sexta-feira, 30 de março de 2012

Primeira década


O Bruno faz hoje dez anos e em vez do postal ilustrado, resolvi fazer-lhe uns toscos versinhos para juntar ao envelope.
A tia Paula, que não deixa os seus créditos por mãos alheias, fez também uns versinhos bem mais jeitosos, que postarei a seguir.
 Só tenho pena que os bonecos com que ela enfeitou as respectivas folhas A 4– e peço-lhe desculpa por não seguir as regras do A. O. que por dever de ofício ela tem que aplicar ( a velhice guarda os direitos da sua circunspecção ) – bonecos extraídos da Internet – balões, garotos espertos de braços abertos, ilhas povoadas por bonecada, bicicleta, o espumante com a rolha saltando, o arco-iris no céu, etc., - não apareçam no blogue:
Os dez anos do Brunito   
E os dez anos chegaram,
No dia trinta de março.
O Bruno cresceu, cresceu,
E as velas se apagaram
E o sol escureceu.
A caminhada para os onze
Vai seguir-se
Só durante 365 dias
Porque embora sendo bissexto
O ano 2012,
Fevereiro já passou
Com seus 29 dias
Os 366 dias
Sendo do ano anterior.
E o Brunito não vai rir-se
Porque este texto mal rima
Embora seja em verso,
Verso imperfeito e sem jeito,
Com Matemática pelo meio
E até Estudo do Meio,
E Português de permeio,
O que  nem é nada feio,
Porque eu sempre ouvi dizer,
Mesmo sem ser a brincar,
Que o saber
Nunca ocupa lugar.
Que Deus proteja o Brunito
Na sua vida escolar,
Para um curso vir a tirar
Que o ajude a viver
Como um cidadão honrado,
Sério e disciplinado.
Com muitos parabéns e beijinhos
Pelos seus dez aninhos,
Da bisavó Pureza
E dos avós Vitorino e Berta.

Da Tia Paula
Vou imitar a avó Berta
Que é sempre a mais esperta
Nisto do aniversário.
Faz uns postais bem bonitos
Com suas ideias de gritos
Que saem do imaginário.
Não me apetece pintar
E assim vou colocar
Uns desenhos numa folha.
As palavras a brincar
Enchem depois o ar
Que tapo com uma rolha.
E como as rolhas saltam
As palavras também voam:
Fica assim o papel
Colorido a observar
As coisas que dele saem
E o novo ano abrem –
- Uma dezena p’ró Bruno!
Não é ano taciturno,
Antes de muita alegria:
Que dez anos já é obra
E um balão de fantasia.




terça-feira, 27 de março de 2012

“É pecado mijar no adro porque na igreja quem quer “meija”


Tem estado constipada, a minha mãe, mas o médico acorreu a tempo e a tosse vai passando, embora deixe marcas com a falta de retenção urinária, felizmente protegida graças ao progresso facilitador, que fornece slips para todos os tamanhos. Estávamos na hora do almoço, a minha irmã assistia ao almoço da minha mãe, no escritório transformado em quarto, quando aparece junto de nós, que almoçávamos na cozinha. Perdida de riso. Quisemos saber porquê e logo que pôde contou da saída da minha mãe, a quem um acesso de tosse lembrou a sentença que faz o título do texto: “É pecado mijar no adro porque na igreja quem quer “meija”. O riso logo se comunicou a nós e fui fazê-la repetir o dito, ao que ela se prontificou, rindo, encantada com a sua graça, pela primeira vez citada.

Além de mais uma vez admirar a extraordinária memória da minha mãe, prestes a apagar o bolo dos seus 105 anos, admirei a sabedoria do nosso povo, feita de malícia, aplicando o conhecimento humanista aos seus costumes ancestrais, de gente pouco habituada aos resguardos inferiores. Realmente, a imagem das mulheres na igreja descaindo-se, a coberto do escuro, é bem significativa do desconhecimento de regras de higiene dos tempos em que nas cidades as lavagens eram lançadas à rua pelas janelas, precedidas do aviso “Água vai!” . Mas é igualmente expressiva de avaliação chocarreira da alma humana, no seu significado de “fazer pela calada, praticar vilezas a coberto, ou do anonimato ou de conluios com os da mesma seita”: «É pecado mijar no adro, que na igreja quem quer “meija”». Profundamente actual.

Mas é sobre a minha mãe tão ágil mentalmente, nas suas saídas inesperadas, ora alegre, ora chorosa, ora evocando os seus, ora perguntando se estão vivos, ora baralhando as suas lembranças, ora cantando, um pouco estropeadamente, as canções da sua vida, que quero recordar nestes dias de março, com a surpresa nunca esmorecida pela pessoa enérgica que foi e que é ainda, dando ordens, o imperativo sendo a forma verbal que mais utiliza no seu relacionamento diário, rainha no seu mundo mimado, como o foi na sua vivência de tão longa data.

Há dias, ouvi-lhe esta:

“Viva a Santa Madalena / Quando é nossa advogada. / Bendita e louvada seja/

Toda a Família Sagrada.”

“Bendito e louvado seja / S. Domingos de Gusmão. / Veio acudir ao mundo / Com seu rosário na mão.”

- Quem te ensinou isso?

- Foi a minha mãe. A gente cantava ao serão, a fiar maçarocas.

