sábado, 29 de setembro de 2012

Maria Beatriz


E de repente,
A Maria Beatriz
Que nasceu tão pequenita,
É uma valente
Que hoje faz sete anos 
Com muita pinta!
Que na livraria,
Com o pai e a mãe,
Escolhe os seus livros
De gritos,
Indo às prateleiras
Dos seus interesses
Com delicadas maneiras!
Que anda na patinagem
Com toda a coragem   
Mas vejam só!
Prefere levar
Para o recreio
As barbies e as pollys
Do seu maneio.
E é boa aluna,
Sem quase
Darmos por isso!
Lê rapidamente
E com fluência,
As frases das histórias
Da sua ciência,
Às vezes com a mãe
Ao desafio,
Que, sem fastio,
Alterna com Beatriz
Na leitura dos diálogos
Das personagens,
Sem muitas paragens.
No cálculo dá boa conta  
Com o pai desafiando,
E assim vai sendo
Ano após ano,
Que o tempo passa a correr.
E qualquer dia, a Beatriz
Já nem se lembrará
De como era feliz
Quando ia para a escola
De sacola
Com a mamã ou o papá
E podia levar sem receio
As suas bonecas para brincar no recreio.
Parabéns, Beatriz
Pelos teus sete aninhos
Que sejas sempre feliz
Por róseos caminhos.



A tia Paula, entretanto,
Que viu os versos da avó,
Resolveu pôr o seu manto
E descer do seu trenó
Para em versos coloridos,
Senhora do seu nariz,
Dizer os votos sentidos
Com que fadar Beatriz.
Eis os versos tão bonitos
Feitos de uma penada
Enquanto a Amiga e a Avó
Iam tomando café
E a Tia, bica pingada:

«Olha, minha boneca,
Agora que a crise aperta,
A tia, que é muito esperta,
Foi à tabacaria.
Comprou um cartão bem pequeno,
Fez pequena poesia,
Para desejar aos sete anos
Da nossa bela princesa
Um ano refastelado
Com tudo “à sua mesa”.
E do céu caiam balões
E borboletas às cores,
Para alegrar tua vida
E dela nascerem flores.»
 
P.S. Para que fique registado
E para sempre lembrado
Nos anais da sua história
Feita de magia e glória,
Um dente da Beatriz
- Segundo, em ordem numérica -
Incisivo inferior,
Caiu ontem na escola
Com toda a crueza

Mas muito primor,
E foi fazer companhia
Ao primeiro, num saquinho,
Onde dizem que o ratinho
Irá espreitar 
E colocar
Mais um presentinho:
Precisamente na véspera

Da data feliz
Dos anos da Beatriz!


 
 

 

“Isto já está muito vazio”


Foi a minha mãe que, assumindo o actual ar plangente das suas atribulações existenciais, confinadas a recordações que, no meu ponto de vista objectivo, a tornam antes muito feliz, ao evocar tão proximamente pessoas, rezas, canções, episódios, graças, sabores do seu passado jovem, como filme inesquecível de sedução a cada passo revivido, com emoção e encanto, se saiu com o dito em título, creio mais que para a contestarmos, gabando-lhe a memória de privilégio e a vida regalada, entre a cama e os percursos próximos, na sua cadeira de rodas, com a presença constante das filhas e genro em torno dela, e, menos constante, da família que nos visita, ao acaso dos afazeres, mas trazendo o bulício das suas idades mais jovens.

Isto está muito vazio”. Percebemos que se tratava da sua memória, por vezes distorcida, na confusão dos cenários, mas intimamente aplicámos a asserção à realidade das nossas bolsas actuais, verificando que a rapidez do raciocínio centenário, que nos deixa boquiabertos, pois nunca se fica sem resposta, tem uma actualidade quase profética, o “quase” subentendendo as honoráveis excepções a esse estado de atonia nacional.

Eis mais umas quadras do seu saber armazenado, proferidas ao sabor das músicas de ocasião, a da “Margarida vai à fonte”, “ Ó rio das águas claras”, “O meu menino é d’oiro”, a do “Treze de Maio” ganhando em fixação:
« - Menina que tanto sabe
Responda a esta pergunta:
Que ciência tem o mar?
Quanta água se lhe junta?»

E a menina sabedora, tal “donzela Teodora” segundo expressão de Frei Jorge, tio da sagaz Maria garrettiana, vá de responder com precisão:
«- A ciência que o mar tem
Não é coisa de pasmar:
Não há rio nem regato
Que ao mar não vá parar.»

            Por vezes são os costumes dos rapazes atiradiços que vêm à baila ao seu pensamento em ebulição, a desviar-se do receio obstinado da partida, pelas lembranças alegres da vida vivida:
Santa Maria da Serra
Santa Marta do Lorvão,
Onde eu me ia assentar
Co’ as meninas ao serão.

            E a malícia e a esperteza populares brotando no madrigal que a sua sensibilidade fixou, nos arcanos de uma memória a caminho dos 106 anos, que ainda sorri no prazer do dito picante:
Da minha janela à tua
É o salto duma cobra.
Quem me dera já chamar
À tua mãe minha sogra.

 Se fores domingo à missa
Fica em sítio que te eu veja
Não faças andar meus olhos
Aos saltinhos pela igreja.

Mas também a sátira se manifesta nos versos com que a minha mãe preenche infindavelmente o seu vazio na actividade física, reduzida que está à vida evocativa ou à magra relação social, rapidamente fatigada com o espectáculo televisivo, conquanto por vezes lhe ouça os noticiários e as missas dominicais:
À minha porta está lama,
À tua fica o lameiro.
Quando falares dos outros,
Olha para ti primeiro.

            Finalmente, a religiosidade, a ternura, a tristeza, fazem-na mergulhar em versos reveladores de estados de espírito que lhe denunciam o gosto por esta vida, que o excesso de idade lhe parece fazer galopar para o seu termo:

A Donzela é toda bela
A mais santa em seu primor,
Desde a hora em que Ela fora

Virgem mãe do Salvador.

