terça-feira, 17 de julho de 2012

Uma de Revivalismo: “Bom Senso com Bom Gosto”


Foram-me enviados por email as duas epístolas seguintes, que transcrevo. O primeiro, de Maria Helena Mira Mateus, Professora Catedrática Jubilada da Faculdade de Letras de Lisboa, insurgindo-se contra o texto de Teolinda Gersão “Declaração de amor à Língua Portuguesa” em que esta tenta combater, com dados um tanto facetos, o alucinante método actual de ensino da gramática portuguesa, de uma tal abundância de pormenor metalinguístico, que reduz valentemente o interesse pela simples leitura e desmontagem dos elementos semânticos descodificadores das mensagens. Parece pura aberração tal sobrecarga linguística envolvendo a gramática já ao nível do ensino básico, em que a aprendizagem da leitura e ortografia são fulcrais para o estudo e compreensão de todas as mais disciplinas.

Maria Helena Mira Mateus insurge-se contra o texto da amiga, como participante, segundo esta explicitará na sua resposta, da reformulação linguística no ensino do português escolar, autêntica carnavalada dengosa e snobe, puro pretexto exibicionista dos recentes edificadores do ensino da língua, merecedores de Inquisição, como destruidores da limpidez e simplicidade requeríveis, na minha opinião também refractária, como a da Teolinda Gersão, e conhecendo por experiência própria as dificuldades do ensino do português, como disciplina tentacular.

Teolinda Gersão não precisa de ser defendida. Ao afirmar corajosamente que  é altura de o país – se assim quiser – dizer basta. A língua não é propriedade dos linguistas. O ensino da língua também não”, é credora da nossa imediata adesão.

É claro que o país “não quer dizer basta”, indiferente às pinturas narrativas ou às argúcias expositivas das pessoas que mantêm o bom senso aliado ao bom gosto que o país perdeu há muito e que se traduz pela palavra “decência”.

Leiamos então:

A propósito de uma Declaração de amor à língua portuguesa

Foi publicado no jornal Público um artigo de Teolinda Gersão – uma das nossas melhores escritoras por quem tenho admiração e amizade – com o título Redacção - Declaração de Amor à Língua Portuguesa. A sua leitura desagradou-me de tal modo que cheguei a julgar tratar-se de uma brincadeira da autora sob a forma de uma crítica sarcástica ao ensino do português. Mas como nem todas as pessoas a entendem assim, pus-me algumas perguntas: A quem se dirige esta brincadeira? Aos autores do programa de português na parte que diz respeito à gramática? Aos manuais de que se servem os professores, que podem conter erros por não haver a certificação de correção e qualidade, decidida há uns anos e não implementada? E já que o artigo assenta nas “ideias” de um estudante, será que o que está em causa é um professor que não conhece o que ensina?

Uma escritora do nível da Teolinda Gersão não pode aceitar como bons todos os disparates que lhe são transmitidos pelo seu neto estudante. Existem materiais de fácil acesso para refutar o que considera asneira. Já conhece o Programa de Português do Ensino Básico? Já viu os materiais que podem ser consultados pelos professores (ou pelos pais/avós) para perceber como e porquê se analisa uma língua, como se adequa esse ensino ao nível de escolaridade, o que deve ser transmitido em cada ano e o que serve apenas para informação do professor? Já pensou em como uma explicação da construção de um texto ou frase que o aluno produz ajuda a desenvolver o seu raciocínio e aumenta o seu domínio da oralidade e da escrita?

Os alunos não são tolos e têm curiosidade pelo ensino de qualquer disciplina se forem estimulados a olhar crítica e criativamente o que está por detrás das suas produções linguísticas e artísticas e dos mistérios da natureza. É nisto que consiste a educação. Mas o que verdadeiramente os desestimula é que alguém, que tem responsabilidade na escrita de uma língua, diga que “vai deitar a gramática na retrete “ (as palavras são da escritora mas “as ideias são deles”). Considera a Teolinda que não vale a pena estudar gramática? E aprender a fazer operações de matemática ou conhecer a física nas suas diversas forças e energias já vale a pena? Preparar materiais para o ensino do português tem sido o trabalho criterioso e dedicado de equipas, tal como tem sido feito para a matemática e para as ciências. Todas estas áreas têm tido a sua atualização didática e implicam uma adaptação a novos conhecimentos por parte dos agentes de ensino. E se um professor não sabe como explicar a construção das frases, do texto, da entoação e sons com que se constrói esta maravilha que é uma língua, é absurdo assacar ao ensino da língua materna erros, dislates e desinteresse que sente um estudante que julga que aprender português é só ter lido alguns livros (quando o faz) e não dar erros de ortografia. Deste modo, ele nem sequer vai tomar consciência da razão por que um texto literário é melhor do que outro, ou por que uma instrução ou uma lei pode ser ou não ser ambígua. Uma generalização da inutilidade e dos erros do ensino do português, apresentada a sério ou a brincar, apenas mostra uma completa falta de respeito pelos agentes desse ensino e por todos os que têm trabalhado nesta área. E de certeza que não se trata de uma “declaração de amor”, visto que o amor procura e proclama os aspetos bons do objeto amado.