Mas também recorda uma canção que o seu irmão Américo levara de África, juntamente com muitos outros discos que escutavam na grafonola, comprada pelos três irmãos idos de África de férias, Carlos, Belmiro e Américo, em época de muita felicidade para a família, como sublinha em evocações várias. Mas a canção  foi incompleta e adulterada:

«… Ai, ceguinha, / Só tu és o meu pensar / Vem comigo, pobrezinha, / Ai que lá por seres ceguinha  / Tens aqui com quem brincar!»

«Desde então, todos os dias, / Ao chegar pela tardinha / Eu brincava com a ceguinha / Que mostrava timidez. / Fui logo para o pé dela / E no leito branco e frio / Nós brincávamos os três.»

E assim vai cantando e conversando com os seus, de sempre, que inclui os santos: Por exemplo esta canção, que trouxe lá dos recônditos das suas memórias religiosas:

«Prometi no dia do meu baptismo / A Jesus sempre, sempre adorar. / Meus padrinhos em meu nome falaram, / Hoje as promessas venho renovar! – Fiel, Sincero / Eu mesmo quero / A Jesus sempre, sempre adorar / Fiel, sincero, / Eu mesmo quero / A, a Jesus sempre, sempre adorar.»

Há dias falou em alguém a quem a família foi deixar num “curral”, para ali morrer. A minha mãe tem uma predilecção pelos termos fortes, mas notei que, sem o transmitir verbalmente, estava grata pelo facto de tão ruim destino não ter sido reservado a ela.

E lembro o dia em que a minha neta Ana veio visitá-la, com a mãe, e esta comentou que hoje já não se justificam os centros geriátricos, pois há a possibilidade de arranjar enfermeiras disponíveis para tomar conta dos idosos, na sua própria casa. Tinham visto a vivacidade da minha mãe, acharam que, se estivesse num lar nunca poderia sobreviver, nem com visitas diárias. A minha mãe é um produto, não só da sua força interior, mas do mimo de que é rodeada, com uma filha mais velha impecável e uma mais nova nem sempre paciente, mas que a faz reagir e reviver, feliz quando “pica”.

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Duas datas aniversariantes: 25 de fevereiro, a dos 26 anos da minha neta Ana, em que ela nos veio ver e falámos em centros para idosos, incompatíveis, a maior parte das vezes, com o ambiente familiar donde aqueles partiram, o que os torna extremamente infelizes, apesar das boas vontades de alguns empregados nesses lares e da inteligente organização de alguns. 10 de março, a data dos 26 anos da minha neta Catarina, um sábado em que, às seis e meia da manhã venho encontrar a minha mãe estatelada no chão junto à cama, mas coberta com mantas, que teve o cuidado de puxar para si. Com muita dificuldade, conseguimos deitá-la, apesar de se queixar do braço direito.  Ainda tomou o seu banho, quando a minha irmã chegou, almoçou, achámos que devia ter só magoado o braço. À tarde, chegaram a Catarina e o Luís, e este entendeu que o ombro estava inchado e chamou-se o 112. Vieram os bombeiros com a ambulância e no hospital de Cascais descobriram que tinha o colo do úmero partido.

 Pobrezita, há dois anos o fémur, agora o úmero. Não parou de falar, na sua maca, de repetir as perguntas, incansável, enquanto recebia o soro com a medicação para as dores. Tinha sede, tinha fome, a minha mãe nunca se habituou à resignação. “Porquê eu, na minha idade?” – protesta. E não valia a pena lembrar as pessoas mais novas que sofriam na mesma enfermaria dos cuidados de urgência. A minha mãe nasceu rainha, chegou a uma idade de privilégios que faz questão de reivindicar, surda a protestos.  

Duas noites depois: A minha irmã conseguira encontrar o invólucro receitado para imobilizar o braço, cabestrilho segundo aprendo, porque na noite do hospital só obtivera um mais flácido, que  não o prendia convenientemente. Noite para esquecer, com chamadas constantes, queixando-se de dores. Acabei por soçobrar, no sofá. Quando acordei, com nova chamada, dei com a minha mãe de cabestrilho desfeito, e um ar mais repousado. Como rato roendo paulatinamente o seu queijo, fora despregando as fitas presas por velcro adesivo, até que soltou o braço da manga onde fora enfiado.   De nada valeu a minha zanga. Todas as noites e dias se desprende e assume o mesmo ar de menina bem comportada que desconhece a maldade que fez.

Não sei se terá razão o médico que a veio ver e que acha que o braço já não vai colar. Numa  das recentes noites foi tal a força do seu desespero que não deixou ninguém dormir. Deitei-me ao seu lado, mas continuava a gritar por mim e por todos, em protestos de nenhuma mansidão. Várias vezes tapada, e reposto o velcro, acabei por desistir, deixando-a sozinha e voltando para o meu sofá, depois de a ter tapado e colocado móveis do lado esquerdo da cama. Mas ouvindo o reboliço de móveis a serem empurrados, corri ao quarto mas não fui a tempo. Ainda a vi cair, sobre o lado esquerdo. Chamado o meu filho João, conseguimos subi-la para a cama. Entretanto o João e o meu marido trouxeram a cama de grades que fora há muito arrumada, reconstituíram-na e a minha mãe voltou para as grades que tanto a enfureciam. Felizmente não ficou afectado o braço esquerdo.

