segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Os inchaços sem mito


Vem mesmo a calhar,
No Ano Velho que acaba,
No Ano Novo que começa,
A velha fábula de Esopo
«A raposa de ventre inchado»
A mostrar
Que tudo o tempo resolve
E até absolve,
E por isso o novo Ano
Que começa amanhã
Será a antemanhã
De um ano bom,
Em que o desengano
Será ultrapassado
E esquecido
Como nosso dom,
Que bom!

«Uma raposa esfomeada avistou
Pedaços de pão e de carne
Pelos pastores deixados
No buraco dum carvalho
Protegidos do orvalho.
Mas como o seu ventre inchado
Não lhe permitiu sair,
Pôs-se a queixar-se e a gemer
Num alarido danado.
Outra raposa que ali passou
E lhe ouviu os lamentos
Aproximou-se e quis saber
O motivo dos seus prantos.
Quando a sua desventura conheceu
Logo a aconselhou:
“Fica aí dentro até te tornares
Tal como eras ao entrares:
Sem custo conseguirás daí sair
E  partir…”                                       
A fábula serve para demonstrar
Que o tempo, nas suas bondades,
 Resolve as dificuldades».

Desta vez, todavia,
Embora sem alegria,
Custa-me a crer que já nessa altura
As raposas tivessem tal candura
Julgando que o tempo tudo cura.
O que se me afigura
É que a demasiada gordura
Já não consegue ter cura,
E com o tempo perdura
Para nossa desventura.
Embora
Água mole em pedra dura
Tanto dá até que fura.
Será que chora?
E não cora?

 

domingo, 30 de dezembro de 2012

Um filho do preciosismo


Foi por alturas da exibição de “A Filha de Ryan”, penso que no Canal Memória, que se falou de Manoel de Oliveira, que está doente mas a quem se auguram mais filmes, tal a sua persistência em longevidade e criatividade filmográfica.
Eu fui entusiasta no elogio ao filme de David Lean, que já vira várias vezes no Canal Hollywood sem tradução, e sempre me maravilhara o poderoso de um filme quer na acção eloquente e épica, quer na força anímica da paisagem irlandesa, quer no desempenho extraordinário das várias figuras de um enredo de paixão interdita – da jovem Rosy, casada com um ex-professor, viúvo sério e bem formado, pelo belo e triste major britânico defensor dos irlandeses da aldeia contra os alemães, durante a primeira guerra mundial num ambiente de hostilidade da maioria dos habitantes, adeptos do IRA, contra o usurpador inglês, quer na acção dos populares, e sobretudo das mulheres, exaltadas, mexeriqueiras e invejosas da beleza e graciosidade de Rosy, e contra ela se vingando, pretextando um acto de traição de que esta era inocente, mas lutando valentemente ao lado dos homens do Ira, que acabarão fuzilados, por denúncia conivente e pacifista do pai de Rosy, que aceita cobardemente a imerecida acusação contra sua “princesa”. Sobressai o papel do deficiente Michel, extraordinariamente desempenhado por John Mills, que lhe mereceu um Óscar, a do padre Collins, mediador, humano, tão irascível contra as alcoviteiras atrevidas da aldeia, como contra as tendências de liberdade, temperadas com as suas angústias e dúvidas sobre a sua própria sensatez, da adolescente Rosy. Impecável a actuação do nobre professor, como a do traumatizado major, ferido anteriormente em combate.  
Um  extenso filme prendendo até ao fim, no encantamento de actuações, paisagens, enredo, movimento, veracidade.
E veio à baila o comentário que fiz então sobre Manoel de Oliveira: “Será que ele não aprende com tais filmes? Será que ele não enxerga a extrema escassez e snobismo dos conteúdos e a falsidade dos elementos que exibe nos seus filmes mortiços, para boi dormir? Em vez de pensar em criar tantos, porque não aprender primeiro com os outros realizadores de filmes que tantas obras primas legaram? Há dias foi entrevistado no Canal Memória e o entrevistador especificou bem que ele reduzia os sentimentos das personagens  a uma espécie de esquematismo, comprovado numa   cena apresentada – um pseudo-actor, e uma pseudo-actriz rodando à volta duma mesa numa ridícula cena de pseudo-sedução, do tipo galaró em torno da franga – que o mais que me fez sentir foi asco e revolta contra tanta imbecilidade encartada que é a sua, que assim brinca senilmente com os seus bonecos - que é a nossa, que o apresentamos parolamente ao mundo como o mais vetusto produtor filmográfico, obrigando o mundo a medalhá-lo na sua vetustez admirável e copiosa, pois duvido que o mundo o faça por parolice.
Mas a minha amiga falou na sua doença e desejei-lhe sinceramente as melhoras. Quanto mais não seja pelo “Aniki-Bobó”, o seu único filme simpático sobre o ternurento mundo infantil nos tempos de Salazar, bendito Salazar que outros filmes fez criar do nosso carinho e gratidão.

 

Happy New Year


Porque são vésperas de Ano Novo,
Passado o Natal num ai,
É tempo de meditar
Sobre o ano que também vai
Passar noutro ai
Até ao próximo Natal,
Na monotonia
Do tempo que corre inclemente
Dia após dia.
A fábula que  Florian escreveu
Trata de um gafanhoto
Saltitante e um pouco pedante
Que se julgava o “non plus ultra” dos bons
 Para poder denegrir todos os mais,
Que, para ele, todos eram o “non plus ultra” dos maus,
Característica mais comum do que julgamos,
Assim como somos.
Eis, pois, a fábula de Florian,

O gafanhoto
“Já decidi, vou deixar este mundo:
Quero largar para sempre o espectáculo odioso
Dos crimes, dos horrores que meus olhos ferem.
Num retiro profundo,
Longe dos vícios, dos abusos,
Passarei os meus dias feliz, maldizendo
Os maus que, num percurso tenebroso,
Tão bem fui conhecendo
Só eu na Terra tenho virtudes:
Como inimigos tenho tudo o que respira,
Todo o universo me detesta, homem, crianças, animais,
Mesmo o passarinho mais pequeno,
Se ocupam com me causar dano
Em jeitos desleais.
E todavia,
A todos esses ingratos, só bem eu fazia!
Eles lamentar-me-ão,
Mas só quando me virem no caixão.”
Assim gemia um gafanhoto
Hipocondríaco
E só a si se estimando,
Tonto.
“Onde vê você isso, meu irmão?”
Perguntou-lhe um companheiro:
“O quê! você não pode viver nestes campos
Roendo a doce e tenra flor dos prados
Sem se embaraçar com as questões do mundo?
Eu sei que ele abunda em danos:
Foi assim sempre e assim será.
O que você disser pouca coisa mudará.
Aliás, onde se vive melhor
Num mundo em toda a parte aterrador?
 Quanto à sua cólera fatal
Contra essa galera que só a você quer mal,
Penso, meu irmão, que isso é apenas quimera
E que o orgulho por vezes cria visões.”
Desdenhando responder a tão tolas razões
De um seu igual,
Embora em bondade inferior,
Segundo o gafanhoto gemedor,
Este  parte e sai do prado,
Pátria do seu triste fado.
Dois dias saltou para dar duzentos passos.
Então julgou-se no fim do hemisfério,
Entre um povo desconhecido de outro território.
Admira o belo clima,
Saúda com respeito este campo estrangeiro.
Perto dali, espigas numerosas
Sobre longas hastes, a seis pés do terreno,
Ondeantes e apertadas balançavam ao vento
Formosas.
“Ah!  Aqui está o meu negócio!”
Disse ele com transporte: “nestes matas sombrias
Sem dúvida encontrarei um deserto solitário;
É um asilo seguro contra os meus inimigos.»
Ei-lo na região. Mas logo na manhã seguinte
Eis que chegam os ceifeiros palreiros.
O grupo, numeroso e barulhento,
Estende-se em semicírculo, e entre os clamores,
Os risos, os cantos das raparigas,
Caem aos montes, sob as foices, as espigas,
A terra descobre-se, e os torrões abatidos
Deixam ver os sulcos despidos.
“É demais! Exclamava o triste gafanhoto tonto,
Eis o que prova bem o ódio universal
Que por toda a parte me persegue por meu mal:
Apenas a este país chegava,
Souberam que eu estava,
E um povo de inimigos apareceu
Para a sua vítima escolher.
No furor que os anima
Contra mim empregando os meios mais horríveis
Com medo que eu escape, destroem os seus bens.
Incendiá-los-iam, se necessário fosse,
Num ápice.
Eh! Senhores! Aqui estou eu!”
Disse ele mostrando-se;
“O vosso tão grande trabalho acabai,
À vossa cólera me entregarei.”
Um ceifeiro, ali presente,
Por acaso o avista; baixa-se, pega nele
Cuidadosamente,
E , diz-lhe, atirando-o para o campo florido,
 “Vai comer, meu amigo”.


