sexta-feira, 30 de novembro de 2012

“Avalon sem bruma”


No Público de 25 de Novembro, Vasco Pulido Valente, no seu artigo de Opinião “A pérfida Albion” evoca os argumentos de Eduardo Lourenço para abominar a Inglaterra, movido por enérgico ressentimento contra os promotores da decadência da França ,“sua pátria de eleição”,  uma Inglaterra desde sempre ávida de dominar o mundo, segundo os argumentos históricos que percorre na sua mensagem. Pulido Valente, em todo o caso, faz depender a recusa inglesa em abdicar da sua moeda, já não de uma velha e orgulhosa ambição dominadora, mas da “soberania absoluta do Parlamento, como princípio constitutivo da nação inglesa” e cujo abandono poria “em risco a sociedade e o Estado”.
Um texto de valor histórico que transcrevo na íntegra, como retrato de um passado que também nos diz respeito, através de uma aliança com a Inglaterra que se traduziu, é certo, em descendência real com ascendente no mundo, nomeadamente pelo  papel do Infante D. Henrique no conhecimento da Terra, mas que, se alguma vez nos prestou auxílio, foi por interesse próprio, como exemplo, o combate ao expansionismo napoleónico, em posição de arrogante e desdenhosa superioridade governativa e bélica, num tempo de carência de governo português, “a banhos” no Brasil.

«Eduardo Lourenço é com certeza em Portugal inteiro o intelectual mais francês. Não admira que, perante a desagregação da “Europa” sofra hoje com a relativa imunidade da Inglaterra, coisa que não ocorreria à nossa atávica e resignada miséria. Mas que resolva ressuscitar o mito da “pérfida Albion”, embora na sua prosa majestática, só se explica pela decadência da sua pátria de eleição. Eduardo Lourenço descobriu agora que o fracasso da União – que se tornou um “monstro”, um “Frankenstein” em que muitos países se não reconhecem – foi o resultado de um “desígnio no seu género messiânico” da Inglaterra; e que, enquanto ela tiver “força e poder financeiro”, nada que se pareça com o “sonho” de Jean Monet verá a luz do dia. Era este também, segundo parece, o “voto” da senhora Thatcher.
Thatcher ou não, Eduardo Lourenço fala da Inglaterra que realmente existe como se ela continuasse a ser a Inglaterra de Palmerstron e da rainha Vitória e o Império Britânico (uma criação tardia de Disraeli) continuasse a dominar o mundo como o Império Romano que ela, em teoria, aspirava a imitar. Pior ainda, para Eduardo Lourenço, a derrota de Waterloo acabou com a rivalidade da França, a derrota de Hitler (e de Guilherme II, que ele por boas razões não lembra), acabou com a rivalidade da Alemanha, e a implosão da URSS com a da Rússia, e a Inglaterra ficou sozinha em campo, livre de exercer a sua maléfica influência. Uma influência que se exerceu à partida através da BBC e depois do cinema americano e de uma historiografia moderna, que é “essencialmente de matriz anglo-saxónica” e “expressão da sua vontade de poder”.
Se por acaso compreendi alguma coisa da prédica confusa e, em parte, errada e arbitrária de Eduardo Lourenço, ele detesta a distância “fria” cada vez maior que a Inglaterra estabelece (e, de resto, sempre estabeleceu) entre si própria e a Europa. Mas não há qualquer dúvida que ele não percebe a origem e a necessidade dessa distância. Não se trata, como ele julga, de uma nostalgia do Império ou sequer do exercício de uma hegemonia actual. Do que se trata, mais modestamente, é da relutância em abdicar da soberania inglesa a favor de uma democracia não-eleita e de um bando de políticos que nada representam. A soberania absoluta do Parlamento é o princípio constitutivo da nação (um ponto que nenhum francês será jamais capaz de meter na cabeça) e o menor abandono, a menor cedência põe em risco a sociedade e o Estado. A “Europa”, em que a democracia nasceu ontem, não se importa, por exemplo, de abandonar a sua moeda a estranhos. A Inglaterra não consentiu, ou consentiria, essa vergonhosa demissão de uma autoridade crucial sobre o seu destino. E, se outros consentiram, que paguem em silêncio o “Frankenstein”, que tão pressurosamente criaram.»
Este retrato de um povo inteligente e astuto, na sua ilha imperial e imperiosa, de que tantos apontam o cinismo de actuações hipócritas no mundo, mascaradas sob uma falsa civilidade, eu própria já em tempos anotei, em texto de raivas incontidas num mundo que se desagregava: Escrito nos anos 70, pertence à III Parte (“Mais Pedras de Sal”) do III Livro  (“Lusos 74”) da obra “Cravos Roxos – Croniquetas Verde-Rubras”, publicado em 1981 pela Santelmo:

«Ó cínica Inglaterra, ó bêbada impudente”