Agora deu em variar, uma conversa repetitiva e sem lógica, parecendo não saber onde está, se já passou a Ponte e a Sobreira e o pinhal e se está na sua casa do Carregal. De princípio, eu negava e esclarecia onde estava. Decidi depois, ante a insistência das perguntas, concordar que estava no Carregal. Ficou encantada. Voltara a casa. Mas tanto a minha irmã como eu achamos que existe muito de farsa nesta conversa propositadamente tola da minha mãe. Porque ainda hoje, domingo, como tínhamos levado a cama de rodas para junto da televisão para ouvir a missa, como fazia aos domingos, adormeceu e, ao acordar ordenou que apagassem a televisão porque ninguém estava a ouvir. Uma frase perfeitamente lúcida e correcta. Veremos se o fim, de que ela constantemente fala, no terror dele, estará mesmo próximo. A verdade é que vai comendo bem.

Gradualmente, a minha mãe se vem adaptando à nova enfermidade, com a força que põe no seu direito à vida. Queixando-se de dores, os remédios mal a ajudando a ultrapassá-las, achando que nunca roubara nem fizera mal a ninguém, obrigando-me a lembrar-lhe, inutilmente, de resto, de que os outros milhões de sofredores também provavelmente, não teriam feito. E a nossa equipa de filhas e genro e às vezes netos,  funciona bem. Quando foi da perna, também se dizia que era o começo do fim. O problema da ida à cadeira fazer as necessidades, que inicialmente exigia várias presenças, já é efectuado a duas. Também voltou a cantar. Neste momento, com a visita da neta mais velha, a Anita, canta, sempre amiga de se exibir, mas com lágrimas na voz:

A primavera vai e volta sempre, / A mocidade vai não volta mais.

E fala do meu pai e dos prémios que este recebeu em Macau, nos estudos que ali fez. Primeiro, falara nos seus pais, nos seus trabalhos de moçoila. E a esperança renasce, com as suas conversas de sempre, embora acrescentadas, por vezes, dos novos queixumes.

Não quer morrer, mas regressa constantemente às suas origens. Acabo de a ouvir dizer à neta: “O meu cemitério é muito longe. É em Destriz.”

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27/ 3/2012: 105 anos. Parabéns para ti, Mamã! Que os anos que tiveres pela frente sejam, pelo menos, mais brandos em dores. E que a graça da tua frase que fez este título de homenagem, não seja ainda a última que pronunciarás. Desejamos-te assim viva, apesar das borrascas, que em ti resultam de te julgares com a mesma força com que ceifavas os campos da casa onde nasceste, nesse teu Carregal para sempre.


domingo, 25 de março de 2012

“Não cabe cá dentro”


- Aquele Seguro anda a fazer umas tristes figuras. Mas o que é que aquele gajo tinha de diferente para dar? E pode vir a ser primeiro ministro! Uma figura daquelas que não sabe o que diz! Mas também ainda não ouvi ninguém dizer bem dele!

Discordei da minha amiga nessa questão da empatia com Seguro, achando que os ares arrumados deste, de comissuras dos lábios sempre próximas, os lábios em O, na garantia dos bons sentimentos expressos num raciocínio sempre justo, alguns partidários lhe haviam de merecer, dos de sentimentos e de raciocínio coincidentes, mesmo que não tenham os lábios em O.

- Não, ele tem a sua comandita, que o escuta com a mesma unção que têm os de todos os outros partidos, perante os seus chefes! Vivemos em democracia.

Mas a minha amiga, qual “malagueña salerosa, que los pobres disprecia”, nem sequer escuta a minha sentida interrupção, lançada que está na sua inflamada diatribe:

- Estes agora encontraram o tacho rapado. Estes não vão lá para roubar porque não têm aonde ir buscá-lo. Antes, foi um forrobodó de todo o tamanho, nas negociatas, nas almoçaradas, nos peculatos, nas ilegalidades. E os políticos depois têm que fazer as leis à sua medida. E depois têm que pôr o dinheiro lá fora. Não cabe cá dentro.

Só discordei na questão do tacho. Achei que, mesmo que estivesse mais cheio, os governantes de hoje teriam mais vergonha na cara, pertencentes que eram a uma geração mais cordata e corajosa e amante da sua Pátria.

Assim fosse, saecula saeculorum.

sábado, 24 de março de 2012

Fia-te na Virgem…


A história que aqui se conta
Com alguns arrebiques
Não é do tempo dos Titanics,
Nem dos cruzeiros de agora
Que também encalham
Quando os homens
Ou os motores falham.
É uma história de Esopo
Que viveu no tempo
Em que as embarcações
Eram muito inferiores
Em potência e dimensões:

«Atenas e o náufrago»
«Um rico Ateniense navegava
Com outros passageiros.
Uma rajada de vento estalou
Que o navio virou,
O qual naufragou.
A nado, todos os companheiros
Tentaram salvar-se.
Todavia,
A cada instante o Ateniense,
Invocando Atena,
Mil e mil oferendas lhe prometia
Se com vida escapasse
Do pesadelo.
Um dos náufragos
Que a seu lado nadava
Disse com zelo:
“Reza a Atena,
Mas não te esqueças de nadar
Se do naufrágio
Quiseres escapar!”
O mesmo de nós direi:
Se devemos aos deuses rogar,
A nossa causa em particular
Deveremos servir.
Mais valerá os deuses
À  nossa causa, com boas acções,
Saber concitar
Do que a nossa salvação
Negligenciar
Contando só com aqueles.
Quando na desgraça caímos
É necessário
Trabalhar em nos safarmos
E então só depois
A divindade
Em nosso socorro apelarmos.»

