quinta-feira, 8 de novembro de 2012

“Feito para comer muito”


Hoje só ouvi expressões negativas ou de exorbitância colérica à minha amiga, donde concluí que ela estava com os “azeites”, para usar um termo da nossa riqueza produtiva portuguesa, mais em conformidade com a nossa simplicidade cultural de tipo agrícola, em vez do termo “humores” de um cariz filosófico, pouco quadrado ao cariz rústico dessa nossa referida simplicidade. Eis algumas expressões que lhe ouvi, que forcejei por rebater, por natureza embirrando com más disposições atrabiliárias, embora eu própria me possa penitenciar de momentos de idêntico carma, palavra que não sei bem se se aplica no contexto exposto, mas que é um termo de muita elevação intelectual que  muito eleva o seu aplicador.
“- Aquilo que o Marcelo explicou que não há solução para a Europa é aterrador”, foi o começo das suas observações de impacto, mas eu, bem disposta em relação ao presente, que nem sempre o ânimo me pede luta, por um carma de oposta envergadura, redargui que a Europa sempre foi palco de crises graves, de países em bulha, com uma Alemanha usando o pretexto de um atentado em Sarayevo ou as tendências criminosas do seu ditador de estima para organizar guerras mundiais, para só referir o século XX, ou a Rússia matando uma família inteira de czares para uma governação de sucessivos criminosos, não poupando os seus nem os europeus à sua esquerda, com muros pelo meio cortando uma cidade ao meio, em série de horrores de que estivéramos a salvo, nós, portugueses preguiçosos, incluindo Marcelo, que não sabíamos assim tanto o que foram momentos aterradores, para ele se pôr a falar de não-soluções, que sempre as houve, e os povos safaram-se e progrediram, talvez por serem menos preguiçosos do que nós.
Mas a minha amiga continuou a expor sobre a “Europa toda rota”, sobre uma Alemanha que se “está a ir abaixo das canetas e por isso o povo alemão e povos nortenhos discordam dos auxílios prestados aos povos mediterrânicos ”, e eu rebati com a drástica observação de que o que eles têm é  falta de luz e de calor para tal frigidez de pensamento.
A minha amiga citou a Renault que “está a preparar-se para começar a despedir, dá a impressão de que não há solução”, e concluiu:
- Como é que o ser humano vive sem dinheiro?
Eu então falei nas prestações, de que sempre vivi, e que sempre me fizeram sentir essa deficiência da falta de dinheiro, empatado o vencimento nas prestações, pagas pontualmente no dia do vencimento, mas vivendo feliz por ter adquirido o livro, o bibelot ou o objecto eléctrico para ajudar a minha preguiça ou satisfazer as minhas ânsias espirituais.
Dinheiro escasso sempre, sem férias nunca, como tantos fazem, correndo o mundo.  Mas as férias em qualquer parte se “curtem”, e a nossa casa é o local ideal, para viajar mais hoje, com o auxílio poderoso da internet e outros meios mediáticos, para os “passeios” à base de imagens, para tantas leituras, para tanta diversão. Até mesmo Garrett se poderia passear com comedimento, tendo mestres como antecessores, como afirma no começo da sua viagem a Santarém, no seu livro que iniciaria a modernidade na literatura portuguesa:
«Que viaje à roda do seu quarto quem está à beira dos Alpes, de Inverno, em Turim, que é quase tão frio como Sampetersburgo — entende-se. Mas com este clima, com este ar que Deus nos deu, onde a laranjeira cresce na horta, e o mato é de murta, o próprio Xavier de Maistre, que aqui escrevesse, ao menos ia até o quintal. Eu muitas vezes, nestas sufocadas noites de Estio, viajo até à  minha janela para ver uma nesguita de Tejo que está no fim da rua, e me enganar com uns verdes de árvores que ali vegetam sua laboriosa infância nos entulhos do Cais do Sodré.
E concluí com a história que lera de pessoas que escolheram o Alentejo para viver, cultivando, fazendo troca de produtos, sem necessidade de muito dinheiro, mas logo a minha amiga rebateu:
- O Alentejo só dá para meia dúzia. Cidades hortícolas? Logo o pedaço de terra cultivado no quintal seria objecto de assalto. E onde é que há horta suficiente? O ser humano foi feito para comer muito.
Desisti.

 

 

 

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