quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Uma obra de amor



Tal é “Exsurge, Deus” de Henrique Salles da Fonseca.

Na escolha do tema, no avultado da pesquisa e recolha de dados, na originalidade da exposição, na leveza, por vezes, do discurso subjectivo, onde o humor e a ironia perpassam, com claro sentido de paralelismo com uma actualidade que talvez necessite de manter resquícios de crenças ou de esperanças messiânicas…

A originalidade da sua exposição, com as divisórias modestas, como de guião apressado: nº 1 - “TEMAS CHAVE” («quem foi quem e o que foram as coisas»), tópicos orientadores ou definições, e fotografias acompanhando referências a pessoas ou locais ou insígnias - seguidas de «BIBLIOGRAFIA. Um discurso mais sequencial, vindo a seguir: no nº 2 – «NA POLÓNIA» («onde nasceram as Monita Secreta, livro que serviu para criar ódio à Companhia de Jesus»), no nº 3 - «NO MUNDO» («onde se trata da guerra que sempre existiu dentro da Igreja entre os conservadores beneditinos e dominicanos e os “progressistas” jesuítas») e se apontam os papas que tiveram influência sobre a vida de Vieira e dos reis portugueses – e espanhóis – durante a Restauração.

O nº 4 -«EM PORTUGAL», de texto em negrito («Onde se referem as circunstâncias políticas durante os reinados de Filipe III, D. João IV e D. Afonso VI que motivaram a ida do P. António Vieira a julgamento pela Inquisição)», que inclui a biografia de Vieira e excertos dos Sermões («Sermão pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal contra as de Holanda», que fez de Vieira “o verdadeiro herói da restauração portuguesa no Brasil”) , Filipe III- Rei de Portugal, (1605-1665); D. João IV (oitavo duque de Bragança, nasceu em Vila Viçosa a 19 de Março de 1604 e morreu em Lisboa a 6 de Novembro de 1656), que chama Vieira para confessor e o nomeia embaixador de Portugal junto à Santa Sé, para advogar a causa da independência.

Vieira suscita invejas, pronuncia sermões de defesa dos cristãos novos e contra a escravatura, ataca a ignorância e o pedantismo oratório do clero no Sermão da Sexagésima, é diplomata na Holanda, na França, em Roma, defende a aceitação da independência portuguesa pelos estados europeus e a Santa Sé, a isso renitentes. Numa carta a um, “amigo e colega jesuíta – D. André Fernandes, então Confessor da Rainha viúva – D. Luísa Gusmão - e bispo eleito do Japão” defende a formação doQuinto Império do Mundo” sob a égide de D. João IV, (e na sucessão do “Assírio, do Persa, Do Grego e do Romano”), crente na ressurreição de D. João IV, segundo provara o sapateiro Bandarra, um verdadeiro profeta.

5: Seguem-se as Trovas do Bandarra e a brilhante descodificação e interpretação de Vieira, no sentido da demonstração do “Quinto Império”, de que não resisto a transcrever as quase finais estrofes comprovativas:

«Portugal tem a bandeira / Com cinco quinas no meio, / E segundo ouço e creio / Ele é a cabeceira; / Tem das chagas a cimeira / Que em Calvário lhe foi dada, / E será rei da manada / Que vem de longa carreira.»

À vitória dos Turcos e redução dos Judeus se seguirá também a extirpação das heresias por meio deste glorioso príncipe. Bandarra nas trovas do fim:

«Vejo erguer um grão rei / Todo bem-aventurado, / E será tão prosperado / Que defenderá a grei; /Este guardará a lei / De todas as heresias, / Derrubará as fantasias / Dos que guardam o que não sei.»

«Todos terão um amor, / Assim gentios pagãos / Como judeus e cristãos, / Sem jamais haver error. / Servirão a um só Senhor, / Jesus Cristo que nomeio; / Todos crerão que já veio / O ungido Salvador.»

Morre D. João IV, o seu protector, Vieira cai em desgraça, a ponto de ser preso pela Inquisição:
«Quando Vieira chega ao Reino encontra um ambiente que lhe é claramente hostil. Todos os seus inimigos são importantes. É abruptamente afastado e em 1662 enviado para o Porto de modo a não ter qualquer influência na Corte. E dá-se o grande absurdo de um português em bolandas pelo mundo em obra de engrandecimento da Fé e da Pátria se resguardar em Portugal julgando que chega a casa onde pode ficar tranquilo e ser afinal trucidado por uma máquina gigantesca… de mesquinhez.»
- «Mérito seja entretanto reconhecido a Castelo Melhor que se tornara o verdadeiro governante, pois reorganizou as finanças e praticamente completou a obra da Restauração vencendo os espanhóis no Ameixial em 1659, em Castelo Rodrigo em 1664 e em Montes Claros em 1665.»

                    O capítulo 6 contém as referências às andanças de Vieira, liberto das garras da Inquisição, em Roma, na busca do “reconhecimento da soberania portuguesa (só obtido em 1669, pelo papa Clemente IX) e de um salvo-conduto que o tornasse a ele próprio imune à famigerada Inquisição”, referências à amizade com Cristina da Suécia, ao confronto entre o universo cultural de modernização e progresso no estrangeiro e o universo português tacanho, dogmático e cada vez mais envilecido e distanciado daquele, referência aos muitos sofrimentos de Vieira no Brasil, à sua morte, em 18 de Julho de 1697.

Termina o livro com a frase “EXSURGE DEUS, JUDICA CAUSAM TUAM”, «inscrição latina no lintel da porta principal do Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de Évora, que em português comum significa: LEVANTA-TE DEUS , JULGA A TUA CAUSA»

Depreende-se que, na opinião de Salles da Fonseca, o julgamento de Deus será bem positivo, pois só uma admiração grande por uma figura tão extraordinária possibilitaria um tão árduo trabalho, com a transcrição do emaranhado das trovas do Bandarra e a densa argumentação de Vieira comprovativa das profecias daquele.

Vários excertos apetecia citar da obra “EXSURGE, DEUS”, título com o seu quê de irónico, de quem não receia o julgamento. Transcrevo o seguinte passo tão expressivo da argúcia narrativa e argumentativa de Salles da Fonseca:

«Pregação da Palavra ou doutrinação política? Divinização do poder régio? Houve quem gostasse de ouvir, a começar pelo próprio Rei; houve quem não ouvisse bem o que foi dito pois estaria mais interessado em ser visto na Capela Real como membro da Corte do que prestar atenção a um sermão tão comprido . . . mal disfarçando um ou outro bocejo; houve quem não entendesse nada do que foi dito por estar munido de capito diminutia e as rendas e bordados serem o motivo do raciocínio mais elaborado que alcançaria; mas também houve quem entendesse muito bem o que ouviu e não gostasse da teologia da profecia. Julgar-se-ia o novo Pregador oficial da Corte um par de Nostradamus? Disparate; não passava de um bandarreiro qualquer vindo lá dos sertões. ( Alusão pejorativa a Gonçalo Eanes, o Bandarra, sapateiro de Trancoso, trovador, profeta: 1500? -1556 dos brasis falando guaranis e sem hábitos de convivência com pessoas civilizadas. Então o Rei não tinha cá Padres capazes de servirem na Corte? Logo tinha que dar o cargo a um índio cheio de sotaques!

As críticas motivadas pela inveja podem ser infundadas e, portanto, injustas mas produzem resultados habitualmente funestos. É típico de Portugal apear qualquer um que se distinga em vez de o aplaudir. Não se trata de uma questão teológica ou sequer biológica mas apenas de um tique de mediocridade. Não será esta uma das causas principais do nosso atávico subdesenvolvimento? E há quem diga que Portugal é um País muito católico…a inveja é pecado e, afinal, é por cá tão costumeira. Grandes católicos ou ignaros e mesquinhos? Se a isso juntarmos a coragem dos que rompem com a mediocridade e mesquinhez e emigram, dá para crer que os que ficam são precisamente os que não têm coragem e se conformam com essas mesmas mediocridade e mesquinhez. Portanto, os que ficam é porque têm de seu ou porque são medíocres e mesquinhos. Ah! Também há os herdados que não prestam e com alguma presteza “distribuem” a herança por credores e gatunos. Terá sido exactamente por esse tipo de razões que D. João chamou António Vieira para junto de si: ele não emigrara deliberadamente pois que era então uma criança e se limitara a acompanhar os pais mas vira entretanto muitos outros horizontes, tinha uma grande experiência de vida, experimentara a força da natureza em naufrágios e nas florestas amazónicas, era um grande pregador e sobretudo já era um herói da restauração portuguesa no Brasil. Bastaria esta última referência para que D. João entendesse como sendo da mais elementar justiça dar a António Vieira uma recompensa. E que melhor estatuto do que a de amigo do Rei e seu embaixador especial? Mas, para além da recompensa, estava em causa o interesse do então periclitante reino e esse, mais do que nunca, necessitava de homens inteligentes, cultos, experientes e corajosos. Se a essas características se juntasse a facilidade da palavra, tinha-se António Vieira em pessoa a ajudar o seu Rei e amigo.»

Finalizo com um conhecido excerto do “Sermão da Sexagésima”, desse autêntico virtuose da palavra, que foi o P. António Vieira, excerto bem comprovativo, (no brilho do seu discurso), de que mereceu inteiramente o entusiasmo e a dedicação de Salles da Fonseca no trabalho extraordinário de divulgação que dele fez:
 
«Fábula tem duas significações: quer dizer fingimento e quer dizer comédia; e tudo são muitas pregações deste tempo. São fingimento, porque são subtilezas e pensamentos aéreos, sem fundamento de verdade; são comédia, porque os ouvintes vêm à pregação como à comédia; e há pregadores que vêm ao púlpito como comediantes.

Uma das felicidades que se contava entre as do tempo presente era acabarem-se as comédias em Portugal; mas não foi assim. Não se acabaram, mudaram-se; passaram do teatro ao púlpito. Não cuideis que encareça em chamar comédias a muitas pregações das que hoje se usam. Tomara ter aqui as comédias de Plauto, de Terêncio, de Séneca, e veríeis se não acháveis nelas muitos desenganos da vida e vaidade do Mundo, muitos pontos de doutrina moral, muito mais verdadeiros e muito mais sólidos, do que hoje se ouvem nos púlpitos. Grande miséria por certo, que se achem maiores documentos para a vida nos versos de um poeta profano e gentio, que nas pregações de um orador cristão, e muitas vezes, sobre cristão, religioso! Pouco disse S. Paulo em lhe chamar comédia, porque muitos sermões há que não são comédia, são farsa.

Sobe talvez ao púlpito um pregador dos que professam ser mortos ao Mundo, vestido ou amortalhado em um hábito de penitência (que todos, mais ou menos ásperos, são de penitência; e todos, desde o dia que os professamos, mortalhas); a vista é de horror, o nome de reverência, a matéria de compunção, a dignidade de oráculo, o lugar e a expectação de silêncio; e quando este se rompeu, que é o que se ouve? Se neste auditório estivesse um estrangeiro que nos não conhecesse e visse entrar este homem a falar em público naqueles trajos e em tal lugar, cuidaria que havia de ouvir uma trombeta do Céu; que cada palavra sua havia de ser um raio para os corações, que havia de pregar com o zelo e com o fervor de um Elias, que com a voz, com o gesto e com as acções havia de fazer em pó e em cinza os vícios. Isto havia de cuidar o estrangeiro. E nós que é o que vemos? – Vemos sair da boca daquele homem, assim naqueles trajos, uma voz muito afectada e muito polida, e logo começar com muito desgarro, a quê? – A motivar desvelos, a acreditar empenhos, a requintar finezas, a lisonjear precipícios, a brilhar auroras, a derreter cristais, a desmaiar jasmins, a toucar Primaveras, e outras mil indignidades destas.

Não é isto farsa mais digna de riso, se não fora tanto para chorar? Na comédia o rei veste como rei e fala como rei; o lacaio veste como lacaio e fala como lacaio; o rústico veste como rústico e fala como rústico; mas um pregador, vestir como religioso e falar como... não o quero dizer, por reverência do lugar. Já que o púlpito é teatro, e o sermão comédia se quer, não faremos bem a figura? Não dirão as palavras com o vestido e com o ofício? Assim pregava S. Paulo, assim pregavam aqueles patriarcas que se vestiram e nos vestiram destes hábitos? Não louvamos e não admiramos o seu pregar? Não nos prezamos de seus filhos? Pois porque não os imitamos? Porque não pregamos como eles pregavam? Neste mesmo púlpito pregou S. Francisco Xavier, neste mesmo púlpito pregou S. Francisco de Borja; e eu, que tenho o mesmo hábito, porque não pregarei a sua doutrina, já que me falta o seu espírito?»

               JUDICA CAUSAM TUAM

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Ana Margarida


Uma releitura do “Bonjour Tristesse” fez-me recordar a altura em que Françoise Sagan pelos anos 50, andava eu por Coimbra, causara escândalo com uma novela que breve se tornaria best-seller no mundo inteiro. Françoise Sagan tinha a minha idade, quando o livro apareceu, admirei-lhe o engenho, quando mais tarde a li, de com tanta sensibilidade e elegância exprimir um mundo jovem, de bem-estar e liberdade, numa acção passada na Riviera francesa, era verão. O mundo de uma adolescente, bem protegida quer economicamente quer afectivamente por um pai sedutor e mundano, trocando facilmente de amantes, sem moral, pois, para condenar as liberdades da filha Cecília, com quem estabelecera uma relação de camaradagem despreocupadamente cúmplice.
Mas o novo amor de Raymundo, o pai - Ana, mulher de superior educação e exigência de princípios - faz que aquele decida desposá-la, na consciência de que seria essa a mulher ideal para a orientação dos dezassete anos da filha, órfã de mãe desde pequenina. À última amante – Elsa -, mais uma das facilmente descartáveis, que não faziam sombra a Cecília – só resta fazer as malas e partir, mas o predomínio de Ana sobre o espírito do pai, e a sua ingerência na sua própria vida de adolescente livre, fá-la em breve engendrar um plano destruidor da harmonia criada. Com uma perversidade caprichosa, combina com Elsa e um seu namorado, uma falsa ligação amorosa, que destruindo as certezas do pai, relativamente ao seu novo estatuto de seriedade sentimental, o fizesse, por ciúme, retomar nos braços Elsa, num cenário conduzido com destreza por Cecília e apercebido de Ana, que, desvairada, foge no carro e morre em acidente de estrada.
À tristeza do arrependimento, ante o inesperado do desfecho, um acidente mortal interpretado como suicídio pelo consciência pesada de Cecília,  irá suceder o retomar das antigas cumplicidades, com o pai avesso a imposições de orientação moral ou espiritual, um “bom dia, tristeza” feito de amadurecimento penalizado, de criança perdida que gradualmente ganhará, prevê-se, a sabedoria da indiferença cínica por valores morais mais respeitáveis e tranquilizantes.
Uma obra psicologicamente bem orientada, lembrando outras obras dos escritores existencialistas franceses, que pelos anos 40 escreveram enredos com as suas vivências pessoais, sobre os temas tabu da libertação da mulher e até do próprio homem, como o da homossexualidade masculina e feminina, o repúdio pelos convencionalismos burgueses ou a assumpção da responsabilidade individual num universo sem Deus.
                                                                     X
Faz hoje , 25 de Fevereiro, 27 anos, a minha neta mais velha – Ana Margarida. Uma jovem inteligente e viva, que em tempos, de Paris, escreveu num blog, - “3 da Tarde” – e, posteriormente, noutro, cá – “Novelas de Lisboa” - pequenos textos reveladores de maturidade, num humor subtil, não isento da consciência do sofrimento em volta, e também da graça jovem de moça assumindo os seus caprichos, sobretudo no capítulo das modas ou da frequência dos ambientes livres, onde se conversa e se bebe um copo e se ri ou se expendem os temas das experiências trazidas pelo turbilhão da vida e das leituras.
Uma escrita simultaneamente simples e ambígua, cujo sintetismo denuncia todo um mundo de sensibilidade na revolta contida, sem alarido, mas suavemente sarcástica contra os males e as injustiças do mundo.

É o caso da observação paradoxal dos finais do conto «O Engraxador de Sapatos» com que a Ana Margarida concorreu ao concurso da editora “Alfarroba”, ”Conto por Conto”, sendo uma dos quatro vencedores, conto publicado em livrinho em 2010: “Com o passar dos tempos, a casa voltou a ficar mais pequena: com mais batatas, mais maçãs, mais sopa, mais pão. Nunca voltou ao tamanho de quando eram nove à mesa: o mais pequenino nunca voltou a acordar.”, a morte do irmão mais novo trazendo o repúdio pelo espaço da tragédia, inegavelmente maior quando viviam mais apertados e com menos fartura, mas todos vivos.

Um tema social, bem diferente dos temas de desenvoltura e participação pessoal dos extraordinários escritores dos anos quarenta e cinquenta, mas afinal todos eles de intervencionismo, na sua originalidade e sentido crítico.

Trata-se de um conto apenas, o da Ana Margarida, a grande distância, naturalmente, das outras obras citadas, romances de cariz psicológico e filosófico. Mas é um conto rico de observação, que pede a continuação para outras tentativas. Assim a vida laboral de Ana o consinta.
 
Eis o conto da Ana Margarida, que tem, apenso, no livro, a frase que o sintetiza, bem expressiva do sentimento de desencanto por um espaço e um tempo que se eternizam, numa “mesmice” encardida:

«A história de um engraxador de sapatos que se confunde com a fachada lisboeta e que nunca tem nada para contar.»

«O Engraxador de Sapatos»

«Todos os dias, no Largo dos Restauradores, estava sentado um engraxador de sapatos. Vivia do movimento mecanizado dos seus braços, que engraxava com destreza qualquer sapato que tivesse perdido o brilho. O seu braço fazia um movimento constante da esquerda para a direita, umas vezes mais rápido, outras mais lento, consoante o tipo de limpeza que fazia ao sapato.

Das mãos pouco se via. O preto da graxa sobrepôs-se ao bege que em tempos lhas cobrira. Não se sabe o dia exacto em que aconteceu. Deve ter sido ao longo dos dias, dos anos, sempre a fazer o mesmo movimento, sempre a fazer a mesma coisa. Não havia sabão que lhe devolvesse às mãos o tom esbranquiçado, porque o negrume estava entranhado nos seus poros minúsculos. Não o incomodava.

O engraxador de sapatos não tinha nenhuma característica especial. As peculiaridades são propriedade de outros. Engraxava qualquer sapato que correspondesse à panóplia de tons que possuía. Imensa panóplia, aliás. Lembrava-se do tempo em que os sapatos eram exclusivamente pretos. A ciência que exigia o engraxar era a mesma. Limpar, engraxar, dar lustro. Mas, ditaram os tempos que os sapatos ganhassem novas cores, que teriam, tal como os sapatos pretos, a árdua tarefa de pisar a irregular calçada da cidade. Hoje, embora sejam menos os fregueses, são mais as cores disponíveis.

As pessoas andavam a correr, ele engraxava a correr. Distraído, o freguês sentava-se no banquinho lançando um áspero bom dia e colocando o pé a jeito. Olhava para o Blackberry, lia, barafustava, telefonava, desligava, suspirava, olhava para o relógio, abria o jornal, reflectia (pouco) sobre o que lia e agradecia com dinheiro e um breve sorriso.

Ao engraxador de sapatos apenas o sapato interessava. E no fundo, ao cliente também. Porque se o engraxador não fizesse o seu trabalho, o breve sorriso rapidamente se desvaneceria e, com ele, o dinheiro prometido.

A vida mostrava-se simples, porque quando as coisas entram na rotina tornam-se simples. Tão simples que parecem nem existir. É como se tudo sempre tivesse estado naquele lugar. A senhora do quiosque parecia ter sempre sido senhora do quiosque e o jornal “Metro” parecia ter sempre tido aquele lugar privilegiado ao lado do vendedor de castanhas. O mesmo se passava com os gelados da Olá, o restaurante do peixe fresco, as intermináveis emissões de CO2 nas horas de ponta, a Caixa Geral de Depósitos da esquina, a loja que vendia meias, o vistoso Palácio Foz e o engraxador de sapatos.

O mesmo engraxador de sapatos que hoje, aqui, é história. Uma história que dos simples não reza. E sem características peculiares, afinal, o engraxador de sapatos não tinha estado sempre ali.

Antes de ser engraxador de sapatos, tinha as mãos de cor bege. Um bege escurecido pelo sol dos curtos Verões e pela neve dos longos Invernos. Um bege espesso, duro, vivo. Vivia numa casa pequenina com mais seis irmãos. Todos rapazes. À mesa eram sempre nove, porque à hora do jantar os pais também estavam em casa. Durante o dia nem sempre se ia à escola. Mas o desejo de aprender era imenso. Tempos em que as crianças não precisavam de saber ler.

Acontecia que as leituras não obrigatórias davam mais vontade. Quando há a possibilidade de escapar à escola, ao frio das salas de aula, ao cheiro insuportável do pó do giz misturado com o pó de há duas semanas em cima 6das mesas e de há dois meses nos rodapés, a vontade de ir aumenta. Era com prazer que às cinco horas da manhã o menino que ainda nem sabia que viria a engraxar sapatos se levantava e acordava os irmãos.

Entre o primeiro e o último menino havia sete anos de diferença. Todos tinham nascido no mesmo dia, mas em anos e horas diferentes. O primeiro era ele (o ainda não engraxador de sapatos) e queria ser advogado. O segundo tinha especial apetência para desenhar nos vidros embaciados das janelas e o terceiro para cantar. O quarto era considerado introvertido – o bicho era como lhe chamavam – e o quinto gerou escândalo quando proferiu que queria ser bailarino. Tinha ouvido a expressão na escola, pela boca de uma amiga, durante uma conversa acerca de profissões. Não sabia ao certo o que isso era. O sexto corria o dia inteiro sem se cansar e o sétimo acabava de proferir as primeiras palavras. Tinha apenas um ano.

Enquanto os irmãos se preparavam, ele já estava de saída, mas, às vezes, quando encontrava o pai pelo caminho e o ouvia dizer que o trabalho lhe fugia, que era como se o tempo de noite acelerasse, passassem dez Primaveras e nascessem dez colheitas que não conseguia ceifar sozinho, porque já não tinha força, trocava o frio da sala de aula pelo frio da rua. Na rua não havia giz, não havia o quadro preto sempre húmido onde o giz mal escrevia, não havia papel e lápis, não havia a professora Teresa, não havia janelas fechadas, não havia paredes com fendas, não havia aranhas penduradas no tecto, não havia as vozes infantis dos colegas que se engasgavam a ler. Os sonhos adormeciam durante colheita. Havia o pai envergonhado. Havia o barulho da foice que cortava o silêncio como uma pulsação. Havia fruta para comer ao almoço. Havia mais comida em casa.

Com o passar do tempo, o menino que queria ser advogado foi trocando os sonhos pela monotonia da foice. Agora os colegas já não se enganavam a ler e as suas vozes tinham deixado de ser infantis. Começou a esquecer-se do que queria ser quando crescesse, porque já tinha crescido. Quando se sentava na mesa de madeira para jantar, tinha que se encolher cada vez mais para que coubessem todos os irmãos. Todos tinham que se encolher, na verdade, porque todos tinham crescido. E sem ninguém dar por isso. Mas a casa nunca cresceu. Todos os dias, quando entrava e descalçava os sapatos que ficavam à entrada, tinha a sensação de que a casa diminuía meio milímetro. Ia ficando mais pequena, mais apertada. E com o frio constante, as janelas embaciavam-se e a vida lá fora desaparecia. Era nessa altura que os sonhos acordavam. Sonhos do passado, que não têm por que voltar à memória. Sonhos de quando a casa era grande, de quando o frio embaciava as janelas para que se pudesse desenhar com os dedos. E aí, ficava subitamente feliz. Era como se construísse as memórias ali. Sentava-se no sofá, em frente à lareira e voltava a cheirar o giz e a ouvir a voz da professora Teresa. Depois ia dormir.

Foi então que, numa dessas muitas noites em que se sentia verdadeiramente feliz e dormia profundamente, não deu pela chegada de alguém. Alguém que não fazia parte da casa, alguém que nunca ninguém chegou a conhecer.