 Calvário tem cinco fontes
Todas cinco a correr.
Quando os anjinhos têm sede
Todos eles lá vão beber.

 É de noite, é de noite.
Quer seja noite, quer não
Para mim sempre é de noite~
Dentro do meu coração.

Quem me aqui ouvir cantar
Cuidará, e tem razão,
Cuidará que eu ando alegre.
Sabe Deus, meu coração!

            O Artur faz anos hoje, tio da Maria Beatriz, que também faz, com seis vezes mais anos do que a sobrinha, festejada no texto acima pela tia e a avó. Pensei que, por ser mais velho, o Artur não tinha direito à brincadeira dos versinhos da ternura familiar, na respeitabilidade que assume agora, ele que já teve idêntica graciosidade e determinação dos meninos pequenos e que revivemos nos seus dois filhos.

Mas associo-o a este texto sobre a avó, para os parabéns da nossa ternura pela data, e os votos de uma vida como a que tem hoje, de responsabilidade, amor e encantamento, na beleza do seu quadro familiar, e sempre afastado do negrume escandaloso implícito na afirmação da avó de que “Isto está muito vazio”.

Uma vida cheia de graça para o Artur, como um metafórico “mar” onde pararão os “rios e regatos” límpidos, da expressão dos versos da avó.

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Só faltava a Purificação


Hoje a dona do café veio perguntar-nos radiante, julgo que pelo prestígio que, no seu foro íntimo, o seu café passaria a ter, após a auspiciosa presença que tomou a sua bica ao balcão, na pressa dos seus afazeres públicos:

- Sabem quem acabou de sair daqui?

Não reparáramos, entretidas que estávamos a dar conta dos caprichos meteorológicos, que nos fizeram abandonar a esplanada, e logo ela explicou que se  tratava de Cândida Almeida, a procuradora-geral Adjunta, que todas nós escutáramos embevecidamente há dias, quando declarou alto e bom som em Castelo de Vide que não havia corrupção em Portugal, donde se depreendia que era tudo fofoca.

Eu e a minha amiga até nos tínhamos penitenciado das nossas fofocas várias vezes acusadoras dos distúrbios das vigarices nacionais à medida que os media os vão propalando, com extraordinária dimensão e sem poupar ninguém, sobretudo aqueles a quem a vida mais promoveu, e que a nossa mesquinha inveja mais deseja eliminar.   

- Por isso ela se chama Cândida, esclareceu a minha amiga com compostura.

- Só falta da Purificação, largou a minha filha que veio à sua bica pingada, antes de partir para as aulas da tarde.

- Oliveira – acrescentou a minha amiga, na seriedade dos seus cursos acidentais de rua, com livrinhos esclarecedores, fornecidos pelas Testemunhas de Jeová.

            Mas eu defendi Cândida, considerando tratar-se a sua expressão de uma visão optimista, embora sem o cariz irónico do Candide de Voltaire, e mais do foro humanitário do nosso santo Padre Américo, para quem o lema “Não há rapazes maus” era ponto assente, como o da nossa Cândida Almeida, apesar de a minha amiga contestar que a rapaziada do Padre Américo pertencia à rua, não se tratava dos referidos no discurso televisionado da nossa Cândida.

            Fosse como fosse, o que nos tornou mesmo felizes foi a satisfação da nossa simpática dona do café, que vê na presença de Cândida um furo para o seu negócio em baixa. Eu candidamente espero que assim seja, mas a minha amiga tem a mania de me tratar por madre Teresa de Calcutá quando eu revelo certas ingenuidades menos comuns, e assim o disse hoje. Quando se fala de confiança logo vem o mais sabedor falar de utopia!

 Mundo muito mal feito, Marquês!”, diria Afonso da Maia ao ser embaraçadamente surpreendido nas suas caridades (Cap. X de “Os Maias”).  É por isso que não se me dá que Cândida Almeida tenha dito o que disse.  Puro acto de caridade ou de bondade, como o do nobre avô de Carlos da Maia, e não embarque em submissa navegação nas nossas procelas nacionais.

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

A menina sem papá


O homem jovem apareceu com a filhita, separados um do outro, entraram no café e vieram para a esplanada, a criança triste e bem comportadinha, o homem para beber o seu café. Mudos, distantes, de caras voltadas, pois nem sequer em frente-a-frente amigável mas cada um no lado contíguo, a criança magrita provavelmente engolindo a sua tristeza, de bracinhos pendentes e olhos perdidos solitariamente. O homem jovem telefonou em voz baixa pelo telemóvel, pagou a bica. Não houve um olhar trocado, uma palavra dita, ergueram-se, foram-se embora, separados, ambos magros, os passinhos da criança mais rápidos, para acompanhar os do pai que, naturalmente, não lhe agarrou na mão.

A minha amiga, que me tinha feito mudo sinal para reparar no quadro, apressou-se a explicar: a criança era sua vizinha recente, tinham chegado havia pouco ao prédio, uma família composta de bisavó, bisavô, avó, extremamente gorda, para subir pesadamente os três andares, a tia, a mãe - três mulheres divorciadas - a menina magra e uma irmã de berço. O homem jovem, sério e distante, estava separado da mãe da criança. A bisavó tinha morrido, a menina chorara convulsivamente ao ser informada, o pai fora buscá-la para a distrair.

Um quadro aterrador, de uma criança que não ama o pai, pois chora sempre que este a vai buscar, desamor talvez feito de medo, pois que o progenitor não tenta encurtar a distância entre ambos, jamais debruçado sobre a filha, nem mesmo na circunstância presente da tragédia vivida da morte da bisavó.

- Há os casos em que as crianças não querem ir com o pai.