Não desejo discutir aqui os exemplos dados pela autora do artigo porque eles têm tanto de errado como de ridículo. Aconselho somente uma consulta do Programa de Português do Ensino Básico e, já que tem uma completa falta de conhecimentos de gramática, poderia também consultar o Dicionário Terminológico destinado aos professores (e não aos alunos). Dessa maneira ajudaria mais um estudante do que tornando pública uma atitude que não é, certamente, recomendável num educador.

Maria Helena Mira Mateus

Professora Catedrática Jubilada da Faculdade de Letras de Lisboa

28 de junho de 2012



«Carta Aberta a Maria Helena (Mateus)

Querida Maria Helena:

Há 50 anos que sou tua amiga, te admiro como pessoa e respeito o teu trabalho como professora universitária de linguística. Sempre evitei, no entanto, discutir contigo o trabalho que tens feito fora da universidade, nomeadamente no que respeita à influência que tens tido no ensino do português no secundário. Sempre soube que nesse ponto não estávamos – e nunca vamos estar de acordo.

Penso contudo que um dos problemas do nosso país é deixarmos que as relações pessoais interfiram demasiado com nossas posições cívicas, e com a defesa do que consideramos correcto e justo. Sei que também assim pensas, e por isso te manifestaste tão negativamente sobre o meu texto que, como se pode provar pela adesão que tem tido, dá voz à saudável resistência dos alunos e ao descontentamento de milhares de pais, encarregados de educação e professores.

Na verdade, querida Maria Helena, ao responder ao meu artigo assumes a posição de porta-voz da defesa deste ensino. Não me surpreende, porque de facto tens grandes responsabilidades, ao longo de décadas, pela passagem do ensino do português no secundário a ensino da linguística (de uma determinada perspectiva linguística) no secundário. Não és obviamente a única responsável, mas é inegável que tens grandes responsabilidades nisso. Por isso ao responder-te estou a responder a toda uma “classe” de pessoas que partilham a tua visão do mundo.

O que o meu texto vem dizer é que este ensino não nos serve, e que tem havido um enorme abuso de poder de alguns sobre a maioria. Na verdade a tua opinião pessoal sobre esta questão não conta (nem mesmo encarando-te como porta-voz de um colectivo). Nem é a minha opinião individual, como cidadã, que tem qualquer interesse. Escrevi o que entendi que não podia deixar de escrever – e obviamente não pedi licença a ninguém. Se grande parte do país leu o meu texto e se identificou com ele, é algo que está fora do teu controle, e do meu. Por muito que isso te desagrade (e a todos os que te olharem como porta-voz), será o país a decidir que ensino quer – os pais, os professores, os cidadãos, e o ministério (que será julgado por tudo o que fi zer ou não). Vivemos há décadas no enorme equívoco de que “os linguistas é que sabem, por isso o poder é deles”. (O que te deve parecer tão óbvio que nem dás conta da imensa arrogância do teu artigo.)

Mas é altura de o país – se assim quiser – dizer basta. A língua não é propriedade dos linguistas. O ensino da língua também não.

E é tudo, Maria Helena. Pela minha parte, gostaria que a nossa amizade resistisse a este confronto.

Teolinda»

Notas:

Eis o texto  de Teolinda Gersão que Salles da Fonseca publicou no seu blogue “A Bem da Nação” em 24/6/12

«         Tempo de exames no secundário, os meus netos pedem-me ajuda para estudar português. Divertimo-nos imenso, confesso. E eu acabei por escrever a redacção que eles gostariam de escrever. As palavras são minhas, mas as ideias são todas deles.Aqui ficam, e espero que vocês também se divirtam. E depois de rirmos espero que nós, adultos, façamos alguma coisa para libertar as crianças disto.

Redacção – Declaração de Amor à Língua Portuguesa

Vou chumbar a Língua Portuguesa, quase toda a turma vai chumbar, mas a gente está tão farta que já nem se importa. As aulas de português são um massacre. A professora? Coitada, até é simpática, o que a mandam ensinar é que não se aguenta. Por exemplo, isto: No ano passado, quando se dizia “ele está em casa”, ”em casa” era o complemento circunstancial de lugar. Agora é o predicativo do sujeito.”O Quim está na retrete” : “na retrete” é o predicativo do sujeito, tal e qual como se disséssemos “ela é bonita”. Bonita é uma característica dela, mas “na retrete” é característica dele? Meu Deus, a setôra também acha que não, mas passou a predicativo do sujeito, e agora o Quim que se dane, com a retrete colada ao rabo.

