quarta-feira, 19 de setembro de 2012

A hipocrisia de V. P. V.


Costumo gostar dos textos de Vasco Pulido Valente, porque neles reconheço a capacidade de análise histórica das situações descritas além de uma certa isenção crítica, que sempre atribuí a hombridade intelectual, apesar do tom verrinoso de que os reveste.

Não foi assim o de Domingo, 2 de Setembro – “A hipocrisia da necessidade” – em que, de forma tão radical quanto reveladora de ignorância e de parti pris contra o sentido da colonização portuguesa, destrói o significado dos descobrimentos e seus heróis como glória portuguesa ímpar, aviltando toda a acção ultramarina, em inesperadas afirmações de ódio: “O império português de África foi, desde o princípio, um monumento de incúria, de miséria, de exploração e guerra. Nada que nos permitisse o mais leve orgulho e de que não deveríamos falar, sem alguma vergonha e humildade.”

Não, nada de verdadeiramente gigantesco se criou nos territórios ultramarinos, apesar de Cahora Bassa, nada de semelhante ao que se fez nos Estados Unidos, Austrália, países da América latina, África do Sul… V. P. V. sabe da dimensão do seu rectângulo, não poderia exigir que tivéssemos nas colónias o desenvolvimento que os países autónomos que se iniciaram pela conquista e até destruição das riquezas dos povos aborígenes, e seguiram independentes e ricos, com os conquistadores brancos no comando. As colónias portuguesas serviram de manjedoira ao povo do rectângulo, e se mais não fizeram foi porque sempre se depararam aos empresários ultramarinos inúmeros obstáculos para a concretização dos seus empreendimentos. Mas apesar de tudo, parece destituída de bom senso a afirmação simplista de que a África foi monumento de incúria, miséria, exploração e guerra. Só quem a não conheceu poderá ser assim radical, esquecendo as guerras intestinas nos países de sucesso e as suas explorações contadas na literatura americana do norte e do sul. Miséria e incúria chamar-lhe-á hoje se visitar as terras onde, no tempo dos portugueses, não havia fome, como existe hoje e muita obra civilizacional se construiu.

Quanto à troça que faz sobre a “descolonização exemplar” com que os seus fautores tentaram esconder o abandono e a derrota, apesar de tudo admiro este rectângulo e as suas gentes, desprezadas na pena de V. P. V., mas que tant bien que mal foram estendendo os braços aos ultramarinos que se fixaram aqui, abrindo concursos para colocação de tantos de cá e de lá.

A crise económica faz que, a troco das batatinhas, verguemos o dorso aos governantes dessas ex-colónias, para o envio dos nossos deserdados actuais de cá, o que Pulido Valente agradece. Mas “o que não se compreende nem se agradece, é a retórica do “engrandecimento de Portugal”, com que a hipocrisia doméstica resolveu cobrir uma situação de necessidade e falência. Portugal não precisa de palavras. Precisa de realismo e modéstia.”

Somos, de facto palavrosos e não só na exaltação pátria, com bastas excepções a esse dado. Vasco Pulido Valente aponta a hipocrisia doméstica da senda de reconstrução do espaçozinho rectangular, elevando patrioticamente o bom nome de Portugal, sempre com recurso ao exterior, para compor o seu interior.

Mas Vasco Pulido Valente, que despreza o seu país e dum modo geral os seus conterrâneos, manifesta a sua própria hipocrisia, fingindo uma bondade para com os negros que não faz parte dos seus talentos, reconhecendo que foram por nós tratados com incúria, miséria, exploração e guerra, sem provavelmente jamais ter posto os pés nas terras das navegações de outrora, para verificar “in loco” as ditas incúrias, misérias, etc., etc.. Tal como muitos outros dos capitães de abril, que também nunca puseram.

Completo estas observações com um texto do meu livro “Anuário – Memórias Soltas” (Editorial Minerva 1999) - «Colonialismo em parti pris» revelador de que outros ilustres que eu admiro, também jogaram com os seus saberes “à vol d’oiseau” para desfazer insensatamente no trabalho feito pelos portugueses nesse ultramar que tanto os deprimiu.