A noite era fria, como todas as noites que se conheceram. A lareira estava já apagada, porque a madeira não dura para sempre. Estava tanto frio lá fora como lá dentro. A casa estava igual. Mas tinha uma pessoa a mais. Entrou.

Tentou olhar à volta, mas estava escuro, porque era hora de dormir. Não ousou acender a luz, não queria que o vissem ali. Tinha medo, era a primeira vez que entrava em casa de alguém às escondidas. E a escuridão era dolorosa. Nunca tinha gostado do escuro. Nenhuma criança gosta do escuro.

No dia seguinte, quando o quase engraxador de sapatos e o pai acordaram, não havia sapatos à entrada. Tudo estava no lugar. O tapete para limpar os pés (que estava dentro de casa, porque lá fora estava sempre a nevar), a panela de sopa que tinha sobrado do jantar, as cadeiras de cores e tamanhos diferentes, a toalha dobrada em cima da mesa, o sofá verde virado para a lareira apagada. Mas não havia nenhum sapato. No seu lugar, nada. O chão com poças de água que tinham sido neve provavelmente agarrada à sola do visitante nocturno.

Nesse dia uma família ficou feliz, porque pôde finalmente calçar-se. Mas a família do menino quase senhor engraxador de sapatos não saiu de casa nesse dia. Nem nos dias seguintes. A neve obrigava a usar sapatos, mas eles não estavam lá. E então, a casa voltou a crescer, porque todos os dias ficava mais vazia. Menos batatas, menos maçãs, menos sopa, menos pão.

Menos lenha na lareira e mais frio. Mais fome. A neve caía lá fora como nunca e destruía os campos desabitados sem que nada se pudesse fazer. As caras dos irmãos, coladas às janelas, aguardavam dia e noite o momento e que poderiam finalmente sair. Os desenhos e cantorias desapareceram. Não se sabe o dia exacto em que aconteceu. Deve ter sido ao longo dos dias, que as tornaram invisíveis, inaudíveis. Todos ficaram mais próximos de bichos.

Entretanto, a neve começou a desaparecer. Parava de nevar, derretia-se o chão e avistava-se o terreno queimado por esse fogo branco. O menino atou aos pés muitos trapos quentes e saiu à procura dos sapatos que tinham desaparecido.

Correu pela aldeia inteira (não correu muito, a aldeia era pequena), mas nas casas todos lhe diziam que desconheciam tal história. Ia descalço, mas curiosamente não tinha frio nos pés. Tinha frio no ventre.

Foi com tristeza que constatou que toda a colheita estava perdida. Teria que recomeçar, desta vez talvez todos tivessem que recomeçar. Talvez todos continuassem a ler engasgados, talvez alguns nunca chegassem a aprender a ler. Não encontrou os sapatos. Comprou uns pares e levou-os para casa.

Com o passar dos tempos, a casa voltou a ficar mais pequena: com mais batatas, mais maçãs, mais sopa, mais pão. Nunca voltou ao tamanho de quando eram nove à mesa: o mais pequenino nunca voltou a acordar.

Então, um dia, partiu. Jurou que ia encontrar os sapatos nos pés de alguém. E foi assim que se tornou engraxador de sapatos.»

X

Parabéns, querida Ana, pelos teus 27 anos. Continua a ler, mas a escrever também. Vives o momento do trabalho que já te compensa materialmente um pouco o empenhamento e a inteligência do teu contributo, mas que te impede, pelo excesso de horas nele consumidas, esses outros prazeres de escrita que não podes deixar de parte, porque a tua escrita tem uma dimensão muito específica.

É o meu grande desejo, fica aqui expresso, neste blog que me tem acompanhado nestes anos de idade senior, onde dei parte da família que é a minha. Faltam ainda o tio Luís e a Catarina, a minha segunda neta, para completar este meu “testamento de amor”, caso a Parca se lembre de fazer chegar a altura de eu “levar o óbolo ao barqueiro.”
                                                                                   
                                                                                  X

É claro que eu não podia esquecer-me de, nele, igualmente abraçar as mães dos meus netinhos – a Binha, tua mãe, a Inês, a Ana Paula, a Ângela – cada uma, jovem de sentimentos e de carácter que aprecio, com as suas qualidades de trabalho, originalidade, graciosidade e encanto próprios, que trouxeram lufadas de vida à minha vida. E o Quim, que é um bom companheiro … Todos aqueles e aquelas , afinal, que fizeram e fazem felizes os filhos e netos que completaram a minha vida, e a quem desejo o mais feliz destino.

 

sábado, 23 de fevereiro de 2013

Uma página da antiga História Portuguesa


Extraída da obra recentemente publicada por Henrique Salles da Fonseca – “EXSURGE” – (que nela vai desenterrando histórias jesuíticas polacas, ou papais italianas, ou portuguesas em torno da acção diplomática do Padre António Vieira, aliada ao mito sebastianista - e sequencial - criado pelo Bandarra, com implicações na criação do mito do Quinto Império, é uma página de leitura necessária, num Portugal hodierno, que vai resvalando por íngreme declive, no meio da preocupação geral, (descontados os efeitos grotescos das cantorias orquestradas pelos afeitos às trovas do Bandarra intervencionista dos anos 70, bem mais harmoniosas é certo, do que as do seu antecessor).


…« Em 1634 Olivares confiou o Governo de Portugal a uma prima do Rei espanhol, a Duquesa de Mântua e Miguel de Vasconcelos foi promovido a Secretário de Estado, cargo em que teve muita oportunidade de desagradar aos portugueses que eram contrários a Castela. Em 1635 estendeu a todo o Reino o Imposto do Real de Água e decretou o aumento das Sisas….

…Em 1 de Dezembro de 1640 – um Sábado, para que não houvesse interferências com o serviço religioso dominical – foram os revoltosos à procura dos representantes do Rei espanhol e deram com esse tal Miguel de Vasconcelos de tão triste memória metido num armário ali para os lados do Hospital de Todos os Santos e, com uns sopapos, atiraram-no da janela do primeiro andar para que o povo visse que era dele que se tratava. Mal disposto com a diplomacia aplicada, o traidor foi deixado de borco na calçada à portuguesa e, serenamente, partiu para algures mas não decerto para o Céu em que estão os portugueses.

