segunda-feira, 29 de outubro de 2012

SEBASTIÃO


Sebastião é o benjamim
Duma pequena “nação”
De Pais, irmã e dez tios,
Mais sete primos -
- Do grau primeiro,
Pois se fôssemos a considerar
Os tios e primos em grau segundo
Ou até quarto e terceiro,
E os ramos colaterais
Mais especiais,
Formaríamos um pequeno mundo,
O que não é de espantar.



Não podemos esquecer
Nesta contagem de pormenor
Superior,
Os quatro avós e as duas bisavós
- Uma a caminho dos 106
Outra, com 99 -
Cuja semente parou por ora
Neste seu descendente -

- O Sebastião de quem se fala

Nesta fala,
O nosso benjamim
De caracolinhos ao vento
O rosto de querubim
O olhar atento
Cheio de encanto,
Que hoje, vejam bem!
Completa dois anos
Que passaram num ai,
E cada dia que passa
Revela uma nova graça.

Um Sebastião comilão,
Grande valentão
Que com o papá na trotinete,
Antes de se porem em movimento
De modo nem nada lento,
                               
 Alça a perna e o pé,
Durante bastante tempo,
Como faz a Mafalda sua irmã
Que aprendeu esse jeito de avião
no ballet.


Sempre agarrado à lancheira
Quando vai para o infantário
- Início do seu fadário,
Que nem sempre aceita bem
Fora do pai e da mãe,
Mas logo esquece o repúdio
Ao colo da Preceptora,
Que é pessoa encantadora –
Vai orgulhoso da responsabilidade
De transportar uma mala,
Tal como a Mafalda sua mana
Que tem mais cinco anos de idade
E que ao mano cede mimosa
E com graciosidade.

Um amor de rapazinho
O nosso Sebastiãozinho
Que mal chega a casa desanda
A abrir o canal do Panda,
O qual é, sem fantasia,
A palavra que mais repete
Ao longo do seu dia.
Para ele, com devoção,
E para todos os mais meninos,
Os grandes e os pequeninos,
Pedimos a atenção
Dos condutores da Nação
Na conquista de um futuro
Mais seguro.
Mas os “Parabéns a você”
vamos agora cantar
Juntando-nos ao Canal Panda
Cujo grupinho, com Panda,
Canta os parabéns a dançar.





E a tia Paula surgiu
Com versinhos para ti.
Eis os versos que escreveu
Aqui:


Chegou o dia dos anos
Do nosso bebé menino
Está a crescer, no entanto,
Já não é tão pequenino.




E os tios e os primos,
Contentes, observarão
Este menino crescer –
- O nosso Sebastião!


Vai chegar até à lua,
Que ele chega a todo o lado.
Com suas maneiras gentis
É um bebé bem safado!



E na festa deste ano
Nós queremos desejar
Um novo ano feliz
P’ró Sebastião gozar…..                  

PS-  O teu papá publicou
       As imagens que a tia Paula pesquisou,
       Fora a do "Principezinho", figura incontornável
       No universo do teu papá amorável.
     

sábado, 27 de outubro de 2012

“Às vezes querem a cama”


A minha amiga começou por falar no BPN como organismo que, segundo ouvira e vira nas mídia, se repusesse o que roubara, pagava-se o que se devia ao BCE. E eu referi que ontem a cabeleireira já me dissera o mesmo, pois também escutara, tendo-lhe eu respondido que para isso era preciso que importassem dos paraísos fiscais o produto desses furtos nada fortuitos porque programados com a competência que nos ficou de mestres eminentes, como Alves dos Reis, com o que a cabeleireira concordara por também ter visto o filme. E a minha amiga vá de continuar, alheia às minhas práticas coloquiais com a cabeleireira, que afinal também é a dela, não havia razão para o desinteresse:

- Roubaram tudo e a Tróika acaba de dizer que as pessoas têm que passar por isto com dor. Eles não podem fazer mais nada, quando dizem que não podem ceder, que estamos na era do “condor”.
- Em trocadilho, está visto.
- E aquele sacrifício exigido aos médicos de horas seguidas de trabalho diário! E sabe o que pode acontecer? Ficam esgotados e cometem erros.

- Sim, os professores também andam esgotados e podem falhar, mas não põem vidas em risco. Só as suas.
- Já viu a quantidade de falhas? Até gente morre… Uma técnica de máquinas ligou aquilo mal… E sabe o que acontece? Tem de ir para a rua. Assou a pessoa num forno, como um animal. Uns dias depois, foi a mulher com uma dor no peito. Já está tudo a morrer assim, com dor no peito. Foi para casa. Ora estes fulanos médicos não sabem que isto acontece? Que às vezes a dor volta e é fatal? Aconteceu com o filho de uma minha amiga. Baixou ao hospital de Setúbal, mas mandaram-no para casa, aparentemente melhor. A dor no peito voltou, mas a família levou-o desta vez para o Garcia de Horta. Houve uma amiga de peso que perguntou por ele, o bastante para o tratarem com cuidado. Foi operado para abrir uma válvula. E o hospital de Setúbal manda-o para casa? Mas eu alguma vez tinha que dizer isto: se não há cama, metam-no na maca. Às vezes querem a cama, por isso os mandam para casa. E aquele rapaz actor, de 41 anos? Também foi ao hospital e também voltou para casa e a dor insuportável voltou. E assim morreu. As famílias agora também não se calam. Isto não pode acontecer. E a mulher que voltou para casa depois de ter estado ligada  a uma máquina mal programada… Volta para casa, começa a ter bolhas no corpo e ela morre. O que é que nos interessa a nós, doentes, que os médicos estejam cansados? Mas voltamos ao mesmo. Não se pode fazer doutra maneira, actualmente. À custa de vidas! Muitos velhos têm a receita na mão e não compram. As farmácias dizem: já os há aos molhos. Pronto! Começam a morrer! São velhos. Não tomam medicação. Parece notícia do outro mundo. Andam a faltar remédios. As farmácias pagam impostos tão grandes ao Estado que não podem pagar aos fornecedores. Mas os médicos dos hospitais também andam cansados. Já se nota bem isso. Eu tenho imensa pena que os horários sejam assim. E ontem na assembleia, os empresários estavam revoltadíssimos, obrigados a fechar… E esses Soares e Sampaios, contra as medidas! Não haviam de ser, eles! Vem a Troika e diz que não há outra maneira….

