sábado, 11 de maio de 2013

Duplicidades


Nem sempre as opiniões de Vasco Pulido Valente primam pela coerência, pois, se informa objectivamente que “a fúria, a raiva e até o ódio crescem em Portugal, sobretudo contra o regime e o seu pessoal”, segundo a crónica intitulada “Eleições”, (Público, 4 de Maio), na crónica seguinte, de 5 de Maio, “Usos da História” faz afirmações que pecam pelo excessivo de um panegírico abjecto e falso, como a seguinte com que a inicia: “O Dr. Mário Soares, que Portugal inteiro respeita e admira, ganhou o direito de dizer o que achar por bem sobre o governo de Passos Coelho ou sobre outro qualquer de que ele não goste ou ache prejudicial ao país.”

De facto, não se contesta o direito de qualquer cidadão à expressão da sua própria opinião – política ou outra - ele está contido no artigo 2º da “Declaração Universal dos Direitos Humanos”, leio na Internet, Declaração essa sucedânea a momentos de terror e miséria que envolveram o mundo graças a um – e não só – homem que calcaria todos os direitos humanos, na sua desvairada e criminosa ambição de domínio. Mas discordo desse tom louvaminheiro inicial, quando seguidamente demonstra, com os dados da sua erudição, que na realidade as opiniões de Mário Soares são índice da sua ignorância e arrogância, como sempre foram, de senilidade como agora são.

Leiamos o texto de Vasco Pulido Valente, «Usos da História»:

«O dr. Mário Soares, que Portugal inteiro respeita e admira, ganhou o direito de dizer o que achar por bem sobre o Governo de Passos Coelho ou sobre outro qualquer de que ele não goste ou ache prejudicial ao país. Mas devia tomar algum cuidado com o uso que faz de lendas políticas, que não assentam na realidade ou que a distorcem. Tudo começou com uma citação de Afonso Costa que prometia ao rei o cadafalso de Luís XVI. Como de facto D. Carlos foi assassinado, parece à primeira vista que a profecia se realizou. Mas não realizou. A frase de Afonso Costa vinha a propósito das dívidas (de resto inteiramente justificadas) do rei ao Estado e não produziu grande agitação. Os republicanos mataram D. Carlos porque, depois de uma revolução falhada, o Governo do dia prendeu e decretou o exílio das principais figuras supostamente comprometidas no caso. Que se saiba, Passos Coelho ainda não prendeu ou degredou alguém. A comparação não se aplica.

E a comparação num artigo de sexta-feira com Hitler e Mussolini também não se aplica. Soares declara que este Governo é teoricamente legítimo, já que o elegeram, mas que Hitler e Mussolini chegaram ao poder, como Passos Coelho, pelo voto. Ora isto é falso. Hitler perdeu uma eleição presidencial (em duas voltas) contra Hindenburgo e o máximo que o partido nazi conseguiu em eleições livres não passou de 37,4%. Pior ainda: pouco tempo antes de o fazerem chanceler, o voto em Hitler, na última eleição livre da República de Weimar, desceu para 33,1%. Sem aliados, nem dinheiro, o homem estaria perdido. Infelizmente, a direita ultranacionalista, incluindo a maioria do exército, acabou por lhe dar apoio e uma dúzia de industriais os marcos de que ele precisava. Em última análise, esta gente é que levou o futuro Führer ao poder, convencida de que iria mandar nele. Passos Coelho contava desde o princípio com a aliança com o CDS, e “subiu” a S. Bento sem nenhuma ajuda do exército e, que se visse, muito pouca do “capital”.

Quanto a Mussolini, não concorreu sozinho a qualquer eleição e, para meter 35 deputados no Parlamento de 535 lugares, teve de aceitar um mesquinho papel no “bloco da direita”, que o desprezava. O terror dos “fáscios de combate”, no sentido original da palavra, e a famigerada “marcha sobre Roma” (obviamente ilegal), com a ajuda e a concordância do exército, é que forçaram o rei a nomear o homem primeiro ministro, com o propósito de sufocar ou atenuar a guerra civil, que se estabelecera em Itália. Passos Coelho nunca andou metido em crimes deste género. O uso da História para “provar” argumentos políticos costuma levar ao fracasso. E o dr. Soares é suficientemente claro, sem estas contorções.»

Começou, pois, com panegírico, a crónica de Vasco Pulido Valente, e depois de destruir os argumentos de Mário Soares quando desancou Passos Coelho em rebuscadas e mentirosas comparações historiográficas, termina o seu texto em técnica circular, voltando ao elogio, embora com a palmatoada devida aos pedantes contorcionismos argumentativos daquele, querendo presumir sobre a personalidade “criminosa” de Passos Coelho já entrevista na história aterradora do passado.

Não me importa que tenha ferido os brios de Mário Soares denunciando-lhe o erro e a presunção maldosa que vem confirmar a opinião que sempre tive dele. Só não entendo o motivo por que o endeusa com uma frase de retórica empolada totalmente falsa.

De facto, apesar dos jornalistas que igualmente se lhe prostram aos pés, entrevistando-o, dando-lhe relevo, escutando-o com enlevo, dando-lhe dinheiro a ganhar com os seus artigos de opinião sensaborona e unilateral, não creio que Portugal inteiro o respeite e admire assim tanto. Muitos, sim, que continuam agarrados ao slogan de “libertador da pátria” que ele não foi, apenas tendo comido do prato que outros lhe apresentaram já atascado – e não de lentilhas - colaborando, isso sim, de consciência serena, na desvinculação dos pedaços territoriais do seu país, semeados pelo mundo.

Esse facto o promoveu para sempre, mesmo no espírito perspicaz de Pulido Valente. Mas parece-me isso incoerente e controverso, e tenho pena. Até porque Mário Soares provavelmente já nem usa botas para serem lambidas, pois, com o envelhecimento, os calos requerem  pantufas.
 

 

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