segunda-feira, 24 de setembro de 2012

A menina sem papá


O homem jovem apareceu com a filhita, separados um do outro, entraram no café e vieram para a esplanada, a criança triste e bem comportadinha, o homem para beber o seu café. Mudos, distantes, de caras voltadas, pois nem sequer em frente-a-frente amigável mas cada um no lado contíguo, a criança magrita provavelmente engolindo a sua tristeza, de bracinhos pendentes e olhos perdidos solitariamente. O homem jovem telefonou em voz baixa pelo telemóvel, pagou a bica. Não houve um olhar trocado, uma palavra dita, ergueram-se, foram-se embora, separados, ambos magros, os passinhos da criança mais rápidos, para acompanhar os do pai que, naturalmente, não lhe agarrou na mão.

A minha amiga, que me tinha feito mudo sinal para reparar no quadro, apressou-se a explicar: a criança era sua vizinha recente, tinham chegado havia pouco ao prédio, uma família composta de bisavó, bisavô, avó, extremamente gorda, para subir pesadamente os três andares, a tia, a mãe - três mulheres divorciadas - a menina magra e uma irmã de berço. O homem jovem, sério e distante, estava separado da mãe da criança. A bisavó tinha morrido, a menina chorara convulsivamente ao ser informada, o pai fora buscá-la para a distrair.

Um quadro aterrador, de uma criança que não ama o pai, pois chora sempre que este a vai buscar, desamor talvez feito de medo, pois que o progenitor não tenta encurtar a distância entre ambos, jamais debruçado sobre a filha, nem mesmo na circunstância presente da tragédia vivida da morte da bisavó.

- Há os casos em que as crianças não querem ir com o pai.

A minha amiga recordou a filha de uma sua amiga, obrigada pelo Tribunal aos fins de semana e às férias com o pai, que ela recusara chorando e argumentando em plena sessão do tribunal, contra uma decisão judicial que ela repelia, centrando os seus afectos filiais exclusivamente na mãe. Lembrei que quando isso se passara, há muitos anos já, em que a minha amiga servira de testemunha de defesa, eu condenara a filha desamorosa e a mãe, que provavelmente a instigara nesse sentido. E contara do caso seu conhecido da mãe que igualmente se separara em desavença, mas sempre respeitara o direito dos filhos ao amor paterno.

- Pois ela tem feito um percurso muito bem feito. Foi excelente aluna e tem um excelente trabalho como como técnica de radioterapia. Apesar da falta do pai, que ela sempre detestou.

E voltámos a referir a criança que se sentara à nossa frente na esplanada, ente indefeso contra a violência da presença muda do pai ao seu lado, sem sequer uma mão estendida para a criaturinha a quem dera o ser.

E arrepiámo-nos, ante os maus tratos sofridos por muitos órfãos em todos os tempos, coisa que nos habituáramos a reconhecer já na infância, nas gatas borralheiras e brancas de neve e tantas outras figuras das histórias de encantar e continuáramos a reviver nas Jane Eyres da adolescência, de madrastas ásperas e injustas, o que couraçara as enteadas para um sentido de responsabilidade e de luta pela vida, como neste último caso, ou no da Margarida de Júlio Dinis, no das histórias de encantar as princesas sendo favorecidas pela bênção das fadas madrinhas salvadoras.

Mas na sociedade ocidental imperam as separações entre os casais, o que traz como consequência as situações sempre injustas e mesmo trágicas das divisões dos filhos, reclamados pelos respectivos progenitores, frequentes vezes usando de vis manobras de chantagem material na recusa de participação financeira na educação dos filhos, mau grado as decisões judiciais. O filme “Kramer contra Kramer”, obra prima do cinema americano, explora magistralmente o assunto, num amor feito de cedência, opondo ao egoísmo a comovida opção materna final pelo bem-estar do filho, como exemplo de grande beleza moral, embora, talvez, pouco real, num mundo de tropelia.

Retomámos o optimismo recordando os casos conhecidos dos filhos de pais separados em amizade, ou, pelo menos, tentando salvar o equilíbrio emocional dos filhos com as dádivas das suas generosidades compensadoras da ausência, outras vezes empenhando-se a sério no seu crescimento espiritual.

A vida segue, depressa chegará a vez dos filhos de seguirem as suas opções de vida, as amarras cada vez mais soltas, num mundo cada vez menos comedido.

Mas a figurinha frágil daquela menina triste, ao lado dum pai tão indiferente, permanece como um nó, no nosso espanto acabrunhado.

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