Existe sempre gente gentil
Que manda comer por julgar
Que o que o que há no mundo é muita fome
E por isso diz: “Come!”
Mas outros há também que, iradamente,
Quando querem ofender
Soltam um “Vai pastar”
Um tanto vil.
O gafanhoto do Florian
Ganhou flores, após uma experiência
Que o carácter lhe não mudaria.
Quem vive a julgar
Que é o maior,
Num mundo inferior,
Não é um novo ano qualquer
Ou uma pessoa gentil
Que o faz mudar
Para melhor.
Sobretudo porque a condição
Sine qua non
Para fazer alterar
A irascibilidade
Dos gafanhotos hipocondríacos
Superiores,
Ou das pessoas desesperadas
Inferiores,
Seria uma alteração
Do “status quo” vivencial.
Mas não é o que vai acontecer,
Pelo menos em Portugal
Onde todos formamos
Praga de gafanhotos
A barafustar,
Sabedores, superiores,
E onde os que mais sofrem
São, por vezes, os que mais calam,
Senhores!

 


quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Nada para dizer


Isto disse a minha amiga, a escusar-se ao comentário que lhe pedi sobre o discurso do P. M. que me chocara a mim pelo que me parecia de enfianço de barrete que nos estava uma vez mais a impingir, na seriedade de uma atitude  de tristeza e simpatia, mas simultaneamente de atrevimento na esperança que impinge, na promessa de mudança e de seguimento no bom caminho, quando o que se prepara são mais cortes, mais impostos, mais despedimentos, mais miséria e sofrimento.
               - Não, mas eu não tenho nada para dizer - disse. Ele,  com ar muito triste, a dizer que vai ser tudo melhor. Depois veio o do PS a dizer o número dos desempregados, e os outros a falar em discurso irrealista, os economistas a negar o direito ao optimismo… Um país que não está a criar riqueza como pode começar a recuperar?
            - Mas há indícios de que vamos ter petróleo em Alcobaça – largo eu, que só quero ser conquistada pela fé, acabrunhada que me sinto com as histórias sórdidas do nosso estar no mundo de conivência com o nosso ser genérico.
            - Sim, e ouro na terra do Alentejo, concluiu rápida a minha amiga que não se fica atrás em ambições de crença concomitantes com o mesmo estado de acabrunhamento. Mas um país onde tudo fecha, hotéis como empresas, pequenas e grandes, é um país que vai fechar.
            Falámos no escândalo do BPN, nos montantes astronómicos das dívidas que vieram a público, quase todos do PSD, dissera o meu marido, e a minha amiga contou pormenores:
            - Os nomes e as quantias é bárbaro. Não é o Zé Povo que tem que pagar as quantias dos ladrões? Isto agora é que vai ser falado! Houve a pausa do Natal para descanso. O Governo fez esta coisa incrível de tomar conta do Banco. Aquele trabalho da Sic está bem feito e aprofundado. Com certeza ninguém se vai calar. Mas é claro que o dinheiro não está cá. Olha aqueles fulanos a saberem tudo como é que se faz, a deixarem-no cá ficar!...
            Mais ia por diante o monstro horrendo dizendo nossos fados quando eu, sentada, interrompi a minha amiga, mostrando-lhe o DN de 24 de Dezembro, que tirei da mala em ar de triunfo, pois competimos na questão das notícias sensacionalistas, embora eu nisso me mostre muito mais reservada, que não sou de mexericos, o que não significa que a minha amiga seja, longe disso, o que ela é, é mais desconfiada. A informação era sobre um tal de burlão, Artur Baptista da Silva, bem falante e contador de histórias pessoais de sucesso, que já lhe ouvíramos e que o DN desmascara acompanhando a notícia com a respectiva fotografia. Não, os nossos sucessos comportamentais não têm fim, vejamos a síntese do DN:
«Impostor: O falso colaborador das Nações Unidas, que andou a divulgar um relatório sobre Portugal, dando entrevistas e conferências, tem uma série de processos por burla e apresenta-se como professor de uma inexistente universidade americana.»
            Acusa para mais o povo português de o ter feito passar o Natal deste ano “no pelourinho da praça pública”, como “vítima de um julgamento sumário” que lhe aplicou uma imediata “pena de linchamento de carácter”, coitado!, que tão bem se exprime.
           Ambas soltámos um simultâneo “E esta hein?!” em homenagem a Fernando Pessa, que tanto se admirou na vida, e que provavelmente não teria hoje palavras  - nem sequer essas – interdito que ficaria, como ficou a minha amiga quando afirmou não as ter.
Eu por mim expressei com redundância que devíamos antes sentir um certo orgulho na nossa indústria embusteira, tão fértil e variada em exemplares dignos de linchamento e até requeri para ela o ressarcimento da nossa dívida externa, pela admiração que deveria merecer aos nossos credores o “engenho e arte” de tais “obras valorosas” libertadoras “da lei da morte” aos novos heróis, tal como fizeram aos velhos, barões assinalados”.



           

 

 

sábado, 22 de dezembro de 2012

Como íamos dizendo


«O gato e o espelho»,
Fábula de Florian ,
Dificilmente se aplica ao nosso tempo,
Tempo em constante mudança,
Embora se viva também muito da pança.
Mas já dizia Nosso Senhor
Que nem só de pão vive o Homem
É preciso uma Graça maior
Que nos inebrie a alma de amor.
Disse, pois, Florian, com um visualismo
Pleno de graciosismo:

«Filósofos atrevidos que a vida passais
A querer explicar o inexplicável,
- Inefável, na grega etimologia,
Que com muito menos fantasia
A latina transformou em indizível -
Dignai-vos observar, por favor,
Do mais sábio dos gatos o traço superior:
Este gato viu um espelho ;
Com alegria,
Saltou para ele, olhou e pensou ver
Um dos seus irmãos que o estava a espreitar.
Quer juntar-se a ele, é detido,
Fica surpreendido,
Julga então o espelho transparente
E passa para o lado contrário
A salto.
Não encontra nada, volta,
E o gato do espelho volta imediatamente.
Reflecte um pouco ; com medo de que o animal,
Enquanto ele dá a volta, se ponha na alheta,
Põe-se a cavalo no alto do espelho,
Duas patas aqui, duas ali; de forma
Que por todo o lado o pode agarrar.
Então, julgando tê-lo agarrado,
Devagarinho inclina a cabeça para o espelho.
Avista uma orelha, duas a seguir,
À direita e à esquerda ele vai lançando
A sua garra pronta a filar.
Mas perde o equilíbrio, cai e nada filou.
Então, sem mais esperar,
Sem mais procurar o que não pode compreender,
Abandona o espelho e volta aos ratos do seu comer:
« Que me importa, diz ele, este mistério entender?
Uma coisa que o nosso espírito
Depois de longo trabalho e esperança
Não alcança,
Não nos é jamais necessária
Por muito que seja extraordinária.»

