A história
de Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda, morgado de Agra de Freimas na aldeia de
Caçarelhos, vem contada em “A Queda de um Anjo” de Camilo Castelo
Branco. É a história de um homem
cumpridor, bom leitor dos clássicos greco-latinos e dos clássicos portugueses
anteriores ao século XVIII, e como tal seguidor dos parâmetros de riqueza de
linguagem e do conservadorismo conceptual neles colhidos. A intenção
caricatural é óbvia, já contida nos nomes próprios e na inadaptação da
personagem a um mundo moderno em que as discrepâncias sociais se não coadunam
com uma virtude gerada na muita leitura moralista de antanho e que um casamento
de conveniência com uma prima Teodora de Figueiroa “de génio cainho e
apertado” tanto na orientação económica como na tacanhez cultural e
matrimonial, fizera anquilosar numa austeridade de conceito e vivência, “anjo”
defensor e praticante de uma virtude passadista. Deputado por Miranda em
Lisboa, fazem furor pelo ridículo os seus trajes provincianos, e pela admiração
controversa os seus discursos parlamentares de uma objurgatória inflamada e
corajosa, em retórica clássica e rica, de inadaptado à modernidade do viver
citadino. A paixão por uma prima brasileira, viúva de um seu primo – D.
Ifigénia Ponce de Leão, que vem a Portugal requerer herança do marido defunto –
humanizará e embelezará fisicamente a figura de Calisto Elói e os seus
conceitos cediços, que o contacto com os modernos franceses ajudará a
transfigurar, numa “queda” que corresponde mais a uma visão curta do
preconceito provinciano do que a um Camilo, em vias de mudança quanto ao
radicalismo dos conceitos, quer relativamente ao amor, perdendo em
espiritualidade romântica e ganhando em sensualidade realista, quer à modernização dos costumes, ganhando em
dimensão.
Uma
história banal, em que sobretudo contam a riqueza do discurso aliada a uma
sardónica intenção crítica, deslumbrando-nos de admiração pelo escritor e pelo
seu génio literário, de um poder linguístico inexcedível, prova de um “nocturna
versate manu, versate diurna” do conselho horaciano, de que sentirão sem
dúvida irremediável falta no nosso ensino de agora os ainda existentes filólogos
do classicismo, que a orientação educacional nos severos tempos de Salazar
permitiam que fosse aprendido nos próprios estabelecimentos liceais, e que as
mudanças pós-abrilinas feitas na sociedade e na governação, para um abaixamento
e rebaixamento linguístico e nacional de peso, retiraram, sem pejo, do ensino e
da exigência cultural.
Vivendo nós
numa época de debates parlamentares, em que a retórica pende para o ataque
monocórdico permanente à acção do governo numa nação que governos sucessivos
fizeram afundar num fosso de empobrecimento económico dificilmente remediável,
a temática de alguns debates no parlamento, na novela camiliana causa uma
admiração pelo primor da linguagem que não resisto a transcrever, como forma de
deleite de “nocturna et diurna manu” desses nossos clássicos, por muito risíveis
que se nos afigurem as ideias retrógradas.
Eis alguns respigos
dos seus discursos, o primeiro (Capítulo II – “Dois Candidatos”) ainda dirigido
aos seus patrícios da aldeia de Caçarelhos que o catapultaram para Lisboa, como
seu representante:
« – Portugal
está alagado pela onda da corrupção, que subverteu a Roma imperial! Os
costumes de nossos maiores são metidos a riso! As leis antigas, que eram
baluarte das antigas virtudes, dizem os sicofantas modernos que já não servem à
humanidade, a qual, em consequência de ter mais sete séculos, se emancipou da
tutela das leis. (Alusão ervada aos vereadores de Miranda, que discreparam do
intento restaurador do foral dado por D. Afonso. Vinham a ser sicofantas os
colegas municipalenses.) “Credite, posteri”! – exclamou Calisto Elói com
ênfase, nobilitando a postura.»