               
Eis como Margarida de Sabóia, Duquesa de Mântua, foi substituída por D. Luísa de Guzmán, Duquesa de Bragança. Apesar de ambas as Duquesas serem espanholas, a de Mântua representava em Portugal o Rei espanhol e a de Bragança tirou qualquer hesitação ao marido no apoio aos revoltosos proferindo a frase que ficou célebre: “Mais vale Rainha por um dia que Duquesa toda a vida.”

Aclamado sucessivamente em Évora, Santarém, Coimbra, Porto, Braga e Guimarães, D. João, Duque de Bragança, chegou a Lisboa no dia 6 desse mês de Dezembro e a 15 foi muito solenemente coroado Rei na Sé de Lisboa com a bênção de D. Rodrigo da Cunha, Arcebispo de Lisboa e de D. Sebastião de Matos de Noronha, Arcebispo de Braga. Ficou na História de Portugal conhecido por

D. João IV
(Oitavo Duque de Bragança, nasceu em Vila Viçosa a 19 de Março de 1604 e morreu em Lisboa a 6 de Novembro de 1656)

Os espanhóis não tiveram que correr a pilhar Portugal; já o tinham feito durante 60 anos.

A situação apresentava-se extremamente inquietadora. Por uma carta algo pungente que a Rainha escreve ao Embaixador francês ficamos a saber que: o Reino se encontra inteiramente desprovido de dinheiro, de artilharia, de armas e de pólvora; os arsenais – (Bem vistas as coisas – e se é que alguma vez proferiu tal frase – não terá deixado de praticar uma traição à sua Pátria, Espanha, mas, para nós, ainda bem que o fez … ) carecem de tudo que é preciso para a guerra, tanto por terra como por mar; o povo não conhece disciplina militar, não há cavalos; numa fronteira de 150 léguas não há uma única praça em estado de defesa13. A fim de obter o necessário, El-Rei gastou todo o dinheiro que possuía e também vendeu as jóias.

Logo que subiu ao trono, D. João IV tratou de armar uma frota de doze navios e nomeou António Teles de Menezes seu General da Armada.

As Cortes foram reabertas logo no dia 28 de Janeiro de 1641 e uma das decisões que tomaram foi a de constituir um Exército de 20 000 Infantes e de 4 000 Cavaleiros.

No que respeita às Finanças Públicas, foi decretada a abolição de todos os Impostos espanhóis e, em sua substituição, lançado um Imposto sobre a propriedade; isentos os Eclesiásticos, tomaram estes a iniciativa de contribuir por igual critério; a Câmara de Lisboa votou uma contribuição adicional sobre o vinho e sobre a carne; foram tomadas disposições pelas Cortes no sentido de estudar o melhor processo de cobrar os tributos sem demasiado sacrifício para os povos.

Foi de grande vantagem para Portugal que os espanhóis concentrassem as suas forças na resolução do problema da Catalunha. Esperavam, contudo, em Madrid recuperar Portugal pela via de negociações secretas e de conjuras e hesitavam no recurso à guerra aberta.

Só nos princípios de 1641 chega ao Brasil a notícia da Restauração com a aclamação de D. João de Bragança como Rei de Portugal.

Com a vitória portuguesa contra os holandeses na Colónia baiana e com a vitória contra os espanhóis no Reino, António Vieira veio a Lisboa declarar a D. João IV a adesão incondicional da Colónia à Restauração.»


               São páginas de uma História de decisão e coragem, num país que viveu sempre perante o espectro da miséria e das discriminações sociais, mas que teve sempre chefes à altura, em tempos de crise. Só precisamos de aguardar pela demonstração dos actuais chefes.

Como diria, pois, Salles da Fonseca, “Continuemos”.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

«Come chocolates, pequena!»


Costumo gostar dos textos do Dr. João César das Neves, que resultam de critérios de ponderação despidos de facciosismo, e pautados antes por uma seriedade de orientação sem resquícios daquela oposição de idiotia que se tem traduzido ultimamente no nosso país por uma provocação não propriamente musical – porque bem desafinada – mas macaqueadora da “Grândola” de Zeca Afonso, e de alcance só não nulo porque revelador da extrema inépcia de uma população geralmente com fraca prestação intelectual, refugiando-se em slogans ou músicas conhecidas na ausência de discursos mais elaborados, para silenciarem os governantes em prestação.

Mas este texto de César das Neves não pareceu seguir a mesma rota dos anteriores, e, reconhecendo embora a justeza de observação na generalização da responsabilidade na crise, a toda uma população que teve parte no sumiço do bolo emprestado, achei demasiado drástica a inculpação de todos os cidadãos nele envolvidos, com a nem sequer minimização mas pura anulação das responsabilidades dos que dele comeram à tripa-forra, num semear de misérias – morais, espirituais, económicas – de que só um governo de gente íntegra, talvez – como este parece ser, pagando a nossa dívida -.poderá, “à la longue”, fazer dissipar. Como não lhe vão dar oportunidade para isso, apeando-o ao som das Grândola ou doutra musiquinha idêntica, como a da gaivota também dos anos 70 que voava em liberdade, imagem para sempre, da nossa, não temos esperança de conversão.

Seremos sempre os “da mansarda”, como o Álvaro de Campos. Mas este não foi coitado, apesar de tanto o afirmar.

Os coitadinhos somos nós. Para sempre.


Eis, pois, o texto do Dr. César das Neves, publicado no blog “A Bem da Nação”, de hoje, 22/2:

«ESTÃO A VER O FILME?»

«Fala-se da crise há anos. Ouvem-se muitas teorias, protestos, fúrias e desânimos, mas no essencial ainda permanece enorme ilusão. As reacções ao recente estudo do FMI mostram acima de tudo profundo irrealismo face à real situação do país.

O texto Rethinking The State-Selected Expenditure Reform Options, pretende "reformar a despesa em Portugal, perante a questão de fundo da dimensão e funções do Estado" (p. 6). Chegámos finalmente à questão decisiva. Após ano e meio de medidas pontuais de emergência, tocamos nas reformas estruturais, discutidas há décadas e sempre adiadas. Perante um contributo tão importante para o nosso problema essencial, a grande maioria das reacções foi extravagante. É caso para perguntar se esses comentadores têm andado por cá ultimamente.