Isto foi o que pensou
O gato de Florian que a meu ver
Não tinha mais para dar.
Na verdade,
Olhem só se o homem desistisse
De querer perceber o que lhe parece inexplicável
- Ou helenicamente inefável -
E abandonasse
Todas as tentativas que fizesse
Para avançar na modernidade!
Nunca se viveria com tanta comodidade
Nem se mataria com tanta eficácia
Ou se roubaria com tanta audácia!
Se o homem fosse de facto
Como o gato
Que abandona o incompreensível do seu incognoscível
Para apenas se cingir
Aos ratos da sua mesa
Nunca chegaria onde vai chegando
Cada vez com mais afoiteza.
Como António Nobre, poderia ter dito:
“Oh! As bombas atómicas! E as de hidrogénio!”
Nesta “Vida” que ele achou de pesadelo,
E mais “tudo o que por aí vai de aflição
Quer se trate de bandalheira, quer de tédio ou mistificação…
Mas realmente,
Por mais que se invente
António Nobre continua a ter razão
Na sua tristeza e solidão,
E o gato do espelho
De Florian
Talvez também tenha razão
 Na sua desistência
De atingir a ciência,
Pois o mundo continua rodando
Com o homem justificando
Falando, falando,
E não mudando
Tal como diz o Gato Fedorento,
Malandro...
E o “SÓ” concluindo:
«Foi para ver, coitada! Essa bola de lama
Que pelo espaço vai leve como a andorinha
A Terra!
Ó meu Amor! Antes fosses ceguinha…»

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Na província neva


Falou-se nas festas e a minha amiga frisou a bolarada que se come nestas alturas, eu nas despesas que se praticam e no cansaço dos cozinhados. Concluímos sobre o rolar rápido do tempo, os natais tão repetitivos, mas as nossas imagens de ternura foram de facto as crianças e a sua felicidade momentânea, que os nossos filhos já viveram, e que agora revivem como pais de meninos pequenos com os quais enfeitam a árvore, esperando o Pai Natal que eles próprios se prontificam a protagonizar.
Mas outras imagens nos passaram pela lembrança, a das nossas proezas nacionais, de safadezas muitas, de esperanças poucas, de gente de opinião opinando, de gente de acção obedecendo às ordens dos promotores dela, que instigam à greve para destruição ainda maior do país, porque para esses é esse o caminho certo, no objectivo de serem eles a endireitar o país, começando por deitar abaixo o governo, embora sabendo que nenhuns outros possuem a varinha transformadora a não ser para arrebanhar o resto dos trocos na manjedoura desfalcada e carcomida no muito que serviu de pasto ao longo dos séculos da sua história, a quem o conquistou pelo esforço da sua grei, a quem ultimamente o recebeu de mão beijada e o disseminou sem prestar contas, no atordoamento deslumbrado de uma manjedoura subitamente rica e disponível como nunca se vira antes.
E as cenas caricatas na nossa palhaçada, a que a minha amiga dá especial destaque como aquela de Relvas defendendo a candidatura de Fernando Seara à Câmara de Lisboa, pelo PSD, o que provoca a pronta conclusão de Rebelo de Sousa sobre o proveito que disso colhe António Costa, e fez a minha amiga concluir:
- Seara devia tê-lo mandado calar: “O Senhor cale-se, não fale em mim”.
Também a minha filha Paula se saiu com observações sobre as trocas camarárias presidenciais, necessárias, ao que parece, para evitar as tais redes de subsídio dependência angariadora de votos e empregadora de amigos:
- Ao menos ficassem lá no curral deles! Seara sai de Sintra para concorrer a Lisboa, Moita Flores, da câmara de Santarém, vai concorrer a Oeiras…
- Então e o Isaltino coitado?
Solidárias, lembrámos vários destinos camarários para o Isaltino, Fundão pareceu-nos o curral mais de acordo com os fundos da sua escola transformadora de espaços físicos e simultaneamente enriquecedora do seu alforge pessoal de fundura acentuada, ao que se diz.
E voltámos ao caso de Ana Leal e às escolas GPS que, segundo a Paula, começaram com cooperativas de ensino onde não havia escolas, o que fora uma coisa útil. Mas, aos meus elogios à coragem de Ana Leal nas suas entrevistas de denúncia, a minha filha concluiu que ela só entrevistara a arraia miúda, os responsáveis mantendo-se encolhidos nos seus currais de importâncias ganhas na impunidade de uma democracia que os catapultou para a ribalta do poder económico e outros poderes disso consequentes, como significado ao nosso nível do termo “democracia”.
Mas é tempo de fazer compras de Natal. É tempo de lembrar Fernando Pessoa, nas suas contradições e paradoxos de solitário triste e simultaneamente contente do seu distanciamento desse mundo aconchegado, onde ele não quer ter lugar .
Natal... Na província neva.
Nos lares aconchegados,
Um sentimento conserva
Os sentimentos passados.