No final do
Capítulo IV -“Asneiras da erudição”
- após uma busca vã de Calisto de uma fonte milagreira em moléstias de olhos –
o Chafariz dos cavalos, na Rua Nova, segundo lera, e que provocara a
chacota de um bacharel, que o ouvira: “-
Este homem parece que tem uma cavalgadura magra no corpo!” , comenta o
narrador de “A Queda dum Anjo” com a mordacidade habitual:
«Com
estas zombarias é que em Portugal os sábios são premiados… Se Calisto fosse um
parvo, o Governo dava-lhe um subsídio até ele achar o chafariz dos cavalos.»
Nos novos
tempos, são, naturalmente outras, as prebendas ofertadas aos tais, e também
nunca com zombaria relativamente a eles, virada aquela sobre o povo pagador das
ofertas.
É no
capítulo VI – “Virtuosas parvoiçadas” - a propósito da ópera de
Donizetti Lucrécia Bórgia, que Calisto fora ver ao teatro S. Carlos, na
companhia do abade de Estevães, que aquele se rebela contra o facto de o Estado
subsidiar espectáculos de “exposição das chagas asquerosas da humanidade”
o que o movera a um ardente discurso de protesto no parlamento, perante a
hilaridade geral:
« …
- Senhor
Presidente! Que me não queiram persuadir de que estou em casa de orates!
Que é isto? Que bailar de ébrios é este em volta de Portugal moribundo?
Como podem rir-se os enviados do povo, quando um enviado do povo exclama: Não
tireis à nação o que ela vos não pode dar, governos! Não espremais o úbere da
vaca faminta, que ordenhareis sangue! Não queirais converter os clamores do povo
em cantorias de teatro! Não vades pedir ao lavrador quebrado de trabalho os
ratinhados cobres das suas economias para regalos da capital, enquanto ele se
priva do apresigo de uma sardinha, porque não tem uma pojeia com que comprá-la.
E vinte contos e trinta contos de subsídios que moralidade fomentam, que
lâmpadas acendem nos altares da civilização?...
O que são comédias? … Não menos fervorosamente peço a V. Exª e às
câmaras que leiam as miríficas páginas do nosso oratoriano Manuel Bernardes,
sobre representações teatrais. Responda por mim o eminente moralista e mais que
todos vernaculíssimo escritor: “Os assuntos das comédias pela maior parte
são impuros, cheios de lascivos amores, de galanteios profanos, de papéis amorosos,
de rondas, passeios, músicas, dádivas, visitas, solicitações torpes, finezas
loucas, empenhos desatinados, quimeras, empresas impossíveis, que solicita
ordinariamente um criado, uma mulher terceira, uma chave, um jardim, uma porta
falsa, um descuido de pai, ou do irmão, ou do marido da dama, e tudo isto
costuma parar em uma comunicação desonesta, em um incesto, ou em um adultério,
em que há muitos lances torpes, louvores lisonjeiros da formosura, expressões
afectadas de amor, promessas de constância, competências de afectos, temores, ciúmes,
suspeitas, sustos, desesperações, e em suma uma gentílica idolatria, ajustada
pontualmente às infames leis de Vénus e Cupido, e aos torpes documentos de
Ovídio no livro de “Ars amandi”-
«Vozes da
galeria: “Muito bem! Bravo! (Espirram as risadas de vários sujeitos.
Gargalhada compacta).
«O orador:
- Senhor presidente! Eu irei contar aos povos, que me aqui mandaram, as
gargalhadas com que fui recebido no seio da representação nacional, porque
ousei dizer que um país carregado de dívidas não instaura divertimentos
atentatórios dos bons costumes com o dinheiro da nação. Irei dizer aos meus
constituintes que se desfaçam das arrecadas e cordões de suas mulheres e
filhas, para enfeitarem as gargantas despeitoradas das Lucrécias Bórgias que
custam quarenta libras por noite!......
«….O que
eu requeiro, em nome da justiça e da pobreza do país, é que se não sisem os
povos provinciais para manutenção dos
divertimentos de Lisboa……»
Quando
Bernardes condenava a arte dramática dos clássicos, em síntese lapidar, de uma
exactidão abrangendo tantos mestres da comédia antiga e moderna, uns provocando
a gargalhada alvar, outros o sorriso exultante da conivência, verificamos
quanto hoje isso ainda é verdadeiro, na variedade dos executores da “Arte de
Talma”, uns merecendo o apreço, outros o menosprezo, em função da qualidade ou
da vanidade de conteúdo e de actuação, onde o desbragamento gestual ou de
imagem realmente enfastiam mais do que contribuem para formar e distrair.
Mas também
sobre o luxo o morgado da Agra se irá
pronunciar, em páginas de leitura necessária ainda hoje, de que transcrevo o
passo seguinte (Cap. VIII – Faz rir o Parlamento), apesar da pertinência
e actualidade dos ditames evocados:
«….O que
eu vejo? Quer o ilustre deputado saber o que eu vejo? É a indústria agrícola
de Portugal devorada pelas fábricas do estrangeiro; é o braço do artífice
nacional alugado à escravidão do Brasil, porque a pátria não lhe dá fábricas; é
o funcionário público prevaricado, corrupto e ladrão, porque os ordenados lhe
não abastam ao luxo em que se desbarata; é o julgador dos vícios e crimes
sociais transigindo com os criminosos ricos, para poder correr parelhas com eles
nas regalias; é a mulher de baixa condição prostituída, para poder realçar
pelos ornatos sua beleza; é a aluvião de homens inábeis, que rompe contra os
reposteiros das secretarias pedindo empregos e conjurando nas revoluções, se
lhos não dão. O que eu vejo, senhor presidente, são sete abismos, e à boca
de cada um o rótulo dos sete pecados capitais que assolaram Babilónia, Cartago,
Tebas, Roma, Tiro, etc. É o luxo, senhor presidente!”
É contra os
arrazoados conservantistas de Calisto Elói que se pronunciará “O Doutor do
Porto” (Cap. IX), Dr. Libório Meireles , “sujeito de trinta e
dois anos, cara honesta, e posturas contemplativas” que “reunia os
predicados que nos outros países ou passam despercebidos, ou são solenizados
pela irrisão pública; mas, em Portugal, tais predicados alçam o homem ao cume
da escala política, e dão-lhe escolta de absurdos propícios até onde o parvo
laureado quer guindar-se”.
O discurso
de Libório, condenado à irrisão, vale pelo mimo de uma retórica que põe em jogo
a mordacidade de Camilo, envolta na sua proverbial riqueza linguística. Dele
transcrevemos alguns passos que hoje seriam inusitados, mas que servem para
confronto de contraste com a objectividade e o rigor discursivo de alguns dos
nossos parlamentares ou com a iracúndia banal ou grosseira do discurso batido
de outros:
«- Senhor
presidente, discorri cerca de ano por estranhas plagas. Fui-me mundo fora com o
meu bordão e concha de romeiro do progredimento social. Bebi a tragos nas
enchentes de mel hibleu que desborda dos mananciais da civilização. Vi muito,
vi tudo, que me abraseavam sedes de aprender, fomes de Ugolino que rompe seus
ferros e se defronta com lautos estendais de loirejantes iguarias. Que
delíquios de exultação me tomavam alma! Como eu me sentia a tragar luz e
humanidade por aqueles climas onde o supremo arquitecto chove inventos a frouxo e a flux! Vi muito e vi tudo, senhor
presidente. Encheu-se-me o peito de
anelos pela sorte da Pátria, e de amores muito seus dela, como de filho que do
imo das entranhas lhe quer. Volvi-me no rumo do ninho meu; e mal me enrubesceram
os horizontes desta minha e tão nossa terra de fragrâncias e idílios, assim me
coou às fibras do seio um como filtro de melancolia, que me subia aos olhos
exsudando lágrimas.