Todos sabemos que o país está na "unidade de cuidados intensivos", ligado à máquina da ajuda externa para sobreviver. Todos concordamos que temos uma crise grave e fundamental, que exige medidas profundas. Mas, logo a seguir a este consenso, grande quantidade dos analistas envereda por uma ilusão cómoda, para evitar enfrentar a realidade. Muita gente está plenamente convencida que a crise se deve a um punhado de maus (corruptos, incompetentes, esbanjadores) e, pior, que basta eliminá-los para tudo ficar normal. Nas actuais circunstâncias esta fantasia é irresponsabilidade criminosa. Num momento tão decisivo e doloroso, acreditar em tolices dessas só aumenta o sofrimento de tantos, prejudicando a urgente solução do problema.

Portugal tem uma dívida nacional externa bruta total quase duas vezes e meia superior ao produto e dívida pública bem acima do que produzimos. Não há corrupções, incompetências e desperdícios que cheguem para justificar uma coisa destas. Quem fez isso não foram os ricos, políticos, ladrões. Tem de ser a vida comum e os hábitos dos cidadãos honestos a gerá-lo. Muitos nos lembramos como estávamos há 20 anos, e como tudo melhorou tão depressa. Muito disso foi mérito e crescimento sólido, mas a euforia empolou e foi-se para lá do razoável. Agora a situação nacional não se resolve só eliminando gorduras. É preciso cirurgia profunda e estrutural. Não é sina nacional, até porque vimos igual noutras zonas. Mas tem de ser feito.

A maioria das críticas olha, não para a situação nacional, mas para os interesses afectados. Falam então em "direitos adquiridos", sem notar que esse é outro nome da doença. Existem direitos básicos que o país tem de garantir a todos. Nesses não se pode tocar, nem ninguém quer que se toque. Mas grande parte dos supostos direitos não foram de todo adquiridos, mas atribuídos irresponsavelmente com dinheiro alemão. Foi bom recebê-los e custa a deixar, mas não há alternativa. Se quisermos um dia lá chegar de forma sustentável. Cortar 4000 milhões de euros de forma permanente à despesa pública não é a solução. Apenas o primeiro passo para Portugal voltar a ser um país sério. Temos de viver com as nossas possibilidades. Durante uns tempos até um pouco abaixo, para aliviar as dívidas de se ter vivido demasiado tempo acima delas. A correcção não é o fim do mundo: pouco mais de 5% da despesa total prevista no Orçamento para 2013. Pode-se negar, insultar, protestar, mas a aritmética não se comove.

Isto não é novidade. Aliás todos o dizem há décadas. Perdemos a conta aos relatórios, estudos, programas de Governo e discursos de Estado em que foi repetida a necessidade de reformas estruturais. Esse é outro consenso. Quando uma das instituições mais experientes e reputadas neste tipo de reformas analisa a situação e sugere medidas concretas, será razoável tratar isso como um disparate? Uma imposição externa? Uma aleivosia? Será que não estão a ver o filme?

Perante o estudo do FMI há duas atitudes razoáveis. Pode-se aceitar e também é sensato discordar. Afinal é só um estudo técnico externo, nem sequer um programa político. Mas quem recusa tem de apresentar cortes alternativos de valor equivalente. Senão diz só uma tolice ociosa de quem não está a ver o filme.»

Finalizo, com o meu comentário ao texto do Dr. César das Neves no blog do Dr. Salles da Fonseca:

“Para justificação da crise neste país, negar o contributo de tanta fraude cometida, de tantos jogos ilícitos do poder, de tanta construção desnecessária e propiciadora de delito, de tanta impunidade por efeitos de uma Justiça inexistente, etc., para analisar só a parte que todos tomámos no abocanhamento das côdeas que nos foram remetidas pelo poder, como disfarce, parece um afunilamento incriminatório sobre estes, e um branqueamento propositado dos meandros tortuosos daqueles. Não me parece justo isso. Todos estamos pagando agora, desfeitos os direitos adquiridos de estudo, de prática laboral, de empenhamento, de descontos que fizemos enquanto trabalhámos, cada vez mais igualados aos sem estudo, sem empenhamento, sem descontos, numa sociedade para uma igualdade sem elevação. E afinal, nunca chegaremos a tapar os buracos da ignomínia, por muito que se nos baixe o nível salarial. Somos, definitivamente, um povo de mínimos.“

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

É a fé que nos salva


Eu até já estava meio afeita à ideia de colaborar com o meu governo no “custe o que custar” da expressão ministerial e mesmo reparei que o nosso país vai singrando relativamente bem dentro do lema que o 25 de Abril nele instaurou, lema bem de Cristo, há dois mil anos, de Igualdade e Fraternidade, excluída ainda a Liberdade, que o Cristo não ia em modernices tão descabeladas, mas que a Revolução Francesa incluiu, há mais de duzentos, até criando uma guilhotina em condições para semear a liberdade em igualdade, mostrando fraternamente à populaça hilariante, as cabeças perfeitamente cortadas por aquela, dos adeptos, régios e outros, das rígidas desigualdades para sempre “démodées”, embora com focos específicos ainda de manutenção. E foi assim que chegámos à nossa revolução de há 39 anos, reivindicativa do mesmo lema da Liberdade e Igualdade na Fraternidade com os irmãos da vila morena, que 39 anos depois continuam a manifestar-se com igual sanha e a hilaridade dos nossos irmãos franceses de há duzentos, graças a Deus que já sem a assustadora guilhotina, usada agora apenas nos espectáculos de magia ou no corte alinhado de papéis.

De facto, todos os que tomaram nas mãos o leme da governação pós abril – e muitos foram e vão continuar a ser, tenhamos fé, - defenderam que se desunharam a igualdade, içando-se por meios vários ao estatuto dos mais bem remunerados, mas, para disfarçarem e não serem mal interpretados e mesmo vexados com acusações graves de egoísmos antidemocráticos, abriram os cordões da bolsa que lhes caiu do céu das novas políticas europeias e desataram a distribuir pela populaça a côdea disfarçadora, esbanjando o resto em muita construção propiciadora de envolvimentos capitalistas massificadores, porque de acesso generalizador às massas europeias.

