terça-feira, 21 de agosto de 2012

Os recados


               A minha mãe de vez em quando prega-nos sustos em termos de saúde. Como se acha rigorosamente idosa, o número dos anos gradualmente desvanecendo-se na sua memória, apenas se lembrando agora de que nasceu em 1907, pensa que o rigor do comando dos destinos humanos não tardará a exigir-lhe o óbolo final, em linguagem de futilidade pedante, já que a crise nos faz desviar do euro, em marcha atrás. E o seu pensamento vai-se libertando do cada vez mais embrulhado presente, envolto em exigência e mimo e, por vezes, baralhação das ideias, estacionadas com verdadeiro apego nos céus da sua infância e mocidade, para onde a cada passo se volta em apelos repassados de ternura.
               E nos intervalos dos esmorecimentos, vai rezando e pedindo por todos, com uma convicção que não deixará de ser atendida, vistas as qualidades de que não prescindimos para esse efeito fatal, embora arredado ainda dos nossos objectivos de partida:
Bendita seja a luz do dia
Bendito seja quem a cria
Santa ou santo neste dia
Padre Nosso e Avé Maria.
E vai cantando, às vezes a tarde inteira, incansavelmente repetindo as mesmas canções, mas continuando a desenterrar outras, ao acaso das suas lembranças ou emoções, em que a saudade e a ternura - quando não a gaiatice - são elementos ponderosos nas variações temáticas retiradas dos ensinamentos dos irmãos, dos pais ou das amigas dos cantares nos campos ou ao serão à lareira:
Eu venho de longos tempos
Numa saudosa alegria,
Venho cantando, venho rindo
Trago as saudades em dia.

Ai que saudade,
Ai que paixão!
Que eu inda tenho desses tempos que lá vão!
Ai, meu amor minha paixão, meu querido bem,
Não basta a dor de um coração sem ter ninguém
Bendito Deus que nos criou assim tão querida
Tudo é possível nas passagens desta vida.

Ó coração retraído,
Ó cara cheia de enganos,
Olha a paga que me deste
De te eu amar tantos anos.

Um ai, meu amor, um ai,
Um ai também alivia.
Em certas ocasiões,
Se não desse um ai morria.

Ó minha guitarra d’oiro
Com perna toda de prata
Só tu és o meu tesoiro,
A alma da serenata.
A seguinte quadra mergulha na barcarola primitiva, nas “Ondas do mar de Vigo / se vistes meu amigo ?/ e ai Deus se verrá cedo?”, embora tenha sofrido evolução em termos de execução amorosa, “o por que eu suspiro”, convertido, licenciosamente, em “quem no meu leito dormia”:
Já lá vai pelo mar fora
Quem no meu leito dormia.
Deus o leve, Deus o traga,
Para a minha companhia.
Os versos seguintes, mau grado a singeleza expressiva, talvez tenham inspirado a sensibilidade contestatária de Cesário, caso pertençam ao cancioneiro popular ancestral. (Não me esqueço de que, na adolescência, aprendi com a minha mãe a melodia do “Noivado do Sepulcro” de Soares de Passos, ensinada por um dos seus irmãos que estudou no Porto, o que significa que por longo tempo se manteve, entre o próprio povo, a mórbida canção dos salões de meados do século XIX):
As ondas do mar lá fora
De bravas são amarelas;
E uma mãe tem um filho
Para andar por cima delas.
            (Cf. Cesário), (as varinas )“Vêm sacudindo as ancas opulentas!/ Seus troncos varonis recordam-me pilastras; /E algumas, à cabeça, embalam nas canastras / Os filhos que depois naufragam nas tormentas.” (“O Sentimento dum Ocidental, I”)
O tema do amor de mãe também mergulha fundo, na cumplicidade entre mãe e filha dos cancioneiros primitivos, mas creio que a minha mãe deseja deixar-nos uma mensagem do seu amor, do seu terror de nos perder, porque se sente bem, e por isso canta, embora por vezes pareça querer desistir, na sua recusa de comer, ou na constatação admirada da sua muita idade que exige obediência às leis da vida…
Nome de mãe é bonito,
Nome que a gente estremece.
Por muito que eu me agite,
Sua alma não me esquece.

Quem tiver mãe que o adore,
Porque mãe uma só há,
Se a perder, por mais que chore,
Nunca mais a terá.
São recados de sentimento para nós. É por isso que a não queremos perder, presença indelével do nosso espanto permanente, da nossa zanga ocasional, do nosso cansaço frequente, do nosso amor protector. Indestrutível.




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