Finalmente, pude falar em Belo Marques. Tinha ouvido o programa sobre ele no Canal Memória. Um homem de valor, compusera sinfonias, mas o país desdenhara delas, estendera-lhe a mão para outro género de composições, e assim nasceu “Alcobaça”. E também a bonita música que se me fixou na memória, por me trazer lembranças do meu pai cantando-a ao som da sua viola:

«Na minha aldeia
Não há ódios mas estimas.
Tem-se amor pela vida alheia
Tudo são primos e primas.
Sem ambições,
Cada qual seu pão granjeia.
Há noite há serões
À luz da candeia.»

Falámos nas tais sinfonias de Belo Marques, provavelmente arrumadas na prateleira, que não somos gente de valorizar sinfonias. Sempre valorizámos com mais ponderação  jogadores de futebol.  Alguma coisa havíamos de valorizar! Que a ninguém admitimos desconsiderações, pela nossa falta de valorização!

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Três tristes tigres


Hoje levei à minha amiga vários artigos que me deram no goto, por concordar, na sua essência, com as opiniões dos respectivos autores a respeito das figuras que descreveram.

Um deles, do “Comendador Marques de Correia”, não o da Revista mas do Primeiro Caderno do Expresso de 20 de Outubro, sobre Basílio Horta, em quem em tempos desancáramos, quando se passou para o PS e o ouvimos vomitar as grosserias habituais dos adeptos dos partidos contrários ao do Governo, mas nele acentuados com um calor de especial iracúndia, mais interessado em exibir os espasmos da sua demagogia altissonante do que em ponderar sobre a salvação do seu país.

Afinal, há quem o conheça melhor ainda do que nós, que o escutámos em diferentes posicionamentos discursivos, mais cordatos os primeiros, de uma exaltação disparatada e inesperada, os segundos.

Não resisto a transcrever-lhe o retrato, feito com a habitual ironia do “Comendador”, Henrique Monteiro de sua graça, que o intitula “Ditosos filhos que tal pátria têm”. Sim, a pátria somos nós todos, os da nação alfobre e jardim de tantos destes.

«Declinamos hoje um nome que, em coerência sempre serviu as mesmas ideias: as suas! Nunca se desviou da rota, e ainda que a outros o seu rumo pareça errante, tal deve-se ao facto de a linha mais curta entre dois pontos ser em ziguezague.

Basílio Adolfo Mendonça Horta da Franca  é um jurista e político que nasceu em Lisboa a 16 de Novembro de 1943. Como político, foi sempre justo e como jurista foi sempre polido. Estão-lhe no sangue todas essas qualidades, embora seja um homem sem interesse nenhum, como se pode constatar no seu registo de interesses na Assembleia da República.

No entanto, o jovem Basílio foi reacionário até aos 62 anos, uma vez que até 2005 foi deputado eleito nas listas do CDS/PP. Desde 1976, foi eleito pelo mesmo partido sete vezes (quatro por Braga, duas pelo Porto e uma por Viseu, demonstrando predilecção por círculos à esquerda. Foi ainda quatro vezes ministro do Comércio e embaixador da OCDE.

Foi também do directório do CDS, em conjunto com Adriano Moreira e Manuel Monteiro, numa troika que ficaria imortalizada (embora de forma muito irreverente e pela qual, desde já, pedimos desculpa), com o epíteto da troika do velho, do rapaz e do… Basílio! Foi, ainda em tempos de juventude, candidato da direita às eleições presidenciais, em 1991, contra Mário Soares, de quem disse o que Maomé não disse do toucinho (e vice-versa), embora o tempo entretanto decorrido, esse malandro, faça com que ambos os socialistas estejam hoje de acordo na necessidade para superar as contradições e os males do mundo.

A sua adesão ao espírito do PS foi, mais ou menos, coetânea com a sua nomeação para o AICEP, agência de que foi presidente. Daí transitou para deputado socialista, desta vez pelo círculo de Leiria, aproximando-se finalmente do Sul e da sua terra, sendo agora, e depois de anos no engano da direita, o mais encarniçado defensor do socialismo democrático.

Homens como ele, fortes entroncados e seguros, dados à ondulação, já Camões cantou:

Daqui fomos cortando muitos dias,/ Entre tormentas tristes e bonanças,
No largo mar fazendo novas vias, / Só conduzidos de árduas esperanças.
Co mar um tempo andámos em porfias, / Que, como tudo nele são mudanças,
Corrente nele achámos tão possante, / Que passar não deixava por diante».

Outro artigo foi o intitulado “História de uma pequena igreja” de Vasco Pulido Valente, do “Público” de 14/10. Foi sobre Jorge Sampaio, cuja aparência de rectidão e nobreza nos discursos de seriedade sempre me pareceram mistificatórios, o que comprovei com a deslealdade interesseira na deposição de Santana Lopes do cargo de primeiro ministro, em 2005, mas a minha amiga já sabia da sua presunção por intermédio de amigas suas que o conheciam, e frequentemente falávamos dele sem simpatia.