Eu  creio que o nosso país
E sobretudo o nosso governo
São bem a imagem,
Da muita coragem
Mas também devoção
Que é preciso demonstrar
Para da perdição
Poderem escapar.
O governo vai nadando
À custa dos sacrifícios
Do povo que vai pagando
E ao mesmo tempo rezando
Para obter mais benefícios
Do governo que os promete
Só para o ano e entretanto
Vai nadando, vai nadando
Tentando
À praia chegar,
E o povo orando e chorando,
Sem parar,
E sem grande esperança
Na prometida bonança.
Mas aqui vamos pagando
À custa dessa promessa,
Embora haja excepções.
Que os batoteiros
São mais que as mães.












sexta-feira, 23 de março de 2012

“Ele foi à Maia”


Dei à minha amiga a informação que me tinha abismado quando a ouvi da boca séria do ministro Gaspar das Finanças: que a recuperação económica portuguesa se iniciaria num dia exacto de setembro, não me lembra (parafraseando Garrett) bem se a 13 de 2013. Até comentei que 13 é uma data portuguesa célebre, pelo menos o de Maio e o de Outubro, em que a Nossa Senhora apareceu a três pastorinhos nuns ramos de azinheira de  Fátima, e que talvez por isso ele falou no 13, sem esclarecer as contas, ou então fui eu que não as percebi, que de contas só vejo os cortes no vencimento que me arrasam a vida.

Mas a minha amiga entendeu que não devia ser por analogia com as datas da Aparição, e logo disparou, sempre rápida a tirar conclusões, nem sei se fruto das suas experiências de vida:

- Se calhar, ele foi à Maia.

            Mas logo a seguir pôs-se a troçar dessa precisão do ministro Victor Gaspar a respeito do início da escalada económica, quando o que por aí vai são mais falências, despedimentos, desemprego às catadupas, gente a precisar da sopa dos pobres, como antigamente, com os pobrezinhos que sempre foram cultivados com amor no nosso país, e não sou eu que o digo, embora os novos pobres de agora sejam muitos dos novos ricos de há pouco, que se tinham empenhado, favorecidos pelas promessas dos bancos que emprestavam para a casa e para o carro e a pequena empresa e que agora vão buscar a casa e o resto,  cuja prestação já não vai ser paga, na senda dos despedimentos…

Eu até confirmei, nos meus magros conhecimentos obtidos da boca dos críticos da situação, que quanto mais se afunda a economia em impostos incomportáveis, que fazem fechar as empresas, atirando para a rua tantos milhares de trabalhadores, mais dificilmente, se pode emergir da imersão.

Então, resolvi vir para casa esclarecer-me melhor na Internet sobre aquilo que o ministro disse, pois não gosto de fazer observações levianas e muito menos a respeito da exactidão das datas – o 5 de Outubro sendo sempre o 5 de Outubro, assim  como o 1º de Dezembro sendo esse e não outro  - e colhi o seguinte:

«Portugal tem de reembolsar 10 mil milhões de euros de dívida pública, que vencem a 23 de setembro de 2013. O atual programa de ajustamento acordado com o FMI e os parceiros europeus prevê que uma parte desse valor deve ser refinanciado junto do setor privado, ou seja, por essa altura, Portugal devia estar de volta aos mercados da dívida. Mas os analistas têm dúvidas se isso será possível ou se Portugal precisará de um segundo resgate para evitar o incumprimento. «Nós não vamos, por nossa conta, pedir mais tempo nem mais dinheiro», disse Gaspar. «Mas conforta-nos o facto de os nossos parceiros internacionais terem indicado que se nós enfrentarmos dificuldades imprevistas no regresso aos mercados em condições normais, eles nos dariam mais ajuda financeira, com a condição de nós cumprirmos os termos e condições do programa», acrescentou. Exportações vão ajudar à retoma…»

E então vi a razão por que o ministro Victor Gaspar falou na retoma. O reembolso dos dez mil milhões simultâneo de imediata retoma, não propriamente com enriquecimento pelo trabalho, mas com novos empréstimos, dada a confiança que mereceremos a quem nos vai conceder mais crédito, pois saldámos essa dívida. Já podemos fazer outra que nós ou outros pagarão. Hábitos antigos não se perdem de imediato.

Lembrei-me do D. Enguiço do António Nobre:

“Farto de dores com que o matavam,

Foi em viagens por esse Mundo:

Mas os comboios descarrilavam,

Mas os paquetes iam ao fundo!”

Não, não foi só ele o D. Enguiço. É nosso retrato. É nossa sina que transportamos às costas desde sempre. Com menos arte. Mas com idêntica dor, causada pelas discrepâncias de sempre, entre os que se safam e os que não. Vejamos:

«O bom Amigo que vou cantando,

Neto de Santos, irmão de Aflitos,

Nasceu chorando, nasceu gritando,

Nasceu aos gritos! Nasceu aos gritos!