A minha amiga recordou a filha de uma sua amiga, obrigada pelo Tribunal aos fins de semana e às férias com o pai, que ela recusara chorando e argumentando em plena sessão do tribunal, contra uma decisão judicial que ela repelia, centrando os seus afectos filiais exclusivamente na mãe. Lembrei que quando isso se passara, há muitos anos já, em que a minha amiga servira de testemunha de defesa, eu condenara a filha desamorosa e a mãe, que provavelmente a instigara nesse sentido. E contara do caso seu conhecido da mãe que igualmente se separara em desavença, mas sempre respeitara o direito dos filhos ao amor paterno.

- Pois ela tem feito um percurso muito bem feito. Foi excelente aluna e tem um excelente trabalho como como técnica de radioterapia. Apesar da falta do pai, que ela sempre detestou.

E voltámos a referir a criança que se sentara à nossa frente na esplanada, ente indefeso contra a violência da presença muda do pai ao seu lado, sem sequer uma mão estendida para a criaturinha a quem dera o ser.

E arrepiámo-nos, ante os maus tratos sofridos por muitos órfãos em todos os tempos, coisa que nos habituáramos a reconhecer já na infância, nas gatas borralheiras e brancas de neve e tantas outras figuras das histórias de encantar e continuáramos a reviver nas Jane Eyres da adolescência, de madrastas ásperas e injustas, o que couraçara as enteadas para um sentido de responsabilidade e de luta pela vida, como neste último caso, ou no da Margarida de Júlio Dinis, no das histórias de encantar as princesas sendo favorecidas pela bênção das fadas madrinhas salvadoras.

Mas na sociedade ocidental imperam as separações entre os casais, o que traz como consequência as situações sempre injustas e mesmo trágicas das divisões dos filhos, reclamados pelos respectivos progenitores, frequentes vezes usando de vis manobras de chantagem material na recusa de participação financeira na educação dos filhos, mau grado as decisões judiciais. O filme “Kramer contra Kramer”, obra prima do cinema americano, explora magistralmente o assunto, num amor feito de cedência, opondo ao egoísmo a comovida opção materna final pelo bem-estar do filho, como exemplo de grande beleza moral, embora, talvez, pouco real, num mundo de tropelia.

Retomámos o optimismo recordando os casos conhecidos dos filhos de pais separados em amizade, ou, pelo menos, tentando salvar o equilíbrio emocional dos filhos com as dádivas das suas generosidades compensadoras da ausência, outras vezes empenhando-se a sério no seu crescimento espiritual.

A vida segue, depressa chegará a vez dos filhos de seguirem as suas opções de vida, as amarras cada vez mais soltas, num mundo cada vez menos comedido.

Mas a figurinha frágil daquela menina triste, ao lado dum pai tão indiferente, permanece como um nó, no nosso espanto acabrunhado.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

A hipocrisia de V. P. V.


Costumo gostar dos textos de Vasco Pulido Valente, porque neles reconheço a capacidade de análise histórica das situações descritas além de uma certa isenção crítica, que sempre atribuí a hombridade intelectual, apesar do tom verrinoso de que os reveste.

Não foi assim o de Domingo, 2 de Setembro – “A hipocrisia da necessidade” – em que, de forma tão radical quanto reveladora de ignorância e de parti pris contra o sentido da colonização portuguesa, destrói o significado dos descobrimentos e seus heróis como glória portuguesa ímpar, aviltando toda a acção ultramarina, em inesperadas afirmações de ódio: “O império português de África foi, desde o princípio, um monumento de incúria, de miséria, de exploração e guerra. Nada que nos permitisse o mais leve orgulho e de que não deveríamos falar, sem alguma vergonha e humildade.”

Não, nada de verdadeiramente gigantesco se criou nos territórios ultramarinos, apesar de Cahora Bassa, nada de semelhante ao que se fez nos Estados Unidos, Austrália, países da América latina, África do Sul… V. P. V. sabe da dimensão do seu rectângulo, não poderia exigir que tivéssemos nas colónias o desenvolvimento que os países autónomos que se iniciaram pela conquista e até destruição das riquezas dos povos aborígenes, e seguiram independentes e ricos, com os conquistadores brancos no comando. As colónias portuguesas serviram de manjedoira ao povo do rectângulo, e se mais não fizeram foi porque sempre se depararam aos empresários ultramarinos inúmeros obstáculos para a concretização dos seus empreendimentos. Mas apesar de tudo, parece destituída de bom senso a afirmação simplista de que a África foi monumento de incúria, miséria, exploração e guerra. Só quem a não conheceu poderá ser assim radical, esquecendo as guerras intestinas nos países de sucesso e as suas explorações contadas na literatura americana do norte e do sul. Miséria e incúria chamar-lhe-á hoje se visitar as terras onde, no tempo dos portugueses, não havia fome, como existe hoje e muita obra civilizacional se construiu.

Quanto à troça que faz sobre a “descolonização exemplar” com que os seus fautores tentaram esconder o abandono e a derrota, apesar de tudo admiro este rectângulo e as suas gentes, desprezadas na pena de V. P. V., mas que tant bien que mal foram estendendo os braços aos ultramarinos que se fixaram aqui, abrindo concursos para colocação de tantos de cá e de lá.

A crise económica faz que, a troco das batatinhas, verguemos o dorso aos governantes dessas ex-colónias, para o envio dos nossos deserdados actuais de cá, o que Pulido Valente agradece. Mas “o que não se compreende nem se agradece, é a retórica do “engrandecimento de Portugal”, com que a hipocrisia doméstica resolveu cobrir uma situação de necessidade e falência. Portugal não precisa de palavras. Precisa de realismo e modéstia.”

Somos, de facto palavrosos e não só na exaltação pátria, com bastas excepções a esse dado. Vasco Pulido Valente aponta a hipocrisia doméstica da senda de reconstrução do espaçozinho rectangular, elevando patrioticamente o bom nome de Portugal, sempre com recurso ao exterior, para compor o seu interior.

Mas Vasco Pulido Valente, que despreza o seu país e dum modo geral os seus conterrâneos, manifesta a sua própria hipocrisia, fingindo uma bondade para com os negros que não faz parte dos seus talentos, reconhecendo que foram por nós tratados com incúria, miséria, exploração e guerra, sem provavelmente jamais ter posto os pés nas terras das navegações de outrora, para verificar “in loco” as ditas incúrias, misérias, etc., etc.. Tal como muitos outros dos capitães de abril, que também nunca puseram.