E foi assim que se chegou a uma democracia igualitária, com todos a ganharmos um bocadinho mais, numa fraterna escalada de ascensão para a Igualdade, apesar das contínuas reclamações feita pelos adeptos da vila morena - (mantidos um pouco de parte, nas questões da governação) - de subida nos vencimentos para a igualdade ser maior ainda.

Já no ensino, a massificação fraterna produzia há muito a amálgama igualitária tão pregada por Cristo há dois mil anos, expandida há duzentos, e virtuosamente seguida entre nós há quarenta.

Infelizmente o tempo das vacas gordas – superior a sete anos - deu lugar ao das magras – de prazo sem limite, ao que consta, - com a imposição do pagamento aos credores, e o nosso governo apressa-se a cumprir, pagando, para poder receber mais, posteriormente, dado o seu mérito de bom pagador. Nesse sentido, corta à grande nos vencimentos, sobretudo daqueles a quem a formação científica exigiria uma certa diferenciação das tais massas salariais menores, os quais se devem sentir injustiçados, convictos de que os anos de estudo e de trabalho os punham a salvo de tão grande proximidade salarial.

Mas é porque não se sentem, como eu, minimamente coniventes com as doutrinas igualitárias não só de Nosso Senhor Jesus Cristo, como dos que condenaram Luís XVI e esposa à guilhotina, ou dos que estabeleceram no nosso país uma democracia simplificada à maneira.

É verdade que o nosso P.M. garantiu que não pretende tornar permanentes os cortes nos vencimentos, mas ele costuma enganar-se, eu tenho esperança de que os cortes se vão manter “sine die” mesmo sem a guilhotina démodée, e assim chegaremos à tal massificação para a igualdade – (pelo menos a salarial) - pregada por Nosso Senhor Jesus Cristo, há dois mil anos, pelos filósofos enciclopedistas há duzentos e pelos capitães abrilinos há quase quarenta.

Não se fala em extinção da classe média? Não nascem os homens, livres e iguais em direitos?

Digamos não à extinção dos cortes nos vencimentos. Tenhamos fé nos enganos do nosso P.M..

 

 

 

 

 

Eu até já estava meio afeita à ideia de colaborar com o meu governo no “custe o que custar” da expressão ministerial e mesmo reparei que o nosso país vai singrando relativamente bem dentro do lema que o 25 de Abril nele instaurou, lema bem de Cristo, há dois mil anos, de Igualdade e Fraternidade, excluída ainda a Liberdade, que o Cristo não ia em modernices tão descabeladas, mas que a Revolução Francesa incluiu, há mais de duzentos, até criando uma guilhotina em condições para semear a liberdade em igualdade, mostrando fraternamente à populaça hilariante, as cabeças perfeitamente cortadas por aquela, dos adeptos, régios e outros, das rígidas desigualdades para sempre “démodées”, embora com focos específicos ainda de manutenção. E foi assim que chegámos à nossa revolução de há 39 anos, reivindicativa do mesmo lema da Liberdade e Igualdade na Fraternidade com os irmãos da vila morena, que 39 anos depois continuam a manifestar-se com igual sanha e hilaridade dos nossos irmãos franceses de há duzentos, graças a Deus que já sem a assustadora guilhotina, usada agora apenas nos espectáculos de magia ou no corte alinhado de papéis, além de, metaforicamente, no corte dos vencimentos.
De facto, todos os que tomaram nas mãos o leme da governação pós abril – e muitos foram e vão continuar a ser, tenhamos fé, - defenderam que se desunharam, a igualdade, içando-se por meios vários ao estatuto dos mais bem remunerados, mas, para disfarçarem e não serem mal interpretados e mesmo vexados com acusações graves de egoísmos antidemocráticos, abriram os cordões da bolsa que lhes caiu do céu das novas políticas europeias e desataram a distribuir pela populaça a côdea disfarçadora, esbanjando o resto em muita construção propiciadora de envolvimentos capitalistas massificadores, porque de acesso generalizador às massas europeias.
E foi assim que se chegou a uma democracia igualitária, com todos a ganharmos um bocadinho mais, numa fraterna escalada de ascensão para a Igualdade, graças à côdea, apesar das contínuas reclamações feita pelos adeptos da vila morena - (mantidos um pouco de parte, nas questões da governação) - de subida nos vencimentos para a igualdade ser maior ainda.
Já no ensino, a massificação fraterna produzia há muito a amálgama igualitária tão pregada por Cristo há dois mil anos, expandida há duzentos, e virtuosamente seguida entre nós há quarenta.
Infelizmente o tempo das vacas gordas – superior a sete anos - deu lugar ao das magras – de prazo sem limite, ao que consta, - com a imposição do pagamento aos credores, e o nosso governo apressa-se a cumprir, pagando, para poder receber mais, posteriormente, dado o seu mérito de bom pagador. Nesse sentido, corta à grande e à francesa nos vencimentos, sobretudo daqueles a quem a formação científica exigiria uma certa diferenciação das tais massas salariais menores, os quais se devem sentir injustiçados, convictos de que os anos de estudo e de trabalho os punham a salvo de tão grande igualitarismo salarial.
Mas é porque não se sentem, como eu, minimamente coniventes com as doutrinas igualitárias não só de Nosso Senhor Jesus Cristo, como dos que condenaram Luís XVI e esposa à guilhotina, ou dos que estabeleceram no nosso país uma democracia simplificada à maneira.
É verdade que o nosso P.M. garantiu que não pretende tornar permanentes os cortes nos vencimentos, mas ele costuma enganar-se, eu tenho esperança de que os cortes se vão manter “sine die” graças à guilhotina metafórica, e assim chegaremos à tal massificação para a igualdade – (pelo menos a salarial) - igualdade pregada por Nosso Senhor Jesus Cristo, há dois mil anos, pelos filósofos enciclopedistas há duzentos, e pelos capitães abrilinos há quase quarenta.
Não se fala em extinção da classe média? Não nascem os homens, livres e iguais em direitos?
Digamos não à extinção dos cortes nos vencimentos. Tenhamos fé nos enganos do nosso P.M. e nas suas convicções de que os cortes serão temporários. Como diria Solnado, a respeito dos custos de vida em ascensão, estes são temporários porque ainda vão aumentar mais.
Os cortes são temporários porque ainda vão fazer-se mais. É preciso termos fé.