Já pressentia, menino estranho,

O que no Mundo cá o esperava,

E assim pedia, num dó tamanho,

Não no tirassem lá donde estava…”


“Olá, Senhoras, que ides na frota,

Que ides às Ásias, enquanto eu fico,

- Boa viagem!... E tomai nota,

Dai lá saudades ao compatriota…

Meu pobre Chico! Meu pobre Chico!» ("SÓ" - Paris, 1893)

quarta-feira, 21 de março de 2012

O desejo de afirmação


Mais um texto de militante convidado – o deputado do PS, Acácio Pinto - que o DN de 19 de Março publicou na rubrica “Fórum” sob o título “Afirmar o português no mundo”, a embirrar com os detractores do Acordo Ortográfico –“no momento em que um vasto conjunto de portugueses lhe decidiram fazer um ataque cerrado mas, em grande medida, serôdio.”

E o adjectivo ao jeito frutícola resulta da irradiante euforia de Acácio Pinto pelo facto de já não ser passível de eliminação o tal Acordo. A.P. joga pelo seguro e sabe que não haverá anulação, mesmo que seja disparatada grande parte dos argumentos dos que os protagonizaram e isso o faz ironizar com eloquência e saber, embora sem ter lido nunca os argumentos dos seus contrários.

A indignação de Acácio Pinto transparece no parêntese («Ou será que foi preciso Vasco Graça Moura chegar ao CCB e desautorizar o primeiro-ministro, para que este assunto voltasse à ribalta?»)

Realmente, Vasco Graça Moura chegou ao CCB e fez tropelias no Acordo ao rejeitá-lo no seu espaço de trabalho, em protesto inútil, tal como o é o dos mais reaças, que não seguem os ditames daquele.

Quanto  a mim, admiro a sua coragem em desautorizar os fabricantes do A. O., talvez por se considerar um ser com peso intelectual bastante para se permitir fazê-lo. Quanto ao PM não sei se se achou desautorizado. Afinal, ele antes de o ser, também já o era, tal como a pescada, isto é, era contra o Acordo antes de ser PM. A menos que a sua posição passada visasse já o seu presente ministerial, infelizmente temos que admitir essa hipótese, já que agora o PM atirou com a querela às malvas.

Todo o texto de A.P. é um acervo de lugares comuns sobre os vários acordos, desde 1911 sem envolvimento da Academia Brasileira e os posteriores, de acordo com ela, de 31, 43, 45, 71/73, 75 e 86, em que “foi, finalmente, encontrado um texto comum que, podendo ter lacunas, é um acordo internacional e um acordo é, em si mesmo, um facto que encerra convergência, que é positivo e que importa, pois, enfatizar.”

Para além da alegação, talvez irónica,  de que um acordo encerra convergência, ainda que não tenha sido solicitado referendo, e do falso argumento de que se trata de um acordo internacional, omitindo propositadamente os Palops que o não ratificaram, propõe os conhecidos exemplos de substituições antigas, de duplas consoantes: ph>f – (pharmacia>farmácia), sc>c - (sciencia>ciência, ct>t (aflicto>aflito), xh>x – (exhausto>exausto), cuja mudança em seu tempo também provocou excitações, gradualmente extintas.

Ninguém põe em dúvida a natural evolução das línguas, sujeitas a um processo simplificador, com leis específicas, como a do menor esforço, que origina fenómenos fonéticos como assimilações, dissimilações, nasalações, síncopes, apócopes, próteses, etc., etc., e que têm como efeito as transformações gráficas correspondentes. Nessa lei do menor esforço se integram as duplas supressões consonânticas citadas, como, por uma ordem de racionalidade, se propõe a passagem do ditongo único antigo, ãi de mãe, ao actual ãe, por inexistência do primeiro e sua assimilação gráfica ao ditongo do plural ães de cães, pães, proveniente do latim –anes. A língua brasileira, por arrastamento, o fez também, sem precisar de acordo.

O texto de Acácio Pinto omite tudo o que existe de insensato  no novo Acordo, como a criação da nova homonímia -  “ato”, o presente e o pretérito –“achamos” – a criação de absurdos linguísticos, como na onomástica – Egito, egípcio - tudo isso gerador de confusões, e de dificuldades ao nível da interpretação e da escrita, originando, para mais, uma língua sem carisma, própria de um povo atrasado e desclassificado como é, cada vez mais o nosso, indiferente ao legado clássico.

Por outro lado, nesta pretensão de absurda fraternidade luso-brasileira, que esconde reais sintomas de subserviência, por interesse económico, ignora-se o facto de a pretensa uniformização ortográfica não passar de falso argumento, já que tal uniformidade não é absoluta. Veja-se o caso dos binômios ou dos tônicos brasileiros com um chapeuzinho a resguardar dos calores, contra o acento agudo acutilante dos  nossos.

Pessoas ambiciosas e idólatras como o deputado A. P. temo-las q. b. para a revolução ortográfica. Já as tivemos antes, para a revolução política. Estamos aqui. Assim.








segunda-feira, 12 de março de 2012

Os Magalhães da nossa estreiteza


- Aquele Sócrates é louco até dizer chega. A preocupação do homem era o edifício. E assim criou a Parque Escolar. Começaram a fazer escolas luxuosas. Então o que é que acontece? A Parque Escolar, ainda não acabaram as obras e já não há dinheiro.