«…. É que
eu, senhor presidente, muito adentro de alma sentia uns rebates de presságio.
Locustas de excruciantíssimos tóxicos, que me estavam empeçonhando esperanças
de ainda ver florejarem os agros da Pátria, estrelarem-se estes céus plúmbeos e
rasgarem-se os horizontes à onda fecundante deste ubérrimo torrão. Doeu-me
alma, choraram-me olhos, e compreendi a angústia virgiliana do hemistíquio: “dulcia
linquimus arva”. (Muitos
apoiados)
«Pois
quê, senhor presidente? Cansariam mágoas a quem se lhe antolhasse ter de ainda
ouvir nesta casa voz de homem do ventre deste século, do homem que aqui entrou
a verter no gazofilácio do templo do eterno Cristo da eterna liberdade, a
dracma ou o talento, a mealha ou o tesouro da dedicação! Repito, senhor
presidente, quem deixara de estilar bagas de pranto, ao aportar em chão
português com o presságio de que, alguma hora, havia de ouvir neste
sancta-sanctorum das luzes, blasfêmias contra o luxo, que é a aorta do corpo
industrial?
Libório
prossegue neste arrazoado precioso, que vale a pena ler na íntegra, tal o
rebuscamento usado para denegrir o colega chegado das berças. Mas Calisto não
se deixa vencer:
«… Estou
a desconfiar que a minha linguagem seca e desornada raspará nos ouvidos da
câmara, que ainda agora se deleitou com a retórica florida do senhor deputado
do Porto. Sou homem das serras. Criei-me por lá no trato fácil e chão dos
velhos escritores: aprendi coisa de nada ou pouquíssimo. A mim, todavia, me
quer parecer que o falar gente do uso comum é coisa útil para nos entendermos
todos aqui, e para que o país nos entenda. Do menospreço desta utilidade resulta não poder eu
aperceber-me de razões para cabalmente responder aos argumentos do discreteador
mancebo. Percebi, a longes, pouquinhas ideias; porém, querendo Deus, hei-de, se
me ajudar a paciência com que estudei o idioma de Tucídides, decifrar os
dizeres de S. Exª no Diário das Câmaras. (Riso.)
«O
ilustre deputado quer que o luxo indique a riqueza das nações. Isto é o que eu
entendi no seu arrazoamento. Em França viu S. Exª mosquitos por cordas. Pois,
senhor presidente, eu li que, em França, onde o luxo é maior, aí é menor, em
proporção, o número dos indivíduos ricos. (Vozes: Apoiado!) Este caso, se é
verdadeiro, corta pela haste as flores todas dos jardins oratórios do Sr. Dr.
Libório. (….)»
Capítulo IX
de “A Queda dum Anjo”, páginas admiráveis de discurso de uma
amplificação caricaturizante, que, pondo em destaque o pedantismo de um dos
intervenientes, não deixa de servir para realçar as verdades do bom senso do
protagonista da novela, fazendo-nos meditar no paralelismo de situações com as
da actualidade, verificando contrastes
de actuações, embora a mesma tendência irónica dos membros parlamentares. E, sobretudo,
verdades que hoje ainda dominam, como aquela referente a França de que “onde
o luxo é maior, aí é menor, em proporção, o número dos indivíduos ricos”.
Resta-nos
fazer votos para que também se enchesse “de anelos pela sorte da Pátria” o peito dos
nossos deputados e dos nossos governantes, enfronhados nos seus brilharetes
atrabiliários, e que uma ponderação de
maior modéstia provasse “os seus amores por ela, como de filhos que
do imo das entranhas lhe quisessem”, arredando para bem longe o
agouro do “Portugal moribundo” por conta do “bailar
de ébrios” da metáfora.
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