 Este retrato de Pulido Valente prova que não nos enganávamos, descontada a subjectividade do seu autor em favor da análise de rigor histórico: mais um “ditoso filho de uma pátria” alfobre destes “talentos” já consignados na literatura queirosiana.

É sobre uma pesada biografia de 1007 páginas sobre Jorge Sampaio até ao momento da sua candidatura a presidente da Câmara de Lisboa, escrita por José Pedro Castanheira:

«… Mas, no fundo, José Pedro Castanheira acaba por fazer a história da geração de 62, mais precisamente da dúzia e meia de pessoas que se distinguiram na primeira grande guerra estudantil contra a Ditadura. E só por isso o esforço (da leitura) se recomenda, embora essa história seja desoladora e triste, sobretudo para mim, que assisti a parte dela e conheci quase toda a gente que nela entrou.

O grupo, muito “revolucionário”, que depressa se juntou à volta de Jorge Sampaio acreditou piamente em cada baboseira ideológica, que lhe vinha da França e também de Itália. Isto assentava, como se calculará, numa ignorância abissal – de história, de filosofia, de economia e do próprio Marx, que nunca se deram ao trabalho de atenuar. Iam saltando de um erro para o próximo, com a mesma convicção e o mesmo deleite. Hoje, Sampaio sacode essa persistente peregrinação pela asneira e pela pura idiotia (que durou quase vinte anos) como um efeito inócuo da imaturidade. Mas não fala da pressão do PC e da extrema esquerda, que ele queria reunir num “autêntico” partido socialista. De resto, os sampaístas foram sucessivamente conhecidos pelos caminhos que abandonaram e pelas derrotas que sofreram: ex-CDE, ex-MES, ex-GIS, ex-Secretariado ou qualquer outra coisa que lhes permitisse continuar à tona.

Amigo de alguns deles, detestando do coração a maioria, nunca me senti parte da família. Como no PC, viviam juntos, quase na promiscuidade. Nas férias, no trabalho, na política, ao almoço e ao jantar (tornaram célebre, por exemplo, o restaurante do Hotel Flórida). E José Pedro Castanheira, com uma paciência sobre-humana, descreve os milhares de vezes que se reuniram, em casa deste ou daquele, para discutir a intriga do dia ou futilidades sem nome e sem propósito. Eram uma igreja. Ambiciosa, ainda pior cima. Mas como Sampaio, num excepcional momento de franqueza explicou, 30 amigos certos valem bem três mil militantes na rua. E, nesse ponto, acertou: não mais do que 30 amigos conseguiram que ele finalmente chegasse a Belém, onde a vacuidade final do grupo se manifestou em todo o seu esplendor.»

É do jornalista Ferreira Fernandes , na coluna “Um ponto é tudo”, do DN de 23 de Outubro, que transcrevo o texto “Marcelo e o vídeo para alemão ver” sobre a observação de Marcelo Rebelo de Sousa acerca de um projecto de um vídeo para a Alemanha justificativo das nossas razões aqui, a merecerem a clemência deles lá, coisa que já discutíramos, a minha amiga e eu, como mais uma calamidade sobre a nossa insignificância exibicionista, a merecer o riso e o desprezo. Mas o texto de Ferreira Fernandes tem suficiente graça, embora não nos liberte da preocupação sobre um “dito e feito” piroso e humilhante de mais um “ditoso filho” da pátria humilhada, que vai sussurrando dados de intriga, como alcoviteira de olho aceso, a levantar o véu da sua fofoca malandra e tola:

No domingo, na TVI, Marcelo disse que queria fazer um vídeo para explicar Portugal aos alemães. Da última vez que vi Marcelo a explicar alguma coisa em vídeo era sobre o aborto e ele (Marcelo, não o aborto) tinha a voz parecida com a do Ricardo Araújo Pereira. Se querem que seja sincero, acho melhor não. Marcelo em vídeo é demasiado imaginativo, contraditório e brilhante para explicar alguma coisa a um povo quadrado. Já estou a vê-lo, mãos esvoaçantes ao sabor dos argumentos (quando os alemães gostam mais de mão hirta): “A austeridade é má para os portugueses? É! Mas eles não a merecem? Merecem! Uma coisa é a austeridade nos portugueses…Outra  coisa é a auuuuutoridade dos alemães…” E assim por diante. Receio que os alemães, vendo um reputado professor universitário tão espalhafatoso, decretem: estes tipos não podem ser levados a sério. E nos apertem ainda mais a tarraxa. Os alemães adoram passar multas a professores que saiam da norma. Um vídeo bom para eles tinha de ter um professor de voz e de conclusões inexoráveis: é assim e aguentam. Olhem, o Vítor Gaspar explicava-nos bem aos alemães. Os alemães têm aquilo, a “Schadenfreude”, um motor de alma (é, eles não têm estados de alma) que os faz ter alegria com o mal dos outros. De um vídeo com Vítor Gaspar eles gostavam, riam muito e erguiam a caneca, limpavam a espuma com as costas da mão e mandavam-nos trabalhar.”

Três heróis nacionais, três ditosos de uma pátria que assim se retrata na mediocridade, apesar dos outros que não só souberam mostrar ao mundo novos mundos, mas que a dignificaram com a sua arte, o seu saber e a sua coragem, ou que vão demonstrando qualidades e comportamentos que nos permitem ainda a esperança .

 

 

 

 

 

domingo, 21 de outubro de 2012

Fuit


O texto do Dr. Luís Soares de Oliveira, “Vaticano II, a revolução que veio de cima”, publicado no blog “A bem da Nação” mostra como a Igreja se foi actualizando, ao longo da última metade do século XX, em termos de cooperação com os movimentos de emancipação dos povos, a ponto de desprezar, na linha de outros povos vomitando impropérios contra o Estado Português colonialista, o país ínfimo no seu núcleo, dilatado em zonas da sua expansão marítima feita outrora.
Soares de Oliveira revela a evolução da Igreja católica a partir do Concílio Ecuménico Vaticano II (1963/65), tendo por objectivo “actualizar uma Igreja multissecular”, sob a égide do Papa João XXIII (Ângelo Roncali, 1959/1963):

“A Igreja decidia pois libertar-se de peias e compromissos para crescer no domínio espiritual e realizar a sua missão à escala mundial. Este sentido foi claramente confirmado quando a assembleia dos Bispos rejeitou in limine todas as propostas que cheiravam a dogmatismo e autoritarismo2. Apelava-se agora mais para a consciência do que para a obediência. Condenado estava pois o apoio ao nacionalismo que caracterizara o posicionamento político da Santa Sé no pontificado de Pio XII. A Concordata3 estabelecida em 1940 com o Governo Português estava em perigo.”

Outro papa se lhe seguiu – Paulo VI (1963/78) – empenhado na mudança, e contra ele escrevi, em texto de 1974, "A Voz de Moçambique é que quis ser mais papista que o papa, com certeza, embora o papa presentemente também revele entusiástico apoio aos terroristas, numa democrática e progressista interpretação do cristianismo: "Matai-vos uns aos outros..." (“Pedras de Sal”).
Mas foi a referência à Concordata que me fez recordar dois textos que escrevi em 73 em “Prosas Alegres e Não”, sobre a indissolubilidade matrimonial dos casamentos religiosos, considerando a sua extinção como algo positivo dos novos tempos, graças à intervenção do Dr. Salgado Zenha.
Eis os textos escritos dez anos antes:
«Uma lei arbitrária»
«Pelo recente Inquérito realizado pela “Página da Mulher”, tivemos a ocasião de observar as diversas reacções à lei da Concordata estabelecida há uns anos entre o Estado e a Igreja, que não permite o divórcio entre pessoas casadas religiosamente.
Não se pode afirmar que houvesse unanimidade de pareceres, dado que defenderam alguns a posição da Igreja – o que se não deve estranhar num país fervorosamente católico como é o nosso – tendo, entretanto, outros, desaprovado tal lei.
Exprimem os seus defensores o conceito de que nem o Estado nem a Igreja impõem o casamento religioso. Quem se casa pela Igreja já sabe o que o espera no caso de se não vir a entender com o futuro cônjuge. Por isso, e de acordo com o provérbio “Mais vale prevenir do que remediar”, quem não se quer arriscar a uma situação futura irremediável, trate de se casar pela lei civil, simplesmente.
Tudo isso é certo. Quando a gente se casa deve prever essa hipótese de se não vir a entender com o cônjuge. Mas não prevê de facto.
Nos casamentos de amor – e há-os, tão sinceros como em todo o sempre – os jovens vão convencidos da perenidade do seu enlevo. Geralmente são os que mais depressa falham. Porque nos outros casamentos – os de interesse – e há-os também, e igualmente “sinceros” – o mesmo interesse mantém a união, salvando-se mais as aparências. Ao passo que o amor é exaltado, nervoso e exclusivista, depressa redundando em situações menos serenas que conduzem tantas vezes ao falhanço.
Mas quando se ama, a perspectiva de um futuro desentendimento está perfeitamente distante do espírito de quem ama. Por isso de boa vontade se submete ao casamento religioso, talvez um pouco na convicção de que Deus abençoará assim melhor o lar em formação. Por vezes nem é tanto a crença religiosa a impulsionadora de tal decisão. Talvez uma questão de atavismo, um certo respeito pelas tradições familiares, pois que a ideia do casamento civil choca ainda as convicções paternas, orientadas nos princípios que a Igreja há pouco ainda seguia, de pouca validade do casamento civil.
Mas a Igreja, que pelos vistos também evolui nos seus conceitos, deixou de considerar menos válido o casamento civil. Reconhece-o perfeitamente, já não considerando precitos aqueles que o fazem. Precitos serão agora os que, casados pela Igreja, se separaram no Tribunal, continuando, entretanto, ligados indissoluvelmente pelas leis cristãs.
O objectivo da Igreja, ao impor a indissolubilidade matrimonial, segundo parece, é o de incutir no homem e na mulher a consciência dos seus deveres conjugais, abstendo-se de todo o egoísmo, cada um procurando fazer a felicidade do outro. É pena que para tanto seja necessária a força de uma autoridade superior.
Todos conhecemos casos de indivíduos não religiosos sabendo manter um decoro na sua vida que não resultou, certamente, dos preceitos das doutrinas cristãs. A dignidade humana, o respeito por si próprio, não é, seguramente, a Igreja que os impõe, embora a sua influência possa ser benéfica.
Já não vivemos na época em que quase só o terror do Inferno podia contribuir para adoçar as almas. O homem deve tomar consciência da sua dignidade de homem e das implicações morais daí consequentes. Deve respeitar-se a si e aos outros pela própria condição de indivíduo pensante e não porque a Igreja exige que assim o faça.
Por isso ao casar deve saber o que faz e tentar conduzir a sua vida harmoniosamente. Mas se as circunstâncias forçarem, um casal a separar-se – e há tantas e tão trágicas por vezes – nenhum organismo deveria poder impedir que ele o fizesse como se não se tratasse de um ser pensante mas puramente de um irracional apenas obedecendo a instintos, e como tal castigado.
Porque é desnecessário salientar-se as situações infelizes resultantes desse impedimento, ultrajantes da dignidade humana e humilhantes para as crianças que nascem de novos lares não abençoados de Deus nem aceites dos homens e a quem o Estado não reconhece a legitimidade da existência.
Resta-nos perguntar apenas: Com que direito, afinal, se impõem destas leis drásticas aos homens, porque deverão os homens sujeitar-se a elas, sempre, afinal, dependentes dos diferentes critérios dos que os governam? Porque é que os que se casaram anteriormente à Concordata puderam descasar-se, refazer as suas vidas normalmente, aceites pela sociedade, e os que se casaram posteriormente à Concordata e por idênticos motivos quiseram igualmente descasar-se, não o puderam fazer da mesma forma?
Esta anomalia e arbitrariedade da lei torna-se por demais injusta para necessitar de outros comentários.»

Eis o segundo texto – “Casamento e Divórcio” – com que concorri a um concurso de um jornal lourençomarquino  - “Tribuna”, salvo erro – concurso, naturalmente, ganho por um concorrente africano:

«Não sou apologista do divórcio que entendo só deve surgir “in extremis”, quando não seja possível outra solução.
Quando as pessoas se casam, raramente o deverão fazer com a antevisão de uma derrocada futura. Se o casamento é de amor, os jovens nem se apercebem de que tal amor possa ter um fim. Se é de interesse, as perspectivas de um fim estão ainda mais distantes, porque esse mesmo interesse saberá manter a união.
Infelizmente a vida compraz-se em troçar dos homens, quando não são os homens que a subestimam, a qual, por isso mesmo, se vinga, apresentando-lhes as situações mais complexas ou as mais irredutíveis.
O dinheiro é, suponho, um dos maiores causadores das separações, como chamariz de amigos e, como consequência, de uma certa dissolução e abandono dos costumes mais familiares dos primeiros tempos de casados. Os amigos, as amigas, mas sobretudo a falta de honra, de respeito mútuo, o profundo egoísmo humano, a falta de paciência para com as pequenas fraquezas e, enfim, o enfastiamento que por vezes surge no homem, eterno insatisfeito e eterno volúvel, supondo encontrar sempre o melhor naquilo que não possui, eis alguns dos motivadores de situações irremediáveis conducentes ao divórcio.
Infelizmente, os casados pela Igreja não têm a possibilidade de se libertarem dos laços que os prendiam, vinculados como ficam perante as leis religiosas, embora separados de pessoas e bens perante as leis civis.
“A César o que é de César, a Deus o que é de Deus”, afirmou Cristo, expressão sem efeito  actualmente, dada a aliança entre César e Deus.
Há, no entanto, disparidade de situações no capítulo das legalidades matrimoniais. Com efeito, sendo perfeitamente válido um casamento apenas civil – até há poucos anos, todavia, objecto de repulsa – não se aceita o casamento só religioso, donde a conclusão de que o duo Estado-Igreja não labora em harmonia de direitos.
Na questão de separação é, porém, o Estado que perde perante a suserania religiosa, dado que a separação legal fica anulada perante a autoridade suprema da Igreja.
Aliás, bem vistas as coisas, nem Igreja nem Estado, entidades abstractas e indiferentes, perdem com o caso, pois os verdadeiros atingidos – na sua dignidade humana, sobretudo, são os homens sujeitos a esse ostracismo.
É desnecessário encarecer as consequências de um acordo destes, na formação de uma sociedade onde grande parte dos seus elementos vive em situação de mancebia injustificada, injusta e unilateral, pois que para todos os efeitos ela não se estende a todos os passos da vida do cidadão ilegítimo, perfeitamente integrado na sociedade para prestar serviço militar, por exemplo.
Triste exemplo seremos para as gerações vindouras, já libertas da opressão, e que apontarão sobre nós a vara acusadora, bramando contra a sujeição humilde de uns e a prepotência mesquinha de outros, causadora de uma instabilidade e estagnação social inadmissíveis, numa  sociedade pretensamente evoluída mas usando ainda estranhos processos inquisitoriais.
Porque esse “castigo” imposto pela Igreja aos que ousaram casar religiosamente e depois quiseram desligar-se, não chega a evitar que as separações se dêem e outras uniões se formem. O homem atinge, em dada altura da sua vida, e mais ainda se o sofrimento o amadureceu, um estado de espírito de libertação interior, que o leva a não se impressionar muito com o choque das opiniões de outros homens iguais a ele. E embora reconheça que fica do outro lado da barreira no jogo dos convencionalismos sociais, segue os ditames da sua consciência ou do seu coração, de preferência a sujeitar-se a esses mesmos convencionalismos.
Não me parece, pois, que a dita “repressão” trazida pela Concordata exerça grande influência sobre o maior ou menor número de divórcios reais, pois devemos considerar que o divórcio real se deu desde que deixou de haver amor. Quantos casos se conhecem, de casais separados de facto, mas conservando perante o mundo as aparências e o prestígio de um casamento válido! Talvez uma situação dessas cause tantos ou mais traumatismos e perturbações nos filhos, do que aquela outra em que, separados os pais, aqueles encontram um ambiente mais honesto e mais são no lar que a mãe ou o pai formou de novo.
               E  isso – um viver harmónico, sem disputas nem desamor – é muito mais importante, suponho, do que essa convenção do matrimónio indissolúvel – que o homem ou a mulher se apressam quantas vezes a dissolver leviana e impudentemente, sem tomarem em conta um sem-número de factores, de que os filhos são o factor mais importante.
Indissolubilidade existe se existe amor, sentimentos e consciência. A falta destes elementos origina a dissolução matrimonial que nenhuma Igreja nem nenhum Estado poderão evitar, por muitas medidas repressivas que tomem.
As medidas a tomar de facto, seriam as de uma sã moral, onde a honestidade, a modéstia, a lealdade, o trabalho consciente, não fossem palavras vãs que se pudessem incutir aos cidadãos por meio de exemplos reais e não mostrar-lhes que realmente a desonestidade, a arrogância, a trampolinice, a calaceirice, a arteirice e o compadrio é que levam o homem ao triunfo e à sua realização integral.»
(Dizeres verdadeiros ontem, no tempo do império, acentuados hoje no desfazer do império e quem sabe se da nação que parece desmoronar-se como um baralho de cartas, em gritaria e ânsia).
À laia de conclusão, para os jovens desinibidos de hoje, para quem todas estas questões já obsoletas são irrelevantes, e naturalmente despidas do significado trágico que constituíram para os seus preconceituosos avós, transcrevo um parágrafo de um texto -“Aborto” -  escrito onze anos depois, do livro “Anuário, Memórias Soltas”:
“O nosso Estado e a nossa Igreja são um Estado e uma Igreja muito sensíveis, que sempre se interapoiaram, já desde a Santa Inquisição, em que se queimavam os corpos para defesa das almas e angariação de bens, já desde a Concordata que impedia a separação judicial dos casados, com vista à formação de mancebias, ressalvando-se, embora, a honra do convento, ou seja, a dignidade da nação, que assim erguia, como um facho, perante o mundo dissoluto, a indissolubilidade matrimonial”.
Talvez que o Concílio Vaticano II de 1962 tenha sido o primeiro passo numa actualização que não atingiu ainda o celibato dos padres, com a liberalização do seu casamento, que já Herculano defendia, mas que, finalmente, desfez uma lei abjecta e mais recente, a da Concordata instituída no tempo de Salazar em 1940, no pontificado de Pio XII, e cuja extinção se preparava já antes do 25 de Abril, cabendo a Salgado Zenha a negociação para a sua revisão com a Santa Sé em 1975, no sentido da legalização do divórcio em Portugal.
Afinal, bem pode pensar-se que esses 35 anos de concubinagem e de ilegitimidade para os filhos “de pai incógnito”, causados pela lei iníqua, causaram, na revolução dos costumes no nosso país, um impacto superior aos efeitos de outras tendências de modernidade, entre as quais a droga, visto que uma percentagem mínima de casamentos “selados” se fazem nele,  acompanhando, aliás, uma frieza e indiferença pelas tradições que têm a ver com o desrespeito generalizado na tessitura da nossa sociedade, a que o empobrecimento serve, igualmente, como factor de entrave, e onde já quase só os “casamentos de Santo António” mantêm o facho  dos “bons costumes” ancestrais.

 

 

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Mais do mesmo


O meu filho Ricardo manda-me às vezes, por mail, textos da sua e da nossa revolta, sobre as contrariedades da existência, causadas por tantos desmandos quantos os implicados neste contínuo “inverno do nosso descontentamento”, dificilmente “convertido em verão” já que nos falta o “sol de York” e que “as nuvens que ameaçavam a nossa casa” se desencadeiam “do mais interno fundo do oceano”, prestes a subverter-nos, com o auxílio poderoso de todos nós, que nos deixamos manipular por quem, isento das responsabilidades de gerir, se entretém a açular, fingindo defender quando está apenas a destruir, numa estranha manigância de ambição pelo poder e de ódio pelos que o detêm.

O Ricardo – o primeiro dos meus cinco filhos, não o terceiro da peça de Shakespeare - faz hoje anos, e dificilmente apreciará a referência, onde estão implícitos os desejos de sempre, de uma bênção sobre as suas vidas, mas um blogue serve também para deixar impresso o mundo que se construiu, e os filhos foram - creio que são sempre – o fenómeno mais extraordinário que um deus de bondade, desconhecido ou menos, permitiu que as suas criaturas vivessem, elas próprias criadoras e continuadoras numa incompreensível e estranha obra que vai rolando indefinidamente, mau grado a pavorosa consumação dos tempos que alguns auguram, por mórbida deformação das mentes.

Para o Ricardo resolvi traduzir uns excertos da tragédia “Coriolano” de Shakespeare, como forma de felicitação e agradecimento pelos mails que me envia, uns sérios outros cheios de graça dos seus intercâmbios informáticos.

É sobre o tema da eterna questão da divisão da sociedade em classes e consequentes diferenças de tratamento económico e cultural, que provocaram ao longo da história dos homens inúmeras lutas, pretensamente coroadas de êxito na Revolução Francesa, a qual impôs a sua abolição - (com a arrogante e falsa asserção da igualdade entre os homens) - mas, naturalmente, pela inversão dos dados – os grandes descendo, os pequenos subindo – o que igualmente não resultará, pelas naturais diferenças a todos os níveis, que faz que a sorte, as ambições, a esperteza, a falta de escrúpulos também, sejam factores importantes nos desníveis e diferenciações sociais. O nosso Luís de Camões bem o sentiu, e muito antes dele, na nossa literatura, um tal  Pero Mafaldo escreveu que “vej’eu ir melhor ao mentireiro / que ao que diz verdade ao seu amigo”, o que significa que desde sempre tudo anda às avessas - segundo a velha convenção de que o direito são os velhos conceitos de verdade, bondade, já pregados por Cristo, e muito antes dele, detectados nas filosofias de tantos construtores do pensamento, princípios, aliás, rejeitados pelos da vertente mais céptica.