No ano passado havia complementos circunstanciais de tempo, modo, lugar etc., conforme se precisava. Mas agora desapareceram e só há o desgraçado de um “complemento oblíquo”. Julgávamos que era o simplex a funcionar: Pronto, é tudo “complemento oblíquo”, já está. Simples, não é? Mas qual, não há simplex nenhum, o que há é um complicómetro a complicar tudo de uma ponta a outra: há por exemplo verbos transitivos directos e indirectos, ou directos e indirectos ao mesmo tempo, há verbos de estado e verbos de evento,e os verbos de evento podem ser instantâneos ou prolongados, almoçar por exemplo é um verbo de evento prolongado (um bom almoço deve ter aperitivos, vários pratos e muitas sobremesas). E há verbos epistémicos, perceptivos, psicológicos e outros, há o tema e o rema, e deve haver coerência e relevância do tema com o rema; há o determinante e o modificador, o determinante possessivo pode ocorrer no modificador apositivo e as locuções coordenativas podem ocorrer em locuções contínuas correlativas. Estão a ver? E isto é só o princípio. Se eu disser: Algumas árvores secaram, ”algumas” é um quantificativo existencial, e a progressão temática de um texto pode ocorrer pela conversão do rema em tema do enunciado seguinte e assim sucessivamente.

No ano passado se disséssemos “O Zé não foi ao Porto”, era uma frase declarativa negativa. Agora a predicação apresenta um elemento de polaridade, e o enunciado é de polaridade negativa.

No ano passado, se disséssemos “A rapariga entrou em casa. Abriu a janela”, o sujeito de “abriu a janela” era ela, subentendido. Agora o sujeito é nulo. Porquê, se sabemos que continua a ser ela? Que aconteceu à pobre da rapariga? Evaporou-se no espaço?

A professora também anda aflita. Pelo vistos no ano passado ensinou coisas erradas, mas não foi culpa dela se agora mudaram tudo, embora a autora da gramática deste ano seja a mesma que fez a gramática do ano passado. Mas quem faz as gramáticas pode dizer ou desdizer o que quiser, quem chumba nos exames somos nós. É uma chatice. Ainda só estou no sétimo ano, sou bom aluno em tudo excepto em português,que odeio, vou ser cientista e astronauta, e tenho de gramar até ao 12º estas coisas que me recuso a aprender, porque as acho demasiado parvas. Por exemplo,o que acham de adjectivalização deverbal e deadjectival, pronomes com valor anafórico, catafórico ou deítico, classes e subclasses do modificador, signo linguístico, hiperonímia, hiponímia, holonímia, meronímia, modalidade epistémica, apreciativa e deôntica, discurso e interdiscurso, texto, cotexto, intertexto, hipotexto, metatatexto, prototexto, macroestruturas e microestruturas textuais, implicação e implicaturas conversacionais? Pois vou ter de decorar um dicionário inteirinho de palavrões assim. Palavrões por palavrões, eu sei dos bons, dos que ajudam a cuspir a raiva. Mas estes palavrões só são para esquecer. Dão um trabalhão e depois não servem para nada, é sempre a mesma tralha, para não dizer outra palavra (a começar por t, com 6 letras e a acabar em “ampa”, isso mesmo, claro.)

Mas eu estou farto. Farto até de dar erros, porque me põem na frente frases cheias deles, excepto uma, para eu escolher a que está certa. Mesmo sem querer, às vezes memorizo com os olhos o que está errado, por exemplo: haviam duas flores no jardim. Ou : a gente vamos à rua. Puseram-me erros desses na frente tantas vezes que já quase me parecem certos. Deve ser por isso que os ministros também os dizem na televisão. E também já não suporto respostas de cruzinhas, parece o totoloto. Embora às vezes até se acerte ao calhas. Livros não se lê nenhum, só nos dão notícias de jornais e reportagens, ou pedaços de novelas. Estou careca de saber o que é o lead, parem de nos chatear. Nascemos curiosos e inteligentes, mas conseguem pôr-nos a detestar ler, detestar livros, detestar tudo. As redacções também são sempre sobre temas chatos, com um certo formato e um número certo de palavras. Só agora é que estou a escrever o que me apetece, porque já sei que de qualquer maneira vou ter zero.

E pronto, que se lixe, acabei a redacção - agora parece que se escreve redação. O meu pai diz que é um disparate, e que o Brasil não tem culpa nenhuma, não nos quer impôr a sua norma nem tem sentimentos de superioridade em relação a nós, só porque é grande e nós somos pequenos. A culpa é toda nossa, diz o meu pai, somos muito burros e julgamos que se escrevermos ação e redação nos tornamos logo do tamanho do Brasil, como se nos puséssemos em cima de sapatos altos. Mas, como os sapatos não são nossos nem nos servem, andamos por aí aos trambolhões, a entortar os pés e a manquejar. E é bem feita, para não sermos burros.

E agora é mesmo o fim. Vou deitar a gramática na retrete, e quando a setôra me perguntar: