segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Repetição


A Paula passou cá por casa, de passagem para a manif. Iria buscar a Binha para virem apanhar o comboio em S. Pedro. Lembrei a única manif. da minha vida, em que fui com a minha colega Alice, de ideais políticos opostos mas de idêntico equilíbrio e humor nos conceitos existenciais, apanhar o comboio em S. Pedro, para o Ministério da Educação, numa expressão do nosso repúdio pelas políticas educativas, mas desandámos antes em direcção à Baixa,acabando na pastelaria Central a comer marinos, uns bolinhos fofos da Central que o meu amigo Dr. Juiz Brites Ribas me levara a conhecer, anos antes, nas longas passeatas que demos na Lisboa dos seus velhos amores, tendo-nos conhecido numa bicha em volta da Fil, naquele ano de 75, onde íamos receber o vencimento moçambicano da altura, e onde trocáramos evocações, ficando ele agradado por ter encontrado em mim a faceciosa Regina de Sousa da Página da Mulher do Jornal Notícias de Lourenço Marques.

Também a minha filha e colegas, embora inicialmente aliadas ao grupo recalcitrante, acabariam no Corte Inglês a admirar as montras, deixando aos novos o trabalho da reclamação que o ideal democrático estabeleceu por cá e de que todos colhemos o usufruto, com os aumentos que tivemos nos nossos vencimentos, que os governantes ordenavam para nos calar as bocas ambiciosas, encobrindo os seus próprios jogos económicos, à custa de empréstimos sucessivos que a banca europeia fornecia e de que agora exige o pagamento que, naturalmente, não nos convém fazer, habituados que estamos à sedução de uma falsa abastança de que somos obrigados a prescindir.

E a Paula foi armada de uma rede de caçar borboletas, aonde juntou os textos e frases da sua reclamação. Estivera com o Ricardo, que escolhera a praia do seu comodismo, mas que em vinte minutos compusera um texto de protesto para a rede da irmã, que intitulara os seus textos de “O VAZIO”. Eis os textos, na sua sequência temporal:


“Muito maior açougue é o de cá, muito mais se comem os brancos.”

(Padre António Vieira, séc. XVII, “Sermão de Santo António aos Peixes”, cap. IV)

 
“Se me lembro, Élia, tiveste

De belos dentes a posse:

Numa tosse dois se foram,

Foram-se dois noutra tosse.

 
Segura, noites e dias,

Podes tossir a fartar;

Podes, que tosse terceira

Já não tem que te levar. “

Bocage (séc. XVIII)
 

“A única ocupação mesmo dos ministérios era esta - «cobrar o imposto» e «fazer o empréstimo». E assim havia de continuar…

(…) desse modo o país ia alegremente e lindamente para a bancarrota.

- Num galopezinho muito seguro e muito a direito… Ah, sobre isso ninguém tem ilusões… Nem os próprios ministros da fazenda! A bancarrota é inevitável; é como quem faz uma soma…”

(Eça, séc. XIX, “Os Maias, cap. VI)


“Eles comem tudo e não deixam nada…”

(Zeca, séc. XX)


 “A morte saiu à rua num dia assim …só olho por olho e dente por dente vale… dente por dente assim, que um dia rirá melhor quem rirá por fim…”

(Zeca, séc. XX)


 “E enquanto eles andam para trás e para a frente, para a esquerda e para a direita, nós não passamos do mesmo sítio.”

(Manuel, in Felizmente há Luar, de Luís de Sttau Monteiro, séc XX)

 
“Era uma vez um rei que fez promessa…

Era uma vez uma gente que construiu…

Era uma vez…”
(José Saramago, Memorial do convento, séc. XX)

 

Por um franguinho sem penas

Tive muito que penar.

Arranquei-as uma a uma

Vejam onde fui parar!

Veio o tipo da finança,

Queria o meu lucro cobrar,

Não se pode encher a pança

Sem outros alimentar.

A seguir veio o primeiro,

Que se diz ser rato velho.

As penas colou por inteiro,

Tornou-se o frango em coelho.

Proibiu-me que o trincasse,

Como se de sacro bicho se tratasse.

Roubei uma perna, fugi,

E vim comê-la p’r'aqui.

Ricardo Lacerda (em dia de Manif, século XXI)

 
Quanto ao meu filho João, foi com um amigo no cortejo das reclamações, com a compostura do seu descontentamento.

Pobres destes nossos filhos e pobres dos filhos deles!

Estamos no século XXI, mas não independentes, como o fomos, aparentemente, por bula papal a partir de 1143, com um interregno de sessenta anos pelo meio, que homens patriotas desfizeram. Vivemos hoje e viveremos na dependura , vae victis!, condenados às marchas dos nossos contentamentos e também dos nossos descontentamentos. As marchas dão vazão às nossas alegrias e às nossas raivas. Os caminhos dos media fazem o resto. Mais na sombra, sensíveis unicamente ao eu e ao tu, insensíveis à palavra pátria e à ordem para a respeitar, em qualquer nação que se preze. Vae victis!

Um comentário:

Anônimo disse...

As borboletas unidas, compradas no chinês e tão multicoloridas, jamais serão vencidas.
Paula