O drama de Shakespeare “Coriolano” dá-nos retratos de extraordinário conhecimento humano sobre a sociedade segundo o ponto de vista das classes, que nos mostram como pouco ou nada se evoluiu em termos de comportamento social, nos dualismos pobre-rico ou governante-governado, os primeiros impondo-se pela arrogância de uma condição que os superioriza, os segundos, quando não amordaçados pelo medo, e hábeis já, em defesa dos seus direitos, manifestando-se pela violência das palavras e dos actos.

 Vejamos, por exemplo, o retrato traçado pelo Primeiro Cidadão, numa rua de Roma, quando todos se preparam para matar o patrício romano Caio Márcio Coriolano, como inimigo público que os reduziu à miséria:

«Chamam-nos pobres cidadãos: não há dignidade senão para os patrícios. O supérfluo dos nossos governantes bastaria para nos satisfazer. Se ao menos nos cedessem apenas restos sãos, poderíamos julgar que eles nos socorrem por humanidade; mas eles acham-nos demasiado caros. A magreza que nos aflige, por efeito da nossa miséria, é como um inventário detalhado da sua opulência; a nossa miséria é o seu proveito. Vinguemo-nos a golpes de lança, antes de nos convertermos em esqueletos. Porque, os Deuses sabem-no, o que me faz falar, é a fome de pão e não a sede de vingança.»

Segundo Cidadão: «Você pretende agir especialmente contra Caio Márcio?»

Primeiro Cidadão: «Contra ele, primeiro: é o carrasco do povo.»

Segundo Cidadão: «Mas tem em conta os serviços que ele prestou ao país?»

Primeiro Cidadão: «Certamente, e é com prazer que os lembraríamos, se ele não respondesse com um bruto orgulho.»       ……..

Chega Menénius Agrippa, amigo de Coriolano que se propõe defendê-lo:

- « Amigos, crede em mim! Os patrícios têm por vós a mais caridosa solicitude. Pelas vossas necessidades, pelos vossos sofrimentos no meio desta miséria, tanto valeria bater no céu com as vossas lanças, como erguê-las contra o governo romano: ele prosseguirá a sua carreira, esmagando dez mil freios mais sólidos do que aqueles que vocês nunca poderão opor-lhe. Quanto à fome, não são os patrícios, são os deuses que a fazem; e diante deles, os vossos joelhos servir-vos-ão melhor que os vossos braços. Ai de mim! Vós sois arrastados pela calamidade a uma calamidade maior. Vós caluniais os barqueiros do Estado: eles velam sobre vós como pais, e vós amaldiçoai-los como inimigos!

Primeiro Cidadão: «Eles, velarem sobre nós! Sim, com efeito!... Eles nunca velaram sobre nós. Eles deixam-nos morrer de fome, quando os seus armazéns estão atulhados de grão, fazem éditos em favor da usura para proteger os usurários, evocam todos os dias algum acto salutar estabelecido contra os ricos, e promulgam estatutos cada dia mais vexatórios para agrilhoar e oprimir o povo. Se as guerras não nos devorarem, serão eles. Eis o amor que nos têm!

E vem a história exemplificativa do ventre, contada por Ménénius, ventre preguiçoso, segundo as acusações dos diversos órgãos, limitando-se a receber o alimento, enquanto todos eles colaboravam na condução do corpo, ao que o ventre responde, calmamente: “É bem verdade, meus caros confrades, que sou o primeiro a receber o alimento que vos faz viver; e é justo, pois que sou o celeiro e o armazém do corpo inteiro. Mas, se bem vos lembrais, eu tudo reenvio pelos rios do sangue, até ao palácio do coração, até ao trono da razão; e graças às condutas sinuosas do corpo humano, os nervos mais fortes e as mais pequenas veias recebem de mim esse simples necessário que o faz viver…. E eu posso provar-vos, rigorosamente, que vos transmito toda a farinha e para mim guardo o farelo.”

E Menénio vá de desmontar a alegoria:

«- O Senado de Roma é este excelente ventre e vós sois os membros revoltados. Porque, examinados os seus conselhos e as suas medidas, os negócios devidamente digeridos no interesse da coisa pública, reconhecereis que os benefícios gerais que recolheis procedem e vêm dele, e não de vós ……»

Entra Caio Márcio:

« - … De que se trata, vis facciosos, que, à força de coçardes a triste vaidade que vos arranha, fizestes de vós uns sarnosos?

Primeiro Cidadão: Nós nunca recebemos de vós uma palavra boa.

Marcius: Aquele que te concedesse uma palavra boa seria um insípido bajulador. De que precisais, insurrectos, a quem nem a paz nem a guerra convêm? Uma, assusta-vos, a outra torna-vos insolentes. Aquele que conta convosco, só encontra, chegado o momento, em vez de leões, lebres, em vez de raposas, gansos… Não, vós não sois mais confiáveis do que um tição ardente em cima de gelo, do que a saraiva  ao sol. A vossa virtude consiste em exaltar aquele que os erros perderam e a maldizer a justiça que o abateu. Quem merece a glória merece o vosso ódio; e as vossas afeições são os apetites dum doente que deseja sobretudo aquilo que pode aumentar o seu mal. Apoiar-se sobre o vosso favor, é nadar com barbatanas de chumbo e querer abater um carvalho com uma cana. Confiar em vós? Vale mais enforcar-vos. De minuto a minuto mudais de ideias: Achais nobre quem odiastes há momentos, infame, aquele a quem coroáveis. O que é que há? Porquê, nos diversos bairros da cidade, gritais assim contra o nobre Senado que, sob a égide dos Deuses, nos mantém em respeito e impede que vos devoreis uns aos outros?