«Ultimamente tenho-me lembrado muito dos versos do Guerra Junqueiro supracitados tantas vezes referidos pelo meu paizinho com um gosto que sempre me surpreendeu, pois acho indispensável delicadeza em todos os nossos actos ou palavras, especialmente no caso de tratarmos com pessoas ou com nações de um nível económico-sócio-cultural superior ao nosso e nesse ponto não devemos ter veleidades de comparação com a Inglaterra, muito mais no norte do que nós.
Chamar hoje em dia, como no tempo de Guerra Junqueiro, bêbada à Inglaterra, é por outro lado uma pura descortesia, em contradição com o decréscimo de exportações sofrido presentemente pelo nosso vinho do Porto, facto esse notório de sobriedade e abstinência que anulam irremediavelmente os dizeres excitados do Junqueiro, declamados pelo meu paizinho com honrado vigor.
Quanto às minhas preferências literárias, sempre me seduziu mais, no caso do Junqueiro, “A Moleirinha” com o seu “toc toc toc” onomatopaico tão sugestivo do compasso de trote que não devemos pretender ultrapassar nunca em ambições galopantes e anti socialistas, ou mesmo os versos “Minha mãe, minha mãe, ai que saudade imensa / Do tempo em que eu ajoelhava orando ao pé de ti”  expressivos de recordações que eu própria bem poderia ter também vivido se não houvesse malbaratado o tempo da infância em jogos e correrias fúteis. Contudo, no capítulo das interjeições em “ai” prefiro optar pelos versos de Pessoa “Ai que prazer / Não cumprir um dever” porque muito cedo se me ofereceu a ocasião de averiguar a sua universalidade.
Quanto ao cinismo da Inglaterra, o Guerra Junqueiro estava evidentemente escamado por causa da questão do mapa cor de rosa, quando a Inglaterra nos refutou a ocupação de parte da África em cor de rosa no mapa, mas de facto não vejo cinismo nisso e apenas um fenómeno de atracção pela cor, comum a diversos seres.
O que me trouxe, todavia, à mente os versos de Junqueiro foi a notícia de que a Inglaterra não apoiaria a Rodésia nas suas pretensões ao governo unitário branco, visto que a maioria ali é preta, e por conseguinte com mais direitos. Constatei assim um acréscimo de concepções humanitárias em relação ao passado colonial inglês, passado sem tantos escrúpulos puritanos, e certamente ansioso por se remir disso.
Já o abandono dos Estados Unidos no caso de Angola (e mesmo de Moçambique) me surpreendeu, mas atribuí-o a uma ampla generosidade para com a Rússia, que tanto tem demonstrado a sua necessidade de se ampliar, e  incluí a questão dentro de um justificativo de ordem bíblica, digno do apreço de Cristo e portanto do meu também, como sua afeiçoada.
Quanto à Inglaterra, sinto-me perplexa, pois não descortino qualquer solução bíblica para justificação da sua aversão pelos irmãos brancos da região cor de rosa no ex-mapa, e só vejo nisso repúdio actual pela cor dantes defendida com supremacia incontestável, apesar dos versos apostrofantes do Guerra Junqueiro.
A menos que seja um jogo, não propriamente para inglês ver, mas sim para enganar o resto do mundo fazendo-o crer no seu colaboracionismo com os pretos maioritários africanos, de acordo com esse resto do mundo também hipocritamente colaboracionista, mas na realidade ajudando à socapa os brancos minoritários de origem inglesa das terras do sul de África.
Se assim fosse, o Guerra Junqueiro teria toda a razão no primeiro epíteto, embora nenhuma no segundo, pelo menos, segundo já observámos, se nos reportarmos aos tempos presentes.
Mas o cinismo é moeda tão corrente em todo o mundo que bem podemos usá-la também, como a Inglaterra e os diversos governos, nas nossas transacções domésticas, à falta de outra moeda. »

Finalizo com os versos de Guerra Junqueiro, que a Internet transcreve parcialmente, do seu livro “Finis Patriae”, que o meu Pai guardava na sua estante, alguns dos quais costumava citar, impelido na rajada patriótica do discurso virulento, com laivos surrealistas e reminiscências escatológicas de sabor apocalíptico, bem em sintonia com a nossa idiossincrasia de vertente exaltadamente saudosista:

«Ó cínica Inglaterra, ó bêbeda impudente,
Que tens levado, tu, ao negro e à escravidão?
Chitas e hipocrisia, evangelho e aguardente,
Repartindo por todo o escuro continente
A mortalha de Cristo em tangas d'algodão.

Teus apóstolos vão, prostituta devassa,
Com o fim de levar os negros para o céu,
Desde o Zaire ao Zambeze e desde o Cabo ao Niassa,
Baptizando a Impiedade em Jordões de cachaça,
Mostrando-lhe o teu Deus na tua hóstia - o guinéu!

A tua bíblia! o teu Cristo!... A tua bíblia é uma agenda
Em que a virtude heróica a cifras se reduz.
E o teu Cristo londrino é um Deus de compra e venda,
Deus que ressuscitou para abrir uma tenda
De cortiça, carvão, álcool e panos crus!