Completo estas observações com um texto do meu livro “Anuário – Memórias Soltas” (Editorial Minerva 1999) - «Colonialismo em parti pris» revelador de que outros ilustres que eu admiro, também jogaram com os seus saberes “à vol d’oiseau” para desfazer insensatamente no trabalho feito pelos portugueses nesse ultramar que tanto os deprimiu.

«O “Sexto Dia” de “A CRIAÇÃO DO MUNDO” de Miguel Torga:

«Um arrumar da casa, um sintetizar de momentos vividos arranchados de argumentação crítica, num verbo de uma precisão e uma limpidez inimitáveis.

Um Torga admirável e sempre admirado, na sua prosa e nos seus versos, rasgando os horizontes de um humanismo lúcido e desencantado, no seu rigor implacável.

O maior vulto presente das letras pátrias, sem dúvida. Sincero, agreste como as suas fragas, livre, altivo e acutilante como as águias que nelas poisam, novo Orfeu, tornando estático o Mundo, ante a essência divina do seu lirismo fluido e rico.

E todavia, embora previsto o comentário negativo sobre a colonização portuguesa em África, parece-nos demasiado apressada e capciosa uma tal visão maniqueísta, feita “exprès” para a sua síntese ideológica, que da vivência africana se limitou à viagem aérea de antemão artilhada em função de uma atitude crítica livresca e definitiva, escamoteando os condicionalismos que nela imperaram.

Assim, do povo que, embora limitado nos homens, construiu nações alargando os espaços da sua pátria, ignorou o esforço épico, pervertendo-lhe o sentido, e apenas empolando a trágica condição dos negros marginalizados, indiferente ao conceito de que, sem o branco, jamais o negro teria saído da sua condição pré-histórica, nem tão cedo teria ascendido à conscientização que gradualmente iria obtendo.

Na colonização só pôde ver segregação e desequilíbrio, ignorando o trabalho do branco no Ultramar, cavando, ensinando, construindo, explorado também na sua posição de pequeno burguês trabalhador, por uma pátria sempre mesquinha com os seus filhos.

Da sua viagem colheu apenas a imagem dos prédios da cidade branca, destoando das palhotas suburbanas, para logo concluir da miséria, exploração e servilismo do negro dominado. Referiu os baluartes do poder - a fortaleza, os quartéis, as esquadras de polícia - e os da missionação – os templos da fé.

Ignorou as escolas, as universidades, as aulas nocturnas para brancos e pretos trabalhadores, omitiu o paralelo com o universo português metropolitano, igualmente segregacionista e desequilibrado, ou até mesmo o paralelo com a situação vilipendiosa do emigrante português em terras de cultura e de maior civilização, omitiu casos – escassos embora – de formação universitária de naturais africanos, unicamente interessado em sublinhar o que se não fez em favor da valorização cultural do homem negro.

Ignorou o esforço heróico do povo colonizador, que mau grado a desproporção numérica e as contingências do seu posicionamento subalterno em relação a uma Metrópole sempre ávida e sempre madrasta, e da idiossincrasia do povo negro, lento e insubmisso, foi construindo e desenvolvendo, conquanto muito menos expressivamente do que a vizinha África do Sul, poderosa e autónoma-.

A colonização portuguesa assumiria assim o carácter hediondo do tráfico negreiro do Brasil de outrora.

Escrito já depois da Revolução de Abril, o discurso sobre tal colonização, faccioso e redutor, bem poderia ter merecido um comentário menos orientado em função de uma ideologia falaz, que o mundo inteiro aceita hipocritamente, conhecendo embora quanto são falsos e traiçoeiros os juízos humanos que defendem a terra para os seus naturais, indiferentes às consequências bem visíveis dessas descolonizações apressadas que, abandonando os naturais africanos ao primarismo dos seus instintos, mergulharam as suas terras na fome, agora real, e nas convulsões internas tribalistas, agora sim, verdadeiramente racistas e criminosas.

O “Sexto Dia de «A CRIAÇÂO DO MUNDO»:

Mais uma obra admirável, no seu discurso perfeito, mas que nos mostra igualmente quão limitados são os juízos humanos, quando reduzidos  à dimensão subjectiva ou tendenciosa de quem os produz.»

Dois vultos das letras estranhamente irmanados em míseros conceitos similares a respeito dum mundo vilipendiosamente entendido.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Repetição


A Paula passou cá por casa, de passagem para a manif. Iria buscar a Binha para virem apanhar o comboio em S. Pedro. Lembrei a única manif. da minha vida, em que fui com a minha colega Alice, de ideais políticos opostos mas de idêntico equilíbrio e humor nos conceitos existenciais, apanhar o comboio em S. Pedro, para o Ministério da Educação, numa expressão do nosso repúdio pelas políticas educativas, mas desandámos antes em direcção à Baixa,acabando na pastelaria Central a comer marinos, uns bolinhos fofos da Central que o meu amigo Dr. Juiz Brites Ribas me levara a conhecer, anos antes, nas longas passeatas que demos na Lisboa dos seus velhos amores, tendo-nos conhecido numa bicha em volta da Fil, naquele ano de 75, onde íamos receber o vencimento moçambicano da altura, e onde trocáramos evocações, ficando ele agradado por ter encontrado em mim a faceciosa Regina de Sousa da Página da Mulher do Jornal Notícias de Lourenço Marques.

Também a minha filha e colegas, embora inicialmente aliadas ao grupo recalcitrante, acabariam no Corte Inglês a admirar as montras, deixando aos novos o trabalho da reclamação que o ideal democrático estabeleceu por cá e de que todos colhemos o usufruto, com os aumentos que tivemos nos nossos vencimentos, que os governantes ordenavam para nos calar as bocas ambiciosas, encobrindo os seus próprios jogos económicos, à custa de empréstimos sucessivos que a banca europeia fornecia e de que agora exige o pagamento que, naturalmente, não nos convém fazer, habituados que estamos à sedução de uma falsa abastança de que somos obrigados a prescindir.

E a Paula foi armada de uma rede de caçar borboletas, aonde juntou os textos e frases da sua reclamação. Estivera com o Ricardo, que escolhera a praia do seu comodismo, mas que em vinte minutos compusera um texto de protesto para a rede da irmã, que intitulara os seus textos de “O VAZIO”. Eis os textos, na sua sequência temporal:


“Muito maior açougue é o de cá, muito mais se comem os brancos.”

(Padre António Vieira, séc. XVII, “Sermão de Santo António aos Peixes”, cap. IV)

 
“Se me lembro, Élia, tiveste

De belos dentes a posse:

Numa tosse dois se foram,

Foram-se dois noutra tosse.

 
Segura, noites e dias,

Podes tossir a fartar;

Podes, que tosse terceira

Já não tem que te levar. “

Bocage (séc. XVIII)
 

“A única ocupação mesmo dos ministérios era esta - «cobrar o imposto» e «fazer o empréstimo». E assim havia de continuar…

(…) desse modo o país ia alegremente e lindamente para a bancarrota.

- Num galopezinho muito seguro e muito a direito… Ah, sobre isso ninguém tem ilusões… Nem os próprios ministros da fazenda! A bancarrota é inevitável; é como quem faz uma soma…”

(Eça, séc. XIX, “Os Maias, cap. VI)


“Eles comem tudo e não deixam nada…”

(Zeca, séc. XX)


 “A morte saiu à rua num dia assim …só olho por olho e dente por dente vale… dente por dente assim, que um dia rirá melhor quem rirá por fim…”

(Zeca, séc. XX)


 “E enquanto eles andam para trás e para a frente, para a esquerda e para a direita, nós não passamos do mesmo sítio.”

(Manuel, in Felizmente há Luar, de Luís de Sttau Monteiro, séc XX)

 
“Era uma vez um rei que fez promessa…

Era uma vez uma gente que construiu…

Era uma vez…”
(José Saramago, Memorial do convento, séc. XX)

 

Por um franguinho sem penas

Tive muito que penar.

Arranquei-as uma a uma

Vejam onde fui parar!

Veio o tipo da finança,

Queria o meu lucro cobrar,

Não se pode encher a pança

Sem outros alimentar.

A seguir veio o primeiro,

Que se diz ser rato velho.

As penas colou por inteiro,

Tornou-se o frango em coelho.

Proibiu-me que o trincasse,

Como se de sacro bicho se tratasse.

Roubei uma perna, fugi,

E vim comê-la p’r'aqui.

Ricardo Lacerda (em dia de Manif, século XXI)

 
Quanto ao meu filho João, foi com um amigo no cortejo das reclamações, com a compostura do seu descontentamento.

Pobres destes nossos filhos e pobres dos filhos deles!

Estamos no século XXI, mas não independentes, como o fomos, aparentemente, por bula papal a partir de 1143, com um interregno de sessenta anos pelo meio, que homens patriotas desfizeram. Vivemos hoje e viveremos na dependura , vae victis!, condenados às marchas dos nossos contentamentos e também dos nossos descontentamentos. As marchas dão vazão às nossas alegrias e às nossas raivas. Os caminhos dos media fazem o resto. Mais na sombra, sensíveis unicamente ao eu e ao tu, insensíveis à palavra pátria e à ordem para a respeitar, em qualquer nação que se preze. Vae victis!

“Porque não perguntam a Evans?”


Foi a propósito do meu texto sobre a peça “Júlio César” de Shakespeare e o filme de Mankiewicz e as minhas conclusões sobre a morte do nosso César, com os ratos a abandonar o porão, que a minha amiga falou, uma vez mais, da pergunta de que se lembra sempre que assiste às entrevistas dos jornalistas aos entrevistados:

- A televisão deu várias imagens de entrevistas com a Manuela Ferreira Leite, onde ela apontou todos os defeitos da actual política governativa. E não houve um jornalista que lhe fizesse a pergunta: “A senhora, se fosse agora Primeira Ministra, perante a situação do país, como é que fazia?”

Eu, que também a ouvi com revolta e indignação, confesso, pois sempre lhe reconheci elevação moral que esta inesperada performance de falha de solidariedade fez cair por terra, descobrindo eu nela ocultas mágoas contra um companheiro de partido que anteriormente a tinha vencido eleitoralmente, mágoas de outros seus apoiantes, e por tal, não solidários também, não direi com o ministro eleito, mas com o país que o pede, ressalvei a nobre isenção de alguns comentadores, entre os quais Lobo Xavier, que, reconhecendo a política suicidária do Primeiro Ministro, na rigidez de uma intransigência que parece séria mas se afigura de imatura, lembrou fábulas adequadas, como a dos ratos, seres primeiros a abandonar o porão do navio em naufrágio, e a do leão revoltado com os coices do burro à hora da morte, sem o António Costa perceber o porquê da revolta leonina, provavelmente por não ter complexos contra os burros nem os seus coices. Mas Pacheco Pereira acusou o toque e concordou com a questão da rataria em fuga, sem complexos, defendendo, com o brilhantismo da sua filosofia nem sempre proba, o ponto de vista dos ratos.

Também Paulo Portas faz um discurso em que os traços de rigor e elegância expositiva emparelham com a inteligência de argumentação e a nobreza de princípios de amor pátrio que alguns outros igualmente revelam, entre os quais Marcelo Rebelo de Sousa, de um rigor e rapidez de discernimento perfeitamente admiráveis, na precisão das suas respostas de decisiva lucidez a respeito das andanças de uns e outros, com optimismo, simplicidade e orientação, e não apenas para deslumbrar por meio de prosas quantas vezes enigmáticas de outros mais, para o impacto imediato da troça ou da admiração pelos respectivos saberes, sem desejo de conserto e só de substituição do Governo.