            Meti a minha colherada:

- Julguei que fosse dizer que a carência dos dinheiros fosse anterior ao começo das obras…

Mas a minha amiga prosseguiu:

- Nem no Dubai se fazem escolas mais ricas. Dantes dizia-se nos Estados Unidos, agora é no Dubai. Então, foi-se o dinheiro todo. O que é que se fez em Portugal? Ninguém se ralou com as reformas miseráveis. Criaram-se autoestradas, energias renováveis, construíram-se casas em barda, na sedução dos empréstimos. E hoje o que é que acontece? Não há dinheiro para a população. Ouço Sócrates: É preciso escolas bonitas. Mas onde é que se faz isso? Bastava que tivessem os professores todos e que os alunos fossem bem comportados.

Meti outra colherada:

- As contínuas da escola onde leccionei queixavam-se das casas de banho arranjadas constantemente e logo inutilizadas com escritos e imundícies próprios de uma população escolar sem nível. E os tampos das carteiras riscados impiedosamente com alarvidades…

- Uma história de encantar, a história da Parque Escolar.

- Seria, se fosse positivo o resultado. A mim parece-me antes mais uma história de megalomania, de novo-riquismo idiota, de uma bestialidade ilimitada própria de um povo imaturo, que se deixa seduzir por brinquedos que não criou. Esperemos que a maioria das escolas sem esses luxos tenham professores  sensatos e competentes.

- Agora está o Cavaco a lamentar-se. Foi enganado pelo Sócrates. Deixou-se enganar. É cá um Zezinho! E pelos vistos, já todos julgam isso.

- Está enganada! Eu agora julgo-o mais um dos espertalhões que acima da obrigação de bem governar o país, defende o governo da sua vidinha, sem se comprometer, numa seriedade de fachada. Essa da Parque Escolar é de tal ordem que ele devia ter intervindo, como faz agora, a respeito do “custe o que custar” com que o governo sobrecarrega o povo, lembrando que não pode ser assim, sem querer assumir a sua responsabilidade no governo de Sócrates, não o demitindo, intrujando todos com falsas informações sobre o estado da economia…
- Terão sido melhores, os outros?


quinta-feira, 8 de março de 2012

Turbulência

«O pescador de águas turvas»
«Um homem pescava num rio.
Depois de ter estendido a rede
De maneira a barrar a corrente
De lado a lado, eficazmente,
Logo agarrou
Numa pedra e a ligou
A uma corda de linho
E se pôs
A bater na água fortemente
A fim de forçar
Os assustados peixes
Contra as malhas da rede
Da sua fome e da sua sede.
Um dos habitantes
Da vizinhança,
Vendo-o proceder
Com tal segurança
Censurou-o por turvar
A água do rio e os privar
Da habitual água potável.
“Sem dúvida” -  retorquiu
O pescador imperturbável,
Mas se o rio eu não bater
Sou eu que de fome irei morrer.”
O mesmo acontece nas cidades:
Os negócios dos demagogos
Nunca são tão florescentes
Como quando em guerra civil
Mergulham de forma vil
A pátria dos antepassados
E dos presentes.»

 A mim, o que me cai no goto
É  a actualidade da foto
Deste fabulista Esopo,
Tão promissor
Que parece que adivinhava
Que na contemporaneidade
Desta nossa cidade
Vivemos iguais andanças
Causadas pelas trapaças
Dos que preferem mergulhar
Nas turvas águas do seu viver,
Só para comer
E beber
E assim fazer minguar
A capacidade de sobreviver
Dos que, querendo viver
Como toda a gente,
Só encontram pela frente
A muralha indecente
De um país que nem sequer sente
As dores da sua gente.
Por isso até já assistimos,
Atónitos,
Ao espectáculo indizível
Dos que têm morrido
Sozinhos e apodrecidos,
Nas suas casas, a condizer
Com a podridão
Dos tais que remexem,
Sem mágoas,
Em turvas águas,
Sem que isso seja punível
Embora seja intragável.

quarta-feira, 7 de março de 2012

Uma questão “fascinanta”


Chegou-me por email o texto que segue e não resisto a transcrevê-lo. Tem a ver com um certo feminismo pouco esclarecido e o autor do texto entende que o seu contributo pode ajudar a dissipar o erro. Mas um país que adopta regras para a sua ortografia libertas de preocupação latinista não se vai incomodar com os fundamentos latinistas do seu autor .

«Uma aula de português muito pertinente»

«Aqui vai uma explicação muito pertinente para uma questão actual:

A jornalista Pilar del Rio costuma explicar, com um ar de catedrática no assunto, que dantes não havia mulheres presidentes e por isso é que não existia a palavra presidenta... Daí que ela diga insistentemente que é Presidenta da Fundação José Saramago e se refira a Assunção Esteves como Presidenta da Assembleia da República.

Ainda nesta semana, escutei Helena Roseta dizer : «Presidenta!», retorquindo o comentário de um jornalista da SIC Notícias, muito segura da sua afirmação...

A propósito desta questão recebi o texto que se segue e que reencaminho:

Uma belíssima aula de português.

Foi elaborada para acabar de uma vez por todas com toda e qualquer dúvida se temos presidente ou presidente.»

«A presidenta foi estudanta?

Existe a palavra: PRESIDENTA?