Pela estrada da história, ó milhafre daninho,
Vai um povo seguindo o seu norte polar,
E tu és o ladrão que lhe sais ao caminho,
Com a manha do lobo e a coragem do vinho,
A roubar-lhe os anéis para o deixar passar!

Quando espreitas o fraco apontas a clavina,
Quando avistas o forte envergas a libré...
A tua mão ora pede esmola ora assassina...
Teu orgulho, covarde é, meu Bayard d'esquina,
Como um tigre de rastro e um capacho de pé!

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Hão-de um dia as nações, como hienas dementes,
Teu império rasgar em feroz convulsão...
E no torvo halali, dando saltos ardentes,
Com a baba da raiva esfervendo entre os dentes,
A bramir, levará cada qual o seu quinhão!

E tu ficarás só na tua ilha normanda
Com teus barões feudais e teus mendigos nus:
Devorará teu peito um cancro aceso, a Irlanda,
E a tua carne hás-de vê-la, ó meretriz nefanda,
Lodo amassado em sangue, oiro amassado em pus!

E assim como brutais monstros de pesadelo
No soturno porão de uma nau sem ninguém,
Entre nuvens de fogo e temporais de gelo,
De bombordo a estibordo a rolar num novelo,
Desabando e rugindo, aos montões, num vaivém,

Se estrangulam febris, roucos, dilacerantes,
As pupilas a arder em brasas infernais,
Panteras contra leões, ursos contra elefantes,
Cobras em redemoinho a silvar dardejantes,
Búfalos escornando os tigres e os chacais;

Assim vós, assim vós, duma raça assassina,
Sobre essa nau de pedra onde o mar vai bater,
Vos estrangulareis numa carnificina
De que só ficará, sob a densa neblina,
Num pântano de sangue uma Gomorra a arder!

Milhões, milhões, milhões de bocas esfaimadas
Hão-de dilacerar-te o corpo com furor,
E a pedra a dinamite e a carne a punhaladas
Hão-de tombar no mesmo escombro ensanguentadas,
Em baques de hecatombe e blasfémias de dor!...

Hão-de os lords rolar em postas no Tamisa!
Há-de o corpo de um rei dar um banquete a um cão!
Teu solo há-de tremer como uma pitonisa,
E a canalha sem lei, sem Deus e sem camisa
Abrirá teu bandulho infecto, ó Deus Milhão!

Bancos, docas, prisões, arsenais, monumentos,
Tudo rebentará em cacos pelo ar!...
E ao soturno fragor de teus finais lamentos
Responderão - ladrando! as cóleras dos ventos!
Responderão - cuspindo! os vagalhões do mar
      Fevereiro de 1890

Não tinha razão, Guerra Junqueiro, no seu rugir impotente de visão apocalíptica: A libra mantém o seu esplendor e a língua permanece intacta na sua expansão universal, o Eurotúnel não fez mais que encaminhar em novas rotas o poderio de uma nação ávida que sempre se afirmou ardilosamente nobre e cavalheiresca, fazendo alastrar à socapa os artifícios bélicos ou hipócritas da sua dominação superior. Não haverá cacos nem finais lamentos da impávida Albion ante as respostas anímicas dos ventos ou dos vagalhões marítimos, segundo Junqueiro.
A menos que se esfrangalhem as nações do resto de uma Europa a que ela preside na distância da sua posição cimeira, oculta na névoa da sua fortaleza polida e indiferente.
 Porque uma Europa destroçada, corpo carcomido, igualmente atingirá essa cabeça cimeira (cotovelo direito, para Pessoa), pois, sem a participação  daquela, a “pérfida Albion” também ficará exangue.

 

 

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Paráfrase com analepse / prolepse familiar


Tempo de António Nobre
O Sono de João
O João dorme... (Ó Maria,
Diz àquela cotovia
Que fale mais devagar:
Não vá o João, acordar...)

Tem só um palmo de altura
E nem meio de largura:
Para o amigo orangotango
O João seria... um morango!
Podia engoli-lo um leão
Quando nasce! As pombas são
Um poucochinho maiores...
Mas os outros são menores!

O João dorme... Que regalo!
Deixá-lo dormir, deixá-lo!
Calai-vos, águas do moinho!
Ó mar! fala mais baixinho...
E tu, Mãe! e tu, Maria!
Pede àquela cotovia
Que fale mais devagar:
Não vá o João, acordar...

O João dorme... O inocente!
Dorme, dorme eternamente,
Teu calmo sono profundo!
Não acordes para o mundo,
Pode afogar-te a maré:
Tu mal sabes o que isto é...

Ó Mãe! canta-lhe a canção,
Os versos do teu irmão:
«Na Vida que a Dor povoa,
Há só uma coisa boa,
Que é dormir, dormir, dormir...
Tudo vai sem se sentir.»

Deixa-o dormir, até ser
Um velhinho... até morrer!

E tu vê-lo-ás crescendo
A teu lado (estou-o vendo
João! Que rapaz tão lindo!)
Mas sempre, sempre dormindo...

Depois, um dia virá
Que (dormindo) passará
Do berço, onde agora dorme,
Para outro, grande, enorme:
E as pombas que eram maiores
Que João... ficarão menores!

Mas para isso, ó Maria!
Diz àquela cotovia
Que fale mais devagar:
Não vá o João, acordar...

E os anos irão passando.

Depois, já velhinho, quando
(Serás velhinha também)
Perder a cor que, hoje, tem,
Perder as cores vermelhas
E for cheiinho de engelhas:
Morrerá sem o sentir,
Isto é deixa de dormir...
Acorda e regressa ao seio
De Deus, que é donde ele veio...

Mas para isso, ó Maria!
Pede àquela cotovia
Que fale mais devagar:

Não vá o João, acordar...

António Nobre, in 'Só'
 
Tempo do tio Otto
(Para o seu Livro de Grelados, finais de cinquenta. Desejando-lhe, “de profundis” as melhoras, em 2012)

O João dorme e a Maria,
Indo-lhe o sono velar
Ordena à cotovia
Que fale mais devagar
Para o João poder dormir,
Pois para sofrer e chorar
Os olhos nem deve abrir.
Este menino tão grande
Ficou tal o Joãozinho,
Pois por mais que a gente mande,
Que abra os olhos para a vida,
Como um pobre passarinho
Que procura a luz dos céus,
Ele procura guarida
E o amparo junto aos seus.
E com maternal ternura
Por este grande menino,
Que apesar da altura
Ficou sempre pequenino
Tudo diz à cotovia
Da história do Joãozinho
Que cante um pouco baixinho
Porque melhor valeria
- Mas enfim não é certeza
Deixar dormir o menino
Enquanto brilhar acesa
A vela do seu destino.

Para o tio Otto, ainda nos anos sessenta, brilhante estudante de Medicina, desejando que a Medicina o cure, em 2012:
E o João, lentamente,
Despertou.
Então
Reparou
Num mundo que aos seus pés se abria.
Era um mundo sofredor,
Que apelava a abnegação
E sacudia
Toda a incúria ou desamor.
Conscienciosamente
O João
Trabalhou.
Para aliviar a dor do mundo
Considerou
Um curso insuficiente.
Era preciso alcançar
Legar cimeiro.
E afincadamente
O João estudou
Conseguindo ser
Primeiro.
Já não vem longe a aura
Que coroará o esforço
Despendido.
Em breve o fim
Pretendido
Surgirá.
E a vida plena
Que seguirá
Dirá então
Se tal esforço
Valeu a pena.
Finalmente,
Aquele Joãozinho ensonado
Que não devia
Ser acordado pela cotovia,
Fora enterrado
Com cuidado
Por um Otto sapiente
Que em atitude sentida
Não mais queria
Os olhos
Fechados
Na vida…

Tempo do João:
 (Com muitos parabéns, em 2012. Desejando-te, “de profundis”, as bênçãos dos céus sobre o teu “porvir”).

Arreda-te daqui, Maria,
Não digas à cotovia
Que fale mais devagar:
O João deve acordar.

O João já acordou
E gosta bem de viver,
No encanto do viver
Preservando as amizades,
Os amores, as lealdades,
Os seus gostos, as liberdades,
Sem muito saber viver,
Que a vida é cheia de manhas
De buracos, de patranhas…
Mas não te direi como o “Só”:
 
“Não acordes para o mundo
Pode levar-te a maré:
Tu mal sabes o que isto é.”
 
O que é preciso é saber ver,
E remar contra a maré,
Procurando enfrentar
O mundo com força e fé.
Com sabedoria
Com alegria
Com empatia,
Sem hipocrisia…
Sem a inocência
Do “João” do “Só”
Mas sem a suficiência
Dos muitos joões
Que pululam por  cá,
Vandalizando
Impunemente
O pouco que há…