Coração oposto ao mundo,
Como a família é verdade!
Meu pensamento é profundo,
Stou só e sonho saudade.

E como é branca de graça
A paisagem que não sei,
Vista de trás da vidraça
Do lar que nunca terei!

Tempo da tristeza de Pessoa, tempo da nossa tristeza, de motivos menos artistas, porque apenas temerosos das consequências da nossa neve de provincianos.

 

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Os obreiros do futuro


Eu acabava de contar à minha amiga a seguinte conversa com a minha mãe, pelas quatro ou cinco da madrugada, depois de bastas vezes ter sido por ela acordada, nessa noite para esquecer, nos seus pânicos e inseguranças sobre a hora da partida, com as minhas prontas e quantas vezes iradas mostras de cansaço e sono:

- Tu assim não duras muitos anos. A esse ritmo. Vai dormir!
- Só se tu me deixares. Não me acordes.
- Só se for por uma coisa boa.

A minha amiga riu e admirou a pronta resposta da minha mãe, o que eu não deixei de corroborar, apesar de notar a serena perfidiazinha do discurso materno penalizado, distanciando-se da sua inteira responsabilidade no meu fim à vista.

Chegou a minha filha Paula que trouxe a notícia do grave escândalo, que a minha amiga também escutara na TVI, na reportagem de Ana Leal.

Ao que parece, o grupo de colégios privados GPS, ligados ao poder político, recebera dos cofres estatais 81 milhões de euros nos últimos dois anos e meio. E enquanto as escolas públicas tinham um número diminuto de turmas, que por isso eram superlotadas, dadas as aulas nas condições mais ineficazes, o Orçamento do Estado preparando-se para cortar na Educação, na Saúde, etc., favorecera inexplicavelmente os tais colégios GPS – 26, surgidos de governos anteriores – com verbas desconformes, que a corajosa reportagem de Ana Leal denunciara, entrevistando responsáveis, daqueles que se foram enchendo nos escândalos sucessivos de governações endividantes, num país impunemente a saque.

A minha filha insurgia-se, acompanhada na ladainha da indignação pela minha amiga, uma vez mais nos debruçámos sobre os cortes nos vencimentos e subsídios favorecedores das trafulhices com raízes fundas nos diversos governos de uma democracia criada exprès para esses e seus acólitos.

Realmente, não temos escapatória, os escândalos brotam continuamente, como tortulhos em dias de invernia, e não há segadora que ceife o mal pela raiz, que as raízes se vão espetando mais e mais profundamente nos terrenos, numa época em que a inocência parece extinguir-se, sem retorno.

A inocência que transparece nos últimos versos de que tomei nota já há uns tempos, nas diversões solitárias da minha mãe:

Meu filho, respeita os ninhos!
Pensa na pena que tem
A pobrezita da mãe,
Quando se vê sem filhinhos.  

            “Respeita os ninhos”: fórmula educativa ligada a sentimentalismos ultrapassados. Há  muito já que acordámos para “uma coisa boa”, não a subentendida no sagaz dito da minha mãe, envolvendo qualquer nova feliz, mas a onomatopeia “Tlim! Papo!” dos versos de João de Deus, responsável pela marcha do nosso progresso em desordem.

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Rios, penedos, Heraclito para alguns gostos