A minha amiga tem razão. Concorda com as manifestações do povo (eu também, desde que não deixem passar – mas passam – os slogans revolucionários da desordem, ao estilo chileno “o povo unido jamais será vencido” que copiámos e adaptámos à nossa condição de brandura inerme e que há 38 anos nos ferem os tímpanos.

Mas ela tem razão: Era necessário saber como fariam os tais que só criticam para deslumbrar ou botar abaixo, varinas saracoteantes apregoando gritadamente o seu peixe, desinteressadas dos problemas que a pesca traz a quem a pratica.

Se, quem a pratica o fez mal, é preciso solidariedade para o corrigir. Por amor do bem comum. Como diz a minha amiga, “se têm uma solução, juntem-se todos para a solução.”

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Um filme à altura do dramaturgo


Falei à minha filha Paula no filme que me encheu as medidas, rodado no dia dos seus anos, no Canal Memória, e que fui vendo enquanto fazia o nosso bolo das comemorações para ela levar para a sua festa da família e amigos, numa continuidade de tradição desta casa onde ela e os seus irmãos viveram, o que me faz muito feliz por ela assumir generosamente e alegremente a pasta de uma continuidade de festejo e coesão familiares que as contingências da idade e dos tempos mal me permitem agora aflorar.

Uma grande mulher, a minha filha, com o seu ar menineiro, sem complexos de uma gordura activa, sempre pronta a ajudar e a rir, e a escrever, até mesmo as actas das suas reuniões na escola, de grande subtileza nas suas ironias dos textos que produz com arte, ao acaso das suas vivências, deixando prever que um dia, quando, igualmente reformada – “O tempus… Velox!” – porá em blogue a sua participação nos “O mores!” das catilinárias de todos os tempos, o que a ajudará a ultrapassar a inactividade profissional dessa altura, após uma vida de dedicação à causa da docência, atravessando as sucessivas enxurradas governativas na reconstrução de uma juventude que se deseja activa e hábil e feliz, num país de que se receia a extinção desse estatuto quase milenar.

“Júlio César”, eis o filme apresentado, soberbo filme sobre um soberbo drama de Shakespeare, que eu ainda não vira e só lera em tradução francesa, e onde reconheci as tiradas poderosas, de uma riqueza humanística e retórica inexcedível, de um Shakespeare inultrapassável em recriação de cenários e de personagens encontradas nas “Vidas Paralelas” de Plutarco (Alexandre / César), e que uma galeria de actores americanos geniais iria tão bem reproduzir. E neles se contaria um Marlon Brando (Marco António) ainda jovem, mas cujo discurso ao povo romano, após o assassínio de César, além de todo o seu papel caviloso, nos deixam siderados de admiração pela excelência do desempenho, tão jovem que era ainda.

Da Internet transcrevo a resenha informativa sobre o filme de Mankiewicz, dando conta acaloradamente, também, não só do contexto histórico e súmula da peça shakespeariana como do elenco do filme :

«Uma notável produção americana dos anos 50, com Joseph L. Mankiewicz a dar uma espantosa dimensão de thriller político à imortal peça de Shakespeare e a Marlon Brando um dos mais prodigiosos papéis da sua carreira.

Senhor absoluto dos destinos de Roma, Júlio César, foi vítima de um atentado no senado, em 44 A.C., chefiado por Cássio, general romano, e Marco Bruto, filho adotivo de César, com o apoio da aristocracia romana que há muito conspirava contra ele. Ao cair sob as punhaladas da traição em pleno senado, morria com ele um dos períodos mais gloriosos da História de Roma. Após a morte de César, Marco António, agitou as massas populares de Roma contra os assassinos de César que iria derrotar dois anos depois na batalha de Filipos.

Quando em 1953 Joseph L. Mankiewicz se lançou na produção do memorável "Júlio César", dos dois lados do Atlântico levantaram-se vozes discordantes, duvidosas e mesmo indignadas, apesar da reputação de Mankiewicz o colocar na posição de um dos maiores realizadores do seu tempo. O resultado foi, no mínimo, surpreendente para quem acreditava que Mankiewicz jamais seria capaz de dar forma cinematográfica digna e respeitável à peça de Shakespeare, sem adulterar a obra original ou sem, fatalmente, cair na fastidiosa peça de teatro filmada. Mankiewicz com a mestria do seu cinema torneou o dilema. Nunca em cinema se tinha sido tão fiel ao "Júlio César" de Shakespeare e, ao mesmo tempo, nunca se tinha dado a uma obra de Shakespeare forma cinematográfica tão exata e fascinante. Mankiewicz filmou intencionalmente a preto e branco, contrariando as intenções da MGM, em décors de linhas simples e em tom de thriller político, servido por um portentoso trabalho de atores, nomeadamente, James Mason, John Gielgud, Louis Calhern e Marlon Brando, este último num dos momentos mais sublimes da sua arte e da sua carreira, calando de forma magistral as vozes mais céticas.»

Em jeito de felicitações e como presente de anos que ela apreciará, embora atrasado, não resisto a traduzir, para a Paula, alguns passos da peça de Shakespeare - da colecção francesa Garnier-Flammarion (com as peças Titus Andronicus, Jules César, Antoine et Cléopatre, Coriolan) - que mostram a estatura das personagens:

É na Cena I do Acto III que tem lugar o assassínio do arrogante César, após o grupo dos conjurados lhe ter pedido clemência para o banido “Publius Cimber”, e cuja recusa irá provocar o pretexto para o seu assassínio, com o conhecido “Tu quoque…?” dirigido pelo atraiçoado César ao nobre Brutus:

… «César: Eu poderia ficar comovido, se fosse como vós. Se fosse capaz de rezar para comover, comover-me-ia com orações. Mas eu sou constante como a estrela polar, que, pela fixidez e a imobilidade, não tem parelha no firmamento. Os céus são iluminados por numerosos clarões; todos são de chama e todos brilham; mas há um apenas que mantém o seu lugar. É assim com o mundo: é povoado de homens, e esses homens são todos de carne e de sangue, todos inteligentes; mas nesse número, não conheço senão um que permanece no seu lugar; e este homem sou eu. Darei uma ligeira prova até nisto: inflexível no envio de Cimber para o exílio, sou inflexível quanto a mantê-lo lá.

Cinna (avançando): Ó César!

César: Para trás! Queres provocar o Olimpo?

Décius (avançando): Ó grande César!

César: Brutus não se terá ajoelhado em vão?

Casca (avançando, com o punhal na mão): Braços, falai por mim! (Casca fere César no pescoço. César agarra-o pelo braço; é apunhalado por vários conjurados, e enfim por Marcus Brutus.)

César: Também tu, Brutus! Cai então, César! (Morre. Os senadores e o povo retiram-se em desordem).

Da Cena II do Acto III retiro ainda o discurso de Brutus aos cidadãos romanos, de clara elegância expositiva e definidora de um carácter nobre que o filme igualmente retrata, nas falas sérias e tristes do actor James Mason, não permitindo que o povo o leve em triunfo, sem escutar, antes, a oração fúnebre de Marco António, delegada neste pela generosidade e orgulho imprudentes de Brutus. O povo, rebanho dócil e inconstante, seduzido – como em todos os tempos - por discursos, troca em breve as suas preferências e arrebatamentos pelo esperto, sedutor e manhoso Marco António – Marlon Brando genial - cujo discurso se seguirá na mesma Cena III do Acto III, de uma facúndia plena do maquiavelismo de quem luta pelo poder, jogando com uma falsa aceitação inicial dos dizeres do honrado Brutus, e destacando-lhe a honorabilidade para matreiramente o ir apunhalando, desfazendo-lhe os argumentos que acusam César de ambicioso, com a apresentação de factos comprovativos do contrário, que provocam a mudança e a revolta caricata dos cidadãos.

Brutus: “Sede pacientes até ao fim… Romanos, compatriotas e amigos, ouvi-me na minha causa; e fazei silêncio, a fim de poderdes ouvir-me. Crede na minha honra, e tende fé nela, a fim de poderdes acreditar em mim. Censurai-me, na vossa sabedoria, fazei apelo à vossa razão a fim de melhor poderdes julgar-me. Se houver nesta assembleia algum amigo caro a César, a esse eu direi que Brutus não tinha por César menos amor do que ele. Se esse amigo perguntar então porque é que Brutus se ergueu contra César, eis a minha resposta: Não é que eu amasse menos César, mas amava mais Roma. Preferiríeis vós ver César vivo e morrer todos escravos ou ver César morto e viver todos livres? César amava-me e eu choro-o; ele foi afortunado, e eu alegro-me com isso; foi valente e admiro-o nisso; mas foi ambicioso e eu matei-o! Assim, pela sua amizade, lágrimas; pela sua fortuna, alegria; pela sua valentia, admiração e pela sua ambição, a morte! Qual é aqui o homem suficientemente grosseiro para não querer ser Romano? Se houver algum, que fale! Porque foi ele que eu ofendi. Qual é aqui o homem suficientemente vil para não querer amar a sua pátria? Se houver algum, que esse fale! Porque foi a ele que ofendi… Espero uma resposta.

Todos os cidadãos – Ninguém, Brutus, ninguém!

Brutus – Assim, eu não ofendi ninguém. Eu não fiz a César senão o que vós faríeis a Brutus. Os registos do Capitólio expõem os motivos da sua morte, sem atenuar os feitos pelos quais ele foi glorioso, nem agravar as ofensas pelas quais sofreu a morte.

Entram António e outros cidadãos trazendo o corpo de César.

Brutus - Eis o seu corpo que chega, trazido com luto por Marco António, Marco António que, sem ter tomado parte na morte de César, recolherá os benefícios desta morte, um lugar na república. E quem dentre vós não colherá? Uma última palavra, e retirar-me-ei: como matei o meu melhor amigo para bem de Roma, guardo o mesmo punhal para mim próprio, se aprouver ao meu país reclamar a minha morte.

Os CidadãosViva Brutus! Viva, viva Brutus!

Primeiro CidadãoLevemo-lo a sua casa em triunfo!

Segundo Cidadão – Demos-lhe uma estátua entre os seus antepassados.

Terceiro Cidadão – Que ele seja César!

Quarto Cidadão – O melhor de César será coroado em Brutus.

Primeiro Cidadão – Levemo-lo até sua casa com aclamações e vivas.

Brutus - Meus compatriotas…

Segundo CidadãoPaz! Silêncio! Brutus vai falar.

Primeiro Cidadão – Paz! Olá!

Brutus – Meus bons compatriotas, deixai-me partir só, e, em consideração por mim, ficai aqui com Marco António. Prestai honras ao corpo de César, e honras à arenga que, para glória de César, Marco António está autorizado a pronunciar com a nossa permissão. Rogo-vos, que ninguém parta senão eu, antes que Marco António tenha falado! (Sai)

Primeiro CidadãoOlá, ficai! Escutemos Marco António.

Terceiro CidadãoQue ele suba à tribuna pública! Escutá-lo-emos! Nobre António, subi. (António sobe à tribuna).

António -Em nome de Brutus, estou-vos obrigado.

Quarto Cidadão- Que diz ele de Brutus?

Terceiro Cidadão – Diz que em nome de Brutus ele reconhece-se obrigado a todos nós.

Quarto Cidadão -  Ele fará bem em não dizer mal de Brutus aqui.

Primeiro Cidadão – Este César era um tirano.

Terceiro Cidadão – Sim, isso é certo. Nós somos muito felizes por Roma se ter desembaraçado dele.

Segundo Cidadão – Silêncio! Escutemos o que António poderá dizer.

António – Generosos Romanos…

Os Cidadãos – Paz! Olá! Escutemo-lo.

António – Amigos, Romanos, compatriotas, escutai-me. Eu venho para enterrar César, não para o louvar. O mal que fazem os homens vive após eles; o bem é muitas vezes enterrado com os seus ossos: que seja o mesmo para César! O nobre Brutus disse que César era ambicioso: se assim fosse, seria um erro grave, e César expiou-o gravemente. Aqui, com a permissão de Brutus e dos outros (porque Brutus é um homem honorável, e eles são todos homens honoráveis) eu vim para falar no funeral de César. Ele era meu amigo fiel e justo; mas Brutus diz que ele era ambicioso, e Brutus é um homem honorável. Trouxe a Roma grande número de cativos, cujos resgates encheram os cofres públicos: foi isso o que pareceu ambicioso em César? Quando o pobre gemeu, César chorou: a ambição deveria ser de um mais rude tecido. Todavia Brutus diz que ele era ambicioso; e Brutus é um homem honorável. Todos vós vistes que nas Lupercales eu lhe apresentei por três vezes uma coroa real, que ele recusou três vezes: era isso ambição? Contudo Brutus afirma que ele era ambicioso; e seguramente é um homem honorável. Eu não falo para contestar o que declarou Brutus, mas estou aqui para dizer o que sei. Vós todos o amastes sempre, e não sem motivo; que motivo vos impede pois de o chorardes? Ó julgamento, tu fugiste dos brutos animais e os homens perderam a razão!... Desculpai-me: o meu coração está no caixão, ali, com César, e eu devo interromper-me até que ele tenha voltado para mim.

Primeiro Cidadão – Parece-me que há muita razão no que ele diz.

Segundo Cidadão – Se tu consideras bem a coisa, César foi tratado muito injustamente.

Terceiro CidadãoNão é verdade, meus senhores? Receio que venha um pior em seu lugar.

Quarto Cidadão: Reparastes nas suas palavras? Ele não quis  a coroa: portanto, não era ambicioso!

Primeiro cidadãoSe isso for provado, alguns pagá-lo-ão caro.

Segundo Cidadão (designando António) – Pobre alma! Os seus olhos estão vermelhos como lume, à força de chorarem.

Terceiro CidadãoNão há em Roma homem mais nobre do que António.

Quarto CidadãoAgora, atenção! Ele volta a falar.

AntónioOntem ainda, a palavra de César prevaleceria contra o universo; agora, ei-lo jazendo, não há um miserável que se digne prestar-lhe honras! Ó meus senhores! Se eu estivesse disposto a excitar os vossos corações e os vossos espíritos para a revolta e o furor, eu lesaria Brutus e Cassius. Não quero prejudicá-los; prefiro prejudicar o morto, prejudicar-vos a vós e a mim próprio, a prejudicar homens tão honoráveis. Mas eis um pergaminho com o selo de César; encontrei-o no seu gabinete; são as suas últimas vontades. Se o povo ouvisse só este testamento (perdão! Eu não tenho a intenção de o ler), todos acorreriam para beijar as feridas de César morto, para mergulhar os seus lenços no seu sangue sagrado, para implorar mesmo, como lembrança dele, um dos seus cabelos, que mencionariam, ao morrer, nos seus testamentos, e transmitiriam, como precioso legado, à sua posteridade!

Quarto Cidadão – Nós queremos ouvir o testamento: lede-o, Marco António.

Os Cidadãos – O testamento! o testamento! Queremos ouvir o testamento de César!

António –Tende paciência, caros amigos. Não devo lê-lo. Não convém que saibais quanto César vos amava. Não sois de pau nem de pedra, sois homens; e sendo homens, por pouco que ouçais o testamento de César, inflamar-vos-eis, enfurecer-vos-eis. Não é bom que saibais que sois seus herdeiros; porque se o soubésseis, oh! Que aconteceria? …………»

E os Cidadãos enfurecidos exigem a leitura do testamento de César, que este lerá a contragosto fictício, exigindo, teatralmente, que os Cidadãos façam círculo em torno do cadáver de César, lembrando insinuantemente as punhaladas dos amigos de César, Cassius, Casca, Brutus – “o anjo de César” – levando ao rubro o desejo de vingança e os gritos de cólera dos Cidadãos contra os Conspiradores.

Uma peça em cinco actos , que termina na batalha de Filipos, entre os republicanos e os homens do segundo triunvirato António, Octávio e Lépido, por estes ganha. Brutus far-se-á matar por um ex-escravo Straton, que lhe segura a espada sobre a qual se atira, mas ser-lhe-ão prestadas cinicamente as honras fúnebres por António e Octávio, numa eterna continuidade das sequências políticas, feitas de ambições e aparências de bons sentimentos.

            Foi, pois, sobre mais uma peça de extraordinária dimensão e agudeza de Shakespeare, que Joseph L. Mankiewicz construiu um tão extraordinário filme, de homens romanos de valor, que o Canal Memória passou, e que serviu, naquele dia, para mim, como forma felicitar a Paula, que o não viu mas talvez o veja um dia, outro da nossa glória de eventos - como o de há 38 anos, em que os restos dos bolos da sua festa – 8 de setembro –serviram para levar aos soldados portugueses, que se haviam apoderado do Rádio Clube de Moçambique, alimentados pelos milhares de outros portugueses que, em frente do edifício, não arredavam pé, até lhes ser dada a ordem em contrário.

Na verdade, como já escrevera Camões, (estância 33, C. IV, Lusíadas, episódio da batalha de Aljubarrota), “… também dos Portugueses /Alguns traidores houve algumas vezes.” Esses, os da ordem contrária, há 38 anos. E os seus seguidores. Mas não foram só alguns.

Também já não há Aljubarrotas que nos safem como pátria. Muito menos, Nun’Álvares da nossa independência. Mas mesmo que houvesse… Todo o país se ergueria em protesto contra este, César arrogante a merecer ser apeado.

Que se apeie, pois, César. Porque o que resta… é silêncio. Silêncio interrompido pelas profusas e inócuas manifestações dos protestos e do gáudio e pelos discursos cavilosos arreando em César. Até à consumação.