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Quaternário


Estamos numa era de uxoricídios
Um palavrão de graves vícios
Que implica má preparação
Cívica e cultural
Que nos é muito natural
Como uma condenação
Pouco abonatória
 – Direi mesmo vexatória -
Da nossa condição social,
Em Portugal.
Ela justifica outros maus tratos
De crianças e de velhos, de animais,
E tantos mais,
O que nos penaliza em inúteis exaltações
De comoções
Sem resultados práticos.
O tema dos conflitos familiares, afinal,
- De violência doméstica, como consta -
É universal
Já o disse Florian, um fabulista
Novecentista
A propósito de pássaros
De oposta compleição:
«A pega e a pomba»
«Uma pomba tinha o seu ninho
Ao pé do ninho de uma pega.
Chama-se a isso, sem descortesia,
Arranjar fraca companhia,
Mas, por ora, não é
Dessa anomalia que vos damos fé.
Na casa da rolinha era tudo
Felicidade e amor;
No outro ninho, eram só questões,
Ovos partidos, discussões,
Rumor.
Quando do seu esposo ela levava pancada
- Bicada, para maior precisão -
A casa da vizinha ela logo vinha,
Falava, chorava,  gritava danada,
Passava em revista
Os defeitos do seu esposo sacrista:
“ - Ele é altivo, exigente, duro, violento,
Ciumento,
Além de que eu sei muito bem
Que ele vai visitar umas gralhas
Ao calhas”;
E cem outras coisas parelhas
Ela dizia na sua raiva despeitada,
Desgraçada…
“ - Mas vós, responde a rolinha,
Sensata e boazinha,
Não tendes também defeitos?”
“- Claro que tenho, isso que fique  entre nós.
Em conduta, em propósitos, sou de grande ligeireza,
Coquete até mais não, irosa, com certeza,
E divertindo-me a valer
A fazê-lo enraivecer.”
“ – Mas isso é um exagero, minha cara,
Começai por vos corrigirdes,
O vosso humor poderá irritá-lo…”
“ –Chamais-me minha cara?
Logo a interrompe a pega bera:
« Eu ? Mau humor? Como? Conto-vos os meus males
E  vós injuriais-me?
Acho-vos uma graça irritante,
Se não, pedante!
Adeus, impertinente;
Ocupai-vos dos vossos filhotes,
Esses rolinhos franganotes;
Concordámos na questão dos defeitos,
Mas apenas para que sejam desmentidos,
Com todos os preceitos,
Não para que nos sejam criticados
Com tais trejeitos
Atrevidotes.”»
 
Ninguém gosta, com efeito,
De ser assacado de defeito,
Mesmo que sejamos às vezes os primeiros,
Modestamente,
A levantar a lebre dos nossos argueiros,
Para seguidamente,
Iradamente,
Apontarmos as trancas
Nas carrancas
Que temos defronte,
Que não merecem perdão,
Isso não!












quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Milú


Era a nossa Rita Hayworth, a nossa Elisabeth Taylor, a nossa Marilyn Monroe, a nossa Brigitte Bardot, a sex symbol à nossa medida lusa - a ousadia langorosa, comedida e doce, a voz do seu canto, de modulação discreta, numa letra popular aconchegada ao lar português, de atávica modéstia. Era a nossa Vénus bem comportada, por vezes mais ambiciosa ou mais caprichosa, nada, em todo o caso, que os sensatos pais de família não pudessem revelar às suas filhas nos cinemas de sábado à noite. Uma mulher bela, a nossa Milú, que os filmes de Arthur Duarte revelaram em casto mas gentil enredo, que a graça irresistível de António Silva salvaria da banalidade.
 Outros filmes fez, fez teatro, obteve medalhas, no final da vida, em simpáticas homenagens provando que a sua aura se mantinha nos nossos corações, numa altura em que já não fazia sombra a ninguém e que era preciso que embarcasse para o além contente connosco. Como se fez a tantos dos nossos artistas à beira da morte. Entretanto, dos artistas que fizeram o nosso encanto, no humor ou na seriedade dos seus papéis, poucos são os que se mantêm no palco das nossas referências televisivas, a época pertence à juventude radiosa na graça do seu brilho, que terá  que se precaver por seu turno, contra a efémera passagem.
Milú manteve a sua elegância, vimo-la nos anos oitenta, num dos excelentes espectáculos de “E o Resto são Cantigas” de Carlos Cruz, Fialho e Solnado, recordámo-la recentemente , nesse espectáculo reposto no Canal Memória.
Morreu em 2008, com 82 anos. Discretamente. O Estado que a agraciou ainda em vida, abandonou-a na morte. Não, nem todos são Amália, a merecerem, muito justamente, a eternidade do seu Panteão.
Mas Milú está nos nossos corações, várias vezes é recordada nos filmes repostos, merecia algo mais que a campa rasa, onde um particular generoso colocou a moldura com a sua foto da escolha da filha, que não tem possibilidades materiais para lhe cobrir a campa com o mármore da sua e da nossa veneração, arriscando-se a ter que enfiar os ossos da mãe, dentro de um ano, num soturno gavetão da nossa feroz e mesquinha indiferença ou ingratidão.
Milú merecia que os seus ossos permanecessem no seu lugar distinto, em campa de mármore bela, como homenagem à personagem distinta que figurou para nós, e permanecerá ao longo dos tempos, para as gerações que lhe sentirão a magia, apesar das transformações que a arte cinéfila vai sofrendo.
O Estado devia proteger a campa da nossa Milú, mandando construir marmórea lápide que lhe eternizasse a memória.
 


terça-feira, 20 de novembro de 2012

“Posta em sossego”