Que tal colocarmos um "BASTA" no assunto?

No português existem os particípios activos como derivativos verbais. Por exemplo: o particípio activo do verbo atacar é atacante, de pedir é pedinte, o de cantar é cantante, o de existir é existente, o de mendicar é mendicante... Qual é o particípio activo do verbo ser? O particípio activo do verbo ser é ente. Aquele que é: o ente. Aquele que tem entidade.

Assim, quando queremos designar alguém com capacidade para exercer a acção que expressa um verbo, há que se adicionar à raiz verbal os sufixos ante, ente ou inte.

Portanto, a pessoa que preside é PRESIDENTE, e não "presidenta", independentemente do sexo que tenha. Se diz capela ardente, e não capela "ardenta"; se diz estudante, e não "estudanta"; se diz adolescente, e não "adolescenta"; se diz paciente, e não "pacienta".

Um bom exemplo do erro grosseiro seria:

"A candidata a presidenta se comporta como uma adolescenta pouco pacienta que imagina ter virado eleganta para tentar ser nomeada representanta. Esperamos vê-la algum dia sorridenta numa capela ardenta, pois esta dirigenta política, dentre tantas outras suas atitudes barbarizentas, não tem o direito de violentar o pobre português, só para ficar contenta".

«Por favor, pelo amor à língua portuguesa, repasse essa informação...»


Apresso-me, pois, a repassar. Só que não creio que surta qualquer efeito, sobretudo se o objectivo for esse, de defender a língua portuguesa. Para mais, a construção do texto é brasileira, daí que o não corrija.

O que julgo é que as presidentas o desejam ser por modéstia, comparando-se com as governantas dos palacetes senhoriais. É que estas já são muito antigas e nunca ninguém lhes pôs em dúvida a biformidade. Eram elas, geralmente, que detinham as chaves da casa, e sobretudo da despensa.

Nos tempos que correm, uma boa despensa é imprescindível, razão pela qual as presidentas desejem a tal afinidade com as governantas. Tudo por uma questão de chaves.

terça-feira, 6 de março de 2012

Já está tudo organizado


- Se aquele Putin é um homem civilizado, como é que ele se permite umas eleições assim aldrabadas? O raio do ser humano está cada vez mais estranho e cruel. Pois não é aquilo uma ditadura? As pessoas correm o risco de perder o emprego se não forem votar. O jornalista nosso correspondente, que é russo, o disse: “Eu vou dizer isto porque é verdade. As pessoas perdem o emprego se não forem votar.” Como é que um homem que se considera uma pessoa civilizada ganha à custa do autoritarismo mais condenável?

A minha amiga estava, de facto, indignada. Eu achei que havia autoritarismos piores, os que usam a metralhadora para se imporem, por exemplo, mas lembrei uma história contada pelo meu pai, em Lourenço Marques. Tinha um colega original, que vivia só, e um dia, na altura das eleições, com um partido único mas exigente de participação dos funcionários, como na Rússia, escreveu no seu boletim de voto, votação que, felizmente, era em regime de anonimato: “Eu  e o meu moleque votamos em…” Suponho que na União Nacional. Só me recordo que o meu pai ria maliciosamente com a sua história, o que traduzo agora como não aceitação de um regime manipulador, onde as injustiças e as vilezas se praticavam igualmente, embora de forma mais controlada que agora. O que significa que as ditaduras são de qualquer tempo, mesmo as do povo, dos guerrilheiros, dos governantes ou dos ricos corruptos.

Mas em casa, havia um novo jornal, O Público, que hoje, por comemorar os seus vinte anos foi oferecido. José Gil foi o seu Director neste dia, e são vários os seus textos analíticos sobre o estado da Nação, com a qualidade do filósofo conceituado deste nosso século XXI e a originalidade da proposta do Director real do Público, que proporcionou tão expressivos textos, e não só de José Gil.

Não resisto a transcrever o texto sobre o estado da Educação, que subscrevo na íntegra. Também acreditei em Nuno Crato, também me decepcionou, silenciado num cantinho invisível, com pequeninas reformas que não correspondem às promessas e às críticas da sua verbosidade  oral e escrita anterior:

«Uma política educativa tem que partir de alguns destes dados - (evolução da taxa de escolarização, estimativa das horas necessárias para a preparação das aulas dos docentes, competências exigidas aos alunos, consciência dos responsáveis pelas políticas educativas,  etc.) – mesmo quando eles não podem ser quantificados. Por exemplo, se não se souber o número de horas e a qualidade do tempo de que um docente precisa para preparar as lições, podemos criar uma carga horária esmagadora e deprimente. E nunca obter uma docência de excelência. Para preparar as aulas os professores têm de ter uma vida própria – e já não têm. Têm cada vez cada vez menos férias, cada vez menos tempo para ser pessoas. Uma das questões que coloco é se os responsáveis políticos se dão conta da especificidade da profissão docente. A relação professor-aluno é extremamente intensa, delicada, forte, vital e específica. Vital para criar qualificação no trabalho e consciência democrática. É preciso fazer ressaltar esse factor que não está a ser pensado. A avaliação das competências tem de ter em conta um elemento inavaliável, inquantificável em que se funda a criatividade da educação.