Um general romano conquistador mas demasiado duro com a plebe e por vingança contra o ódio desta que o baniu, se alia ao inimigo que conquistara – os Volscos, da cidade Corioli – para cercar Roma. A mãe de Coriolano fá-lo-á desistir do ataque a Roma, condenando o filho a ser assassinado pelos da cidade inimiga assim atraiçoados.

Trata-se assim, duma peça de teatro política, que, nos breves excertos transcritos, foca o problema que a cada passo o mundo vive, de lutas entre governantes e governados. O retrato que cada um traça do outro – o povo focando o desprezo e indiferença do chefe pelos problemas do povo, o chefe apontando a versatilidade e cobardia do povo facilmente “troca-tintas”… onde é que já se viu e ouviu isto?

Z

Mas o Ricardo faz anos hoje, uma caminhada já longa e bem vivida, em busca daquilo que todos buscam – uma felicidade lúcida – aquela que lhe desejam os que o amam e são muitos. É dele o bonito poema “Elevador da Glória”, que tenho na margem do meu blog, prova de uma sensibilidade que tenta camuflar sob uma prestação desconcertante, de brincadeira e seriedade, a quem a vida afinal albergou nem sempre com o carinho que se sonha. Que vai participando na ajuda aos Sem Abrigo, como forma de marcar uma presença de generosidade e atenção num mundo  desatento. Foi a ele que fiz o meu primeiro “soneto”,  há 54 anos, em Aveiro, cujo último terceto em melódica prosa, expressão do encantamento em que vivi, terminava assim:

E nos teus olhos brilhasse a confiança
E eu visse sempre na boquita amada
O teu sorriso lindo de criança”.

E foi por isso que glosei o último verso em novo “soneto” de sentimento, que escrevi no livro publicado em 2010 – “O maravilhoso livro das “Lendas de Santos de Eça de Queirós” - que lhe ofereci.

RICARDO:                                                

«     "O teu sorriso lindo de criança”
T      Tantas vezes mudado em crispação
T      Talvez mantenha ainda a confiança       
S      Se desejares manter a ilusão.

        Quando em sorrisos consegues transformar     
  Vivências tristes que o mundo desamou

É      És como os santos das lendas de encantar        
  Que uma dura caminhada transformou.

        
a       Mas mais santo ainda tu serias
S        Se as tais lendas de Eça fosses ler                                   
E        E que este livro sintetiza com amor.                 

o        Em tão dura empreitada erguer-te-ias 
  
           Ao patamar de um saber maior                              
    Que todo o homem aspira a vir a ter.»                  

 

Muitos anos de uma vida sempre feliz para o Ricardo, nas empreitadas que ele próprio escolherá, avesso, hélas!,  a empreitadas impostas.            
   
              



 

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Nem o cabelo escapa


Num mundo de manigância
Até o cabelo tem importância.
É o caso do sujeito
Que quis casar a preceito,
Embora já com idade
Para opção de mais qualidade.
Mas só quando se viu pelado percebeu

A vil falcatrua em que se metia,
E é claro que do casamento desistiu,
Segundo La Fontaine escreveu
Sem qualquer fantasia:

«O homem de meia idade e as suas duas conquistas»

«Um homem de meia idade,
Já a puxar para o grisalho,
Julgou chegado o momento,
De pensar em casamento.
Ele possuía bom metal sonante
E por conseguinte
Tinha por onde escolher.
Todas faziam por lhe agradar;
Daí que o nosso pinga-amor,
Desconfiado,
Não tivesse pressa em se definir.
Não é pequena coisa
Esta coisa de bem acertar.
Duas viúvas, finalmente,
Se impuseram no coração amante:
Uma de verde idade,
A outra um pouco mais madura,
Mas que reparava, com arte,
O que destruíra a mãe-natura.
As duas viúvas brincando,
Rindo, acarinhando,
Iam-no penteando,
A cabeça ajustando.
A cada momento a velha levava
Um cabelo preto que restava
A fim de que o amante ficasse
Mais à sua maneira.
A nova, por seu turno, retirava
Os pelos brancos
Para que com ela ele melhor emparelhasse.
Ambas fizeram de tal maneira
Que a cabeça grisalha
Ficou sem cabelos.
Duvidou da partida canalha.
“Dou-vos as minhas graças, senhoras,
Que tão bem me tosquiastes,
Ganhei mais do que perdi, eu vos garanto:
Porque não há mais casamento.
Aquela que eu escolhesse
Quereria que eu vivesse
Ao modo dela e não ao meu
Pelo Céu!
Não há cabeça calva que suporte tal decisão.
Estou-vos grato, senhoras, pela lição.»


Só La Fontaine, de facto, para nos fornecer
Uma tal história de esperteza
De gente que aproveita qualquer meio
Para comer até à custa do cabelo alheio.
Pela mesma época o nosso Vieira
Lançava uma diatribe estridente,
Contra os comedores dos próprios defuntos,
A o explicar,  em anáfora  estridente,
De frases paralelas em ironia insistente,
De trocadilho mais que penetrante,
No “Sermão de Santo António aos Peixes
Que “ainda o pobre defunto o não comeu a terra
E já o tem comido toda a terra.”
Hoje em dia nem é bom falar,
Nessa coisa do comer,
Tal o regabofe e os meios de espoliar
De alguns, que outros há
Que não têm comer nenhum,
Diz-se por cá.
Até só apetece adormecer,
Ou o “Columbo” ver,
Ou como diz Antero, “deixá-la ir, a vida”.
Mas só como piada despida
De fundamento,
Santíssimo Sacramento!