No tempo em que a programação da Literatura Portuguesa no Ensino Secundário, abarcava o estudo de alguns poemas do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende no seu espírito de transição para um lirismo humanista, e bem assim o da Tragédia Castro de António Ferreira, como obedecendo aos parâmetros de coesão, nobreza e fatalismo da tragédia grega, constituíam as Trovas à Morte de Inês de Castro do mesmo Garcia de Resende, e seguidamente o Acto IV da dita Tragédia de Ferreira, pontos de partida para a análise do episódio lírico “Inês de Castro” d’ “Os Lusíadas”, no confronto entre a singeleza do relato no primeiro caso, a linguagem ainda arcaica em harmonia com o queixume brando, não despido de conceito e revolta da triste donzela, e, na “Castro”, a dignidade simples da exposição de Inês, rodeada dos filhos pequenos,  ao Rei Afonso IV, quando este, dividido entre o dever e a piedade, a procura, acompanhado dos Conselheiros, para a matar. Servia esta última para confronto de verosimilhança relativamente ao discurso extraordinariamente belo e comovente mas pouco verosímil  da linda Inês camoniana, dirigido ao Rei (Lusíadas, Canto III):

«126 : "Se já nas brutas feras, cuja mente / Natura fez cruel de nascimento, / E nas aves agrestes, que somente / Nas rapinas aéreas têm o intento, / Com pequenas crianças viu a gente / Terem tão piedoso sentimento, / Como coa mãe de Nino já mostraram, / E cos irmãos que Roma edificaram;
127 : "Ó tu, que tens de humano o gesto e o peito / (Se de humano é matar uma donzela  / Fraca e sem força, só por ter sujeito  / O coração a quem soube vencê-la)  / A estas criancinhas tem respeito,  / Pois o não tens à morte escura dela;  / Mova-te a piedade sua e minha, /Pois te não move a culpa que não tinha.
128 : "E se, vencendo a Maura resistência, / A morte sabes dar com fogo e ferro, / Sabe também dar vida com clemência / A quem para perdê-la não fez erro. / Mas se to assim merece esta inocência, / Põe-me em perpétuo e mísero desterro, / Na Cítia fria, ou lá na Líbia ardente, / Onde em lágrimas viva eternamente.»
António Ferreira constrói a sua tragédia à maneira clássica, em cinco actos, com o Coro acompanhando em comentários de aviso ou de sentida compaixão o evoluir de uma acção concisa na unidade temporal, ou, no final de cada acto ele próprio alertando, em comovido conceito, para a brutalidade humana ou para a vingança previsível, acção em que o reduzido número de personagens (principais: Inês, Rei, Infante: secundárias: Ama, Secretário, Conselheiros) contribui para a sua nobreza e unidade – as principais na afirmação do seu amor ou da sua piedade em luta psicológica com o dever – Rei – as secundárias na afirmação da sua experiência e sensatez ou da sua lealdade para com a nação). Uma linguagem simples, num verso branco e sem retórica, mas tantas vezes de uma argumentação lógica, deixando transparecer a formação jurídica do dramaturgo.
Um exemplo do discurso de Inês ao Rei, numa linguagem despojada de artifício (Cena I do Acto IV):
«Castro:                              Meu Senhor / Esta é a mãe de teus netos. Estes são / Filhos daquele filho que tanto amas. / Esta é aquela coitada mulher fraca, / Contra quem vens armado de crueza. / Aqui me tens. Bastava teu mandado, / Para eu, segura e livre , t’esperar, / Em ti e em minha inocência confiada. / Escusaras, Senhor, todo este estrondo / D’armas e cavaleiros, que não foge / Nem se teme a inocência da justiça. / E quando meus pecados me acusaram, / A ti fora buscar; a ti tomara / Por vida em minha morte; agora vejo / Que tu me vens buscar. Beijo estas mãos / Reais tão piadosas, pois quiseste / Por ti vir-te informar de minhas culpas. / Conhece-mas, Senhor, como bom rei, / Como clemente e justo, e como pai / De teus vassalos todos, a quem nunca / Negaste piedade com justiça. / Que vês em mim, Senhor? Que vês em quem / Em tuas mãos se mete tão segura? / Que fúria, que ira esta é, com que me buscas? / Mais contra imigos vens, que cruelmente / T’andassem tuas terras destruindo, / A ferro e fogo. Eu tremo, Senhor, tremo / De me ver ante ti, como me vejo, / Mulher, moça, inocente, serva tua, / Tão só, sem por mim ter quem me defenda, / Que a língua não s’atreve, o esprito treme / Ante tua presença; porém possam / Estes moços, teus netos, defender-me. / Eles falem por mim, eles sós ouve. / Mas não te falarão, Senhor, com língua. / Que inda não podem; falam-te co as almas; / Com suas idades tenras, com seu sangue, / Que é teu, te falarão; seu desamparo / T’está pedindo vida; não lha negues. / Teus netos são, que nunca téqui viste; / E vê-los em tal tempo, que lhes tolhes / A glória e o prazer qu’em seus espritos / Lhe está Deus revelando de te verem.”
Rei: Tristes foram teus fados, Dona Inês. / Triste ventura a tua…..»
Comovido com as súplicas de Inês, o Rei cede: «Ó mulher forte! / Venceste-me, abrandaste-me! Eu te deixo. / Vive, enquanto Deus quer….»
Será na Cena II do mesmo Acto IV que os Conselheiros conseguirão convencer o Rei a mandar assassinar Inês, de que transcreverei algumas breves frases de argumentação em trocadilho sentencioso pró e contra a morte de Inês:
«Rei: Mais quero perdoar que ser injusto.
Coelho: Injusto é quem perdoa a pena justa.
Rei: Peque antes nesse extremo que em crueza.
Coelho: Não se consente o rei pecar em nada.
Rei: Sou homem. Coelho: Porém rei. Rei: O rei perdoa.
Pacheco: Nem sempre perdoar é piedade…….»
Por curiosidade, neste belo tema de amor e morte, à maneira da tragédia clássica, que Shakespeare e Racine tão extraordinariamente seguiriam, e o nosso Camilo igualmente subscreveria em “Amor de Perdição”, escrito no espaço e no tempo diminutos da sua cela da Cadeia da Relação do Porto, transcrevo as singelas Trovas de Garcia de Resende, que tão vasta inspiração originaram, o próprio drama francês da modernidade o tomando como assunto, através da pena de Henry de Montherlant, em “La Reine Morte”, representado na Comédie Française em 1942. Os versos em redondilha das estrofes em décimas das Trovas, estão transpostos em estilo corrido, sem demarcação heptassilábica, facilmente identificável:
….Fala D. Inês:
«Qual será o coração tão cru e sem piedade, que lhe não cause paixão uma tão grã crueldade e morte tão sem razão? Triste de mim, inocente, que, por ter muito fervente lealdade, fé, amor ao príncipe, meu senhor, me mataram cruamente!
A minha desaventura não contente d’acabar-me, por me dar maior tristura me foi pôr em tant’altura, para d’alto derribar-me; que, se me matara alguém, antes de ter tanto bem, em tais chamas não ardera, pai, filhos não conhecera, nem me chorara ninguém.
Eu era moça, menina, por nome Dona Inês de Castro, e de tal doutrina e virtudes, qu’era dina de meu mal ser ao revés. Vivia sem me lembrar que paixão podia dar nem dá-la ninguém a mim: foi-m’o príncipe olhar, por seu nojo e minha fim.
Começou-m’a desejar trabalhou por me servir; Fortuna foi ordenar dous corações conformar a uma vontade vir. Conheceu-me, conheci-o, quis-me bem e eu a ele, perdeu-me, também perdi-o; nunca té morte foi frio o bem que, triste, pus nele.
Dei-lhe minha liberdade, não senti perda de fama; pus nele minha verdade, quis fazer sua vontade, sendo mui formosa dama. Por m’estas obras pagar nunca jamais quis casar; pelo qual, aconselhado foi el-rei qu’era forçado, pelo seu, de me matar.
Estava mui acatada, como princesa servida, em meus paços mui honrada, de tudo mui abastada, de meu senhor mui querida. Estando mui de vagar, bem fora de tal cuidar, em Coimbra, d’assossego, pelos campos do Mondego cavaleiros vi somar.
Como as cousas qu’hão de ser logo dão no coração, comecei entristecer e comigo só dizer: “Estes homens onde irão?” E tanto que perguntei, soube logo qu’era el-rei. Quando o vi tão apressado, meu coração trespassado foi, que nunca mais falei.
E quando vi que descia, saí a porta da sala, devinhando o que queria; com grão choro e cortesia lhe fiz uma triste fala. Meus filhos pus de redor de mim com grande humildade; mui cortada de temor lhe disse: - “Havei, senhor, desta triste piedade!
“Não possa mais a paixão que o que deveis fazer; metei nisso bem a mão, qu’é de fraco coração sem porquê matar mulher; quanto mais a mim, que dão culpa não sendo razão, por ser mãe dos inocentes qu’ante vós estão presentes, os quais vossos netos são.
“E tem tão pouca idade que, se não forem criados de mim, só com saudade e sua grande orfandade morrerão desamparados. Olhe bem quanta crueza fará nisto Voss’Alteza, e também, senhor, olhai pois do príncipe sois pai, não lhe deis tanta tristeza.
“Lembre-vos o grand’amor que me vosso filho tem, e que sentirá grã dor morrer-lhe tal servidor por lhe querer grande bem. Que, s’algum erro fizera, fora bem que padecera e qu’estes filhos ficaram orfãos tristes e buscaram quem deles paixão houvera;
 “Mas, pois eu nunca errei e sempre mereci mais, deveis, poderoso rei, não quebrantar vossa lei, que, se morro, quebrantais. Usai mais de piedade que de rigor nem vontade, havei dó, senhor, de mim, não me deis tão triste fim, pois que nunca fiz maldade!”
El-rei, vendo como estava, houve de mim compaixão e viu o que não olhava: qu’eu a ele não errava nem fizera traição. E vendo quão de verdade tive amor e lealdade ao príncipe, cuja são, pôde mais a piedade que a determinação;
Que, se m’ele defendera que seu filho não amasse, e lh’eu não obedecera, então com razão pudera dar-m’a morte qu’ordenasse; mas vendo que nenhum’hora, dês que nasci até’gora, nunca disso me falou, quando se disto lembrou, foi-se pela porta fora.
Com seu rosto lagrimoso, co propósito mudado, muito triste, mui cuidoso, como rei mui piedoso, mui cristão e esforçado. Um daqueles que trazia consigo na companhia, cavaleiro desalmado, de trás dele, mui irado, estas palavras dizia:
“-Senhor, vossa piedade é digna de reprender, pois que, sem necessidade, mudaram vossa vontade lágrimas duma mulher. E quereis qu’abarregado, com filhos, como casado, estê, senhor, vosso filho? De vós mais me maravilho que dele, qu’é namorado.
“Se a logo não matais, não sereis nunca temido nem farão o que mandais, pois tão cedo vos mudais do conselho qu’era havido. Olhai quão justa querela tendes, pois, por amor dela, vosso filho quer estar sem casar e nos quer dar muita guerra com Castela.
“Com sua morte escusareis muitas mortes, muitos danos; vós, senhor, descansareis, e a vós e a nós dareis paz para duzentos anos. O príncipe casará filhos de benção terá, será fora de pecado; qu’agora será anojado, amanhã lh’esquecerá.”
E ouvindo seu dizer, el-rei ficou mui torvado por em tais estremos ver, e que havia de fazer ou um ou outro, forçado. Desejava dar-me vida, por lhe não ter merecida a morte nem nenhum mal: sentia pena mortal por ter feito tal partida.
E vendo que se lhe dava a ele tod’esta culpa, e que tanto o apertava, disse àquele que bradava: “- Minha tenção me desculpa. Se o vós quereis fazer, fazei-o sem mo dizer, qu’eu nisso não mando nada, nem vejo essa coitada por que deva de morrer.”
Fim: Dous cavaleiros irosos, que tais palavras lh’ouviram, mui crus e não piedosos, perversos, desamorosos, contra mim rijo se viram; com as espadas na mão m’atravessam o coração, a confissão me tolheram: este é o galardão que meus amores me deram. »
Henry de Montherlant explorou livremente o mesmo assunto em “La Reine Morte”, “drama em três actos”, com as três personagens conhecidas – O Rei (Ferrante), seu filho Pedro, Inês de Castro – a que associou a “Infanta de Navarra”, como desejada noiva para Pedro, figura orgulhosa de noiva repudiada, numa acção de peripécias várias e falas conceituosas de uma filosofia moderna e intenção crítica que naturalmente não poupa a governação do país Portugal, onde se passa a acção, sobretudo no final do III acto, com mistura de peripécias um tanto facetas fora do âmbito de uma acção una, que Ferrante descreve a Inês, na cena III do Acto II do modo seguinte (La Reine Morte Éditions Gallimard, 1947):