«O “Sexto Dia” de “A CRIAÇÃO DO MUNDO” de Miguel Torga:

«Um arrumar da casa, um sintetizar de momentos vividos arranchados de argumentação crítica, num verbo de uma precisão e uma limpidez inimitáveis.

Um Torga admirável e sempre admirado, na sua prosa e nos seus versos, rasgando os horizontes de um humanismo lúcido e desencantado, no seu rigor implacável.

O maior vulto presente das letras pátrias, sem dúvida. Sincero, agreste como as suas fragas, livre, altivo e acutilante como as águias que nelas poisam, novo Orfeu, tornando estático o Mundo, ante a essência divina do seu lirismo fluido e rico.

E todavia, embora previsto o comentário negativo sobre a colonização portuguesa em África, parece-nos demasiado apressada e capciosa uma tal visão maniqueísta, feita “exprès” para a sua síntese ideológica, que da vivência africana se limitou à viagem aérea de antemão artilhada em função de uma atitude crítica livresca e definitiva, escamoteando os condicionalismos que nela imperaram.

Assim, do povo que, embora limitado nos homens, construiu nações alargando os espaços da sua pátria, ignorou o esforço épico, pervertendo-lhe o sentido, e apenas empolando a trágica condição dos negros marginalizados, indiferente ao conceito de que, sem o branco, jamais o negro teria saído da sua condição pré-histórica, nem tão cedo teria ascendido à conscientização que gradualmente iria obtendo.

Na colonização só pôde ver segregação e desequilíbrio, ignorando o trabalho do branco no Ultramar, cavando, ensinando, construindo, explorado também na sua posição de pequeno burguês trabalhador, por uma pátria sempre mesquinha com os seus filhos.

Da sua viagem colheu apenas a imagem dos prédios da cidade branca, destoando das palhotas suburbanas, para logo concluir da miséria, exploração e servilismo do negro dominado. Referiu os baluartes do poder - a fortaleza, os quartéis, as esquadras de polícia - e os da missionação – os templos da fé.

Ignorou as escolas, as universidades, as aulas nocturnas para brancos e pretos trabalhadores, omitiu o paralelo com o universo português metropolitano, igualmente segregacionista e desequilibrado, ou até mesmo o paralelo com a situação vilipendiosa do emigrante português em terras de cultura e de maior civilização, omitiu casos – escassos embora – de formação universitária de naturais africanos, unicamente interessado em sublinhar o que se não fez em favor da valorização cultural do homem negro.

Ignorou o esforço heróico do povo colonizador, que mau grado a desproporção numérica e as contingências do seu posicionamento subalterno em relação a uma Metrópole sempre ávida e sempre madrasta, e da idiossincrasia do povo negro, lento e insubmisso, foi construindo e desenvolvendo, conquanto muito menos expressivamente do que a vizinha África do Sul, poderosa e autónoma-.

A colonização portuguesa assumiria assim o carácter hediondo do tráfico negreiro do Brasil de outrora.

Escrito já depois da Revolução de Abril, o discurso sobre tal colonização, faccioso e redutor, bem poderia ter merecido um comentário menos orientado em função de uma ideologia falaz, que o mundo inteiro aceita hipocritamente, conhecendo embora quanto são falsos e traiçoeiros os juízos humanos que defendem a terra para os seus naturais, indiferentes às consequências bem visíveis dessas descolonizações apressadas que, abandonando os naturais africanos ao primarismo dos seus instintos, mergulharam as suas terras na fome, agora real, e nas convulsões internas tribalistas, agora sim, verdadeiramente racistas e criminosas.

O “Sexto Dia de «A CRIAÇÂO DO MUNDO»:

Mais uma obra admirável, no seu discurso perfeito, mas que nos mostra igualmente quão limitados são os juízos humanos, quando reduzidos  à dimensão subjectiva ou tendenciosa de quem os produz.»

Dois vultos das letras estranhamente irmanados em míseros conceitos similares a respeito dum mundo vilipendiosamente entendido.

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