«Sozinha no bosque / Com meus pensamentos, / Calei as saudades, / Dei trégua a tormentos.
Olhei para a lua, / Que as sombras rasgava, / Nas trémulas águas / Seus raios soltava.
Naquela torrente / Que vai despedida / Encontro, assustada, / A imagem da vida.
Do peito, em que as dores / Já iam cessar, / Revoa a tristeza / E torno a penar.»
Foi a marquesa de Alorna a autora dos versos supracitados,  versos de solidão e de tristeza, que boas razões teve para ser triste, versos de contemplação do rio e do conceito heraclitiano de equiparação do seu fluir com o curso efémero da vida, e o consequente renovar subjectivo da tristeza pelo sentido da imagem clássica, que Ricardo Reis concretizou, numa doutrina de epicurismo tristemente céptico se não mesmo estóico: «Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.»
Muitos usaram a imagem do rio para outros efeitos artísticos, o próprio Júlio Dinis não deixou de o animizar na voz graciosa da Clara e do Pedro no início dos seus  amores: “Ó rio das águas claras / que vais correndo p’r’ó mar / não rias das minhas penas / tem pena do meu penar.…”. A Menina e Moça, muito tempo antes, na água do rio (“daquele monte”) que perto dela fazia um “tamalavez de corrente”, onde iria cair o rouxinol morto, depois de tanto trinar, referira o obstáculo que causava à água um “penedo que no meio dela estava” a qual “se partia para um e outro lado murmurando”, o que logo a fizera concluir sobre a analogia dos entraves que se vão oferecendo aos seres, mesmo os “sem entendimento”, em texto simbólico que vale a pena transcrever: «E estava ali aprendendo tomar algum conforto no meu mal: que assi aquele penedo estava ali anojando aquela água que queria ir seu caminho, como as minhas desaventuras noutro tempo soíam fazer a tudo o que mais queria, que agora já não quero nada. E crecia-me daquilo um pesar; porque a cabo do penedo, tornava a água a juntar-se e ir seu caminho sem estrondo algum, mas antes parecia que corria ali mais depressa que pela outra parte; e dizia eu que seria aquilo por se apartar mais asinha daquele penedo, imigo de seu curso natural, que como por força ali estava.»
Alberto Caeiro contrapôs, com simplicidade intencional e ironia, o rio Tejo e o da sua aldeia, em termos de dimensão e importância:

O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia, / Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia / Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.

«O Tejo tem grandes navios / E navega nele ainda, / Para aqueles que vêem em tudo o que lá não está, / A memória das naus.
«O Tejo desce de Espanha / E o Tejo entra no mar em Portugal. / Toda a gente sabe isso. / Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia / E para onde ele vai / E donde ele vem. /E por isso, porque pertence a menos gente, / É mais livre e maior o rio da minha aldeia.
Pelo Tejo vai-se para o Mundo. / Para além do Tejo há a América / E a fortuna daqueles que a encontram. / Ninguém nunca pensou no que há para além / Do rio da minha aldeia.
O rio da minha aldeia não faz pensar em nada. / Quem está ao pé dele está só ao pé dele.»
Foi a minha mãe que motivou gratas evocações de leituras próprias desse “rio da vida”, que tão variadas facetas toma no seu fluir. Tem estado doente, receámos por ela, como o próprio médico. Perdeu o canto, perdeu a referência “massacrante” aos seus tempos de rapariga, deixou de contar histórias, persignou-se e benzeu-se e chorou com mais afinco, no terror da partida. Há dias, estava eu sentada ao pé dela, em aproximação assustada, saiu-se com a quadra seguinte, que pronunciou lentamente, numa autopiedade de voz trémula que captei e logo me irmanou na partilha e compreensão do seu sofrimento, fazendo-a repetir, para anotar pressurosamente:

«Já não tenho pai nem mãe
Nem neste mundo parentes
Sou filha das tristes ervas
Neta das águas correntes.»
               Era mais uma quadra que fora buscar aos arcanos da sua memória a caminho do centésimo sexto aniversário, retomando assim o fluxo das recordações, e com essas de novo a esperança na sua continuação neste mundo, com muita pena de si, contudo, sem família, panteisticamente achada nas coisas da natureza,  conforme os versos traduziam, e que tão em consonância estão com a nossa condição de seres em pendência de crise, explícita no nosso fado, que já a Menina e Moça tão sentidamente explorou.
               Neta das águas correntes”, dizia a quadra, sem, contudo, referir nenhum penedo adverso, como aquele do “Livro das Saudades” de Bernardim Ribeiro, que “estava ali anojando aquela água que queria ir seu caminho”.
            Mas ainda hoje, sim, os “penedos” continuam a entravar o curso natural de uma governação que queira prosseguir dentro do caminho justo. São muitos, os penedos. Não sei se a água continuará a fluir.
Que flua para a minha mãe mais uns tempos ainda, sequem, embora, as tristes ervas.