terça-feira, 15 de janeiro de 2013

«A gente dizia mal da engrenagem»


- Agora está um desastre autêntico. A gente sabe porquê. Há falta de pessoal. É isso que nos dizem. Não há gente. A televisão de facto mostra coisas gravíssimas.
               Conta a sua experiência pessoal de ontem, a necessidade de uma receita médica que há alguns dias a faz telefonar para a médica do hospital a passar, pois que o remédio anterior se acabara, e não pode ser passada pela médica de família. Mas foi uma ida vã, aproveitando a boleia de uma amiga, depois de, dos serviços hospitalares, lhe terem dito que fosse. Mas o exemplo da sua amiga ainda foi pior, segundo a minha amiga. Uma doença grave, depois de tratada no mesmo hospital de Cascais, fora mandada para o Egas Moniz onde fizera exames vários. Mas após marcação de nova consulta no hospital de Cascais, o médico que ali a operara não pôde concluir sobre o estado de saúde porque do Egas Moniz não enviaram os exames, nem pela Internet. Terá que reiniciar o processo dos exames.
- Entretanto, ela pode morrer. Se não da doença, de raiva, pelo tempo, as despesas, o cansaço.
A minha amiga concordou imediatamente. E continuou , noutro capítulo das suas referências:
- Eu não podia ser funcionária dos Tribunais porque me dava uma coisinha. Aqueles montes de pacotes até ao tecto! Mostraram ontem uma cena miserável. Um edifício grande, muito antigo, não sei em que terra. Chove em cima do pessoal.
Falei na minha experiência pessoal, modesta nas minhas exigências em relação à vida, educada que fora nas máximas de uma economia de meios como pensamento orientador da política dos meus tempos juvenis, que a minha amiga sempre contestou por ter tido hábitos mais dispendiosos, graças a outras coordenadas de vida:
- Já passei por isso, quando frequentava a Biblioteca dos Gerais, em Coimbra. É uma questão de nos afastarmos para o canto onde não pinga. Nunca permiti que  os pingos da chuva me atingissem, mas rapávamos frio, naqueles tempos. Aliás, nas escolas, quando chove, ainda hoje nos molhamos bem. Apanhei muita chuva no liceu de Cascais, na mudança de pavilhões, muita gripe. Mas a doutrina manda-nos viver em modéstia e resignação.
Lançada na sua diatribe, a minha amiga nem comentou os exemplos da minha passagem no mundo da eficiência desconfortável.
- As pessoas estão avisadas várias vezes de que pode acontecer uma desgraça de todo o tamanho. Eu faço ideia dos processos que desaparecem.
- Mas hoje em dia já nem há outras conversas. Seguro e companheiros da esquerda falam em flagelo, a coisa está feia como nunca esteve. Sobretudo se eles conseguirem convencer o povo português de que farão melhor. Até já se fala em governo de esquerda.
- Mas temos que pensar positivo. Tenho que dizer bem de qualquer coisa. Do clima. É uma pena sermos assim.
Eu então lembrei tristezas de alguns grandes pensadores e poetas, Sá de Miranda, Lamartine, Pessoa, a própria “Náusea” do Sartre, chocarreira e monstruosa, “A Dor Humana” que “busca os amplos horizontes e tem marés de fel como um sinistro mar” de Cesário…, gente com capacidades superiores de análise e abstracção, que nos confortam na beleza do que criaram, fazendo-nos sentir pequenos, neste nosso mundo de materialidade e interesse a definir a dor. Eis o soneto do “bom Sá”:
“O sol é grande, caem co'a calma as aves,
do tempo em tal sazão, que sói ser fria;
esta água que d'alto cai acordar-m'-ia
do sono não, mas de cuidados graves.
Ó cousas, todas vãs, todas mudaves,
qual é tal coração qu' em vós confia?
Passam os tempos vai dia trás dia,
incertos muito mais que ao vento as naves.
Eu vira já aqui sombras, vira flores,
vi tantas águas, vi tanta verdura,
as aves todas cantavam d'amores.
Tudo é seco e mudo; e, de mestura,
também mudando-m'eu fiz doutras cores:
e tudo o mais renova, isto é sem cura!!
Lamartine escreve “Méditations Poétiques”, mergulhando na evocação da sua “Elvira” morta, mostrando uma natureza refúgio das suas dores e da sua religiosidade, imutável na sua bondade, contrariamente ao ciclo de renovação que lhe aponta Sá de Miranda. Um passo, apenas da sua poesia ampla e triste, bem ao gosto romântico, da elegia “Le Vallon”:
“Mon coeur, lassé de tout, même de l’espérance,
 N’ira plus de ses vœux importuner le sort ;
Prêtez-moi seulement, vallon de mon enfance,
Un asile d’un jour pour attendre la mort. »
…………….
« Mais la nature est là qui t’invite et qui t’aime ;
Plonge-toi dans son sein qu’elle t’ouvre toujours :
Quand tout change pour toi, la nature est la même,
Et le même soleil se lève sur les jours
Um clima ameno neste nosso país, reconhecido pela minha amiga, é algo de positivo que devíamos venerar, mesmo sem a unção de Lamartine. Infelizmente o “sem cura” de Sá de Miranda casa-se mais com a tristeza que cobre o país, omitidos os contextos, não como “manto diáfano da fantasia”, mas como tosca e pesada manta de retalhos, que a minha amiga define com a observação de irredutível mágoa: “É uma pena sermos assim”.

 

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