«Sabeis o que eles querem? Uma política de intimidação contra Dom Pedro e contra vós. A Infanta, ai de mim, parte amanhã. Ela deixa-me só e nestas salas bombardeadas de todos os lados pelo seu génio, roendo-me eu intimamente por não ter podido reter este gerifalte por vossa causa e das vossas sentimentalidades. E todavia eu não vos detesto. A Infanta é uma moça inspirada e febril; foi embalada num berço de bronze; vós, dir-se-ia, nascestes num sorriso…»

A Infanta de Navarra, caprichosamente, esforça-se por salvar Inês, levando-a para Navarra, proposta a que esta não acederá, presa ao amor de Pedro, mandado aprisionar por seu pai, e ao amor por seu filho prestes a nascer.

A relação amigável de Ferrante com Inês prolongar-se-á num suspense sobre a sua morte que o rei vai adiando, cedendo no final às instâncias dos vários conselheiros, sem bem perceber o motivo da sua ordem de execução e morrendo a seguir. Uma peça  que se lê com muito interesse, pela originalidade e riqueza psicológica das figuras principais e dos conceitos de um humor por vezes de paradoxo, por vezes sarcástico, bem longe da seriedade e do rigor seco da figura do Rei da peça de António Ferreira.

Mas é com o remate do episódio narrativo da “Linda Inês” d’ Os Lusíadas que finalizo esta breve retoma saudosista de temas de que a vida profissional possibilitou outrora o estudo – neste caso o tema do amor jovem que a morte eternizaria, a que, como ninguém, Camões soube dar a projecção lírica e dramática capaz de desencadear lágrimas, pela beleza ímpar do seu conceito e da sua expressão formal (estrofe 135):

As filhas do Mondego a morte escura
Longo tempo chorando memoraram,
E, por memória eterna, em fonte pura
As lágrimas choradas transformaram;
O nome lhe puseram, que inda dura,
Dos amores de Inês que ali passaram.
Vede que fresca fonte rega as flores,
Que lágrimas são a água, e o nome amores.