quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Santa irmandade


Encontrei na Internet, entre as fábulas de Florian,
- Um fabulista francês posterior a La Fontaine -
A fábula introdutória da colectânea -
«A Fábula e a Verdade» -
Que, no meu stress,
Li com muito interesse, por ver nela
A explicação da expressão tão bela
“Verdade nua e crua”
Como a que estava no poço
Da fábula de Florian,
Despidinha, coitadinha,
Antes de encontrar uma irmã.
Vejamos a qualidade
De tanta fraternidade:

«A Verdade, toda nuinha,
Saiu um dia do seu poçozinho,
Qual Carochinha
Postada à janela
Da sua casinha.
Com o tempo, a sua graça
Estava um pouco esvaída.
Jovens e velhos fugiam à vista dela,
Que maçada!
A pobrezinha
Ali andava amarfanhada,
Sem lugar achar onde habitar.
A Fábula, ricamente vestida,
Com plumas e diamantes,
Falsos na sua maioria
Mas muito brilhantes,
Como ouropéis imponentes,
Disse-lhe com simpatia: “Bom dia!
Que faz você neste caminho
Tão sozinha, pobrezinha?”
Responde a Verdade
Com a seriedade
Da sua temeridade:
“Como vê, estou gelada;

Em vão peço a quem passa
Uma casa como abrigo,
Muito embora sem postigo.
Mas, coitada!
A todos eu meto medo,
Credo!
E sem nenhum amigo!
Vejo bem
Que uma velha já nada obtém.”
“Você, todavia, é mais jovem do que eu,
Responde a Fábula, com a lealdade
Da sua sinceridade.
“Sem vaidade,
Em toda a parte eu sou bem acolhida,
Minha amiga. Mas também, Dama Verdade,
Porque anda tão despida?
Isso não está nada certo: olhe, alindemo-nos:
Que um mesmo interesse nos reúna.
Venha para a minha capa,
Cubramo-nos
E juntas caminhemos.
Em casa dos sábios, por sua causa
Eu não serei repelida;
Por minha causa, em casa dos loucos,
Você não será escarnecida:
Servindo, por este meio, cada uma o seu prazer,
Graças à sua razão, e graças à minha loucura,
Com alegria,
Verá, minha irmã, que por onde quer que andemos
De parceria,
Faremos boa figura.»
Ainda hoje é assim
Para ti e para mim,
Já o li em qualquer parte,
Creio que foi em Camões:
Por vezes a Verdade é tão estranha
Que mais parece patranha,
E a Mentira tão arteira,
Que parece verdadeira.
Leiamos então Camões
Que para tudo tem soluções,
E vendo o desconcerto do Mundo
Que dá mais vantagens à Sorte,
Por ordem do Profundo,
Do que ao Mérito real
- O que sucede ainda hoje, em Portugal –
Achou melhor voltar-se para Cristo
Para perceber melhor o porquê disto:

«Verdade, Amor, Razão, Merecimento,
qualquer alma farão segura e forte;
porém, Fortuna, Caso, Tempo e Sorte,
têm do confuso mundo o regimento.

Efeitos mil revolve o pensamento
e não sabe a que causa se reporte;
mas sabe que o que é mais que vida e morte,
que não o alcança humano entendimento.

Doutos varões darão razões subidas,
mas são experiências mais provadas,
e por isso é melhor ter muito visto.

Cousas há i que passam sem ser cridas
e cousas cridas há sem ser passadas,
mas o melhor de tudo é crer em Cristo.»

A Verdade irmã da Fábula,
Foi Florian que o mostrou.
Dois séculos antes dele,
O nosso Camões sublinhara
O inacreditável mais crível,
O real menos de crer.
E a harmonia dos opostos
Dá para todos os gostos.

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