida
A brincar à cabra-cega com grande energia.
Coelhos! direis vós, é impossível!
Nada é mais certo, todavia:
Uma folha flexível
Sobre os olhos de um deles
Em banda era aplicada
E depois ao seu pescoço atada.
A coisa era de truz:

Aquele a quem a fita privava de luz
Ficava no meio, os outros em redor
Com grande ardor
Saltavam, dançavam, faziam maravilhas,
Afastavam-se, vinham alternadamente
Puxar-lhe a cauda ou as orelhas.
O pobre cego, então, voltando-se de repente
Sem recear tormenta, lança ao acaso a pata.
Mas o bando escapa-se à pressa,
Ele apenas apanha vento, em vão se dana,
Ficará lá, pela certa,
Até de manhã.
Uma toupeira estouvada,
Que debaixo da terra ouviu o barulho
Sai imediatamente do seu entulho
E vai ver o sarilho.
Vocês bem podem supor
Que nada enxergando, cegueta,
Foi apanhada como uma seta
Na brincadeira sem meta,
Como foi a tão conhecida
Da lebre e da tartaruga.
Senhores, disse um coelho doutor,
Seria de boa consciência,
E a justiça assim o requer,
Que à nossa irmã façamos um favor,
Ela está sem olhos e sem defesa:
Assim, sou de opinião…
Não! Responde com calor
A toupeira: fui apanhada,
Justamente agarrada,
Ponham-me a banda…
- De bom grado, minha cara,
Aqui está; mas acho que será bera
Se o nó ficar demasiado
Apertado.
- Perdoe-me, senhor,
Respondeu ela com grande ira,
Apertem bem, porque estou a ver,
Apertem mais, e mais,
Que ainda estou a ver.»


E aqui está como uma toupeira
Useira e vezeira a escavar no chão
É apanhada de supetão
No vaivém esporádico
De um coelho cego,
Em aparato lúdico.
O orgulho burro
Ou apenas casmurro
Da toupeira
De permanente cegueira
A impede de reconhecer
Que a sua cegueira é causa constante
Do seu sofrer.

E aqui está como nós outros,
Toupeiras de cegueira permanente
Que Saramago descreveu calorosamente,
Nos metemos na mixórdia triste
Da discussão de dedo em riste
E espada fruste.
E não arredamos pé das nossas posições,
Que a empáfia de nos querermos afirmar
Nos livra de darmos o braço a torcer
Mesmo que saibamos que nos estamos a espetar
Só a barafustar, a barafustar,
Ceguinhos a mergulhar
Na terra seca do nosso deserto
No poço fundo do desacerto,
Jamais querendo confessar
A parte da culpa que nos cabe.
Diz quem sabe.
Diz Florian
Que sempre soube.