Os ministros da Educação já foram professores, mas, uma vez ministros, têm outros imperativos – e há um imperativo economicista enorme em Portugal. A ideia que, infelizmente, estou cada vez mais a formar do ministro da Educação Nuno Crato é que ele está a esquecer tudo o que escreveu, está a esquecer tudo o que ele próprio pensou. E muitos professores estão a sair, a pedir a reforma antecipada, desgostosos com o ensino, com a escola e consigo mesmos. Estão-se a ir embora. E a política da Educação a degenerar.»

Tudo tão deprimente! Tão cada vez mais na mesma em termos de se encontrar um caminho que arrancasse este país do atoleiro em que se afunda.

Não, não é mais possível. São necessários bons professores, tanto quanto são necessárias políticas de Educação que os incentivem a serem de facto bons professores. É necessário tempo para o serem, não para gastarem horas mergulhados em reuniões de puro convívio, quantas vezes inútil e vazio. E um professor que não se prepara devidamente e vai mesmo mais além, transforma as suas aulas em “bagunçada” sem interesse e os alunos vão embrutecendo, defendidos além disso por políticas que lhes dão uma liberdade desorientada.

Sim, Putin será ditador. Mas caminha para algum lado, não creio que as suas escolas deslizem caricatamente como as nossas para o zero da exigência humanista. Os Jogos Olímpicos e outros bem revelam os êxitos medalhados de uma cultura de rigor.

Nuno Crato foi também decepção para mim. Mas talvez não tenha culpa, instrumento de um poder sem recursos outros que não sejam os da mesura bem comportadinha num país mal comportado, que enredou a sua própria língua nas malhas da idiotia.


sábado, 3 de março de 2012

“Aquilo foi arrumado pelo Tribunal”


A minha amiga hoje apareceu cansada, a falar em números: os das mortes nestas duas últimas semanas, indignada por ninguém justificar tão espantosa mortandade que uma gripe colectiva tem originado, sobretudo na população mais idosa. A minha amiga acha que tais números de catástrofe são já consequência da crise, da má nutrição, da falta de dinheiro para debelar o frio, de todos os condicionalismos a que o governo do “custe o que custar” reduziu uma população desde sempre considerada na base da velha pirâmide, cujo vértice cimeiro não é já Deus, nem o rei, mas o grupo dos capitalistas corruptos, que se capitalizaram por artimanhas que os fizeram alcandorar-se no topo, por deficiente aliança entre governo e justiça.

E falou-se no crime, na violência no país dos brandos costumes que há muito deixou de o ser. Aliás, eu nunca achara que o fosse. Porque um país onde reina uma desigualdade social gritante, o que tem é costumes de subserviência, por não ter crescido mentalmente a população iletrada, cujos números assustadores nos envergonharão creio que por longo tempo ainda.

Mas aquilo a que temos ultimamente assistido é algo de estranho, que víamos nos filmes ou conhecemos nas notícias do estrangeiro. Uma agressividade inusitada, assaltos a lojas, com mortes, roubos, saques, assassínios até entre familiares, raptos, crimes de estarrecer.

E a minha amiga conta, a voz alterada pela indignação:

- Agora é matar, matar, matar. Histórias de fazer eco. Sabe o que fez um marido ciumento? Foi atrás do carro da mulher, espatifou-lhe o carro, fê-la sair dele e esfaqueou-a. Foi contado no programa da Júlia Pinheiro, a mulher falou do hospital, onde está internada. Porque aqui dá-se este caso: o fulano não foi preso. Como é que um gajo daqueles vem cá para fora? Que raio de justiça é a nossa que permite que ande um criminoso à solta, a aguardar julgamento?

Citou ainda o caso do rapazinho de dezassete anos que apareceu morto, as pernas queimadas, um crime de violência extrema.

- A violência é tão grande que deixa a polícia espantada. Não, aqui já não é diferente do que se passa lá fora.

E referiu o caso do Paco Bandeira, inicialmente defendido pela última namorada, que agora veio desmentir em Tribunal as suas afirmações anteriores sobre a inocência dele. Afinal, ela própria teve medo dele e separou-se. E o irmão da primeira mulher, que veio reabrir o processo, por não se tratar de suicídio mas de homicídio cometido por Paco. Nada pudera fazer antes em defesa da irmã, dado o prestígio daquele, numa justiça afável com o criminoso ilustre, sobre o qual, cada vez mais, aparecem testemunhas acusadoras.

- Aquilo foi arrumado pelo Tribunal, concluiu. Como é que o Tribunal arruma este assunto? O Tribunal não quer saber de nada?

Respondi que o Tribunal, tal como nós, só atendia à “A ternura dos quarenta”, um excelente meio de autodefesa. E lembrei ainda o tempo em que, em África, nós escutávamos constantemente a canção  que nos seduzia os ouvidos confiantes e que desde o 25 de Abril fora silenciada:
“Lá longe, onde o sol castiga mais, não há suspiros nem ais, há coragem e valor…”

Achámos que talvez a sua cabeça tivesse ficado, de facto, mais castigada do que ele cantara, na sua voz saudosa, de entoações perfeitamente originais. E considerámos ainda quanto o lirismo tem de enganador.

Referimos, a propósito, o provérbio que, tal como a nós, motivou a injustiça da Justiça: “Bem prega frei Tomás. Olha para o que ele diz, não olhes para o que ele faz.”
A Justiça limitou-se a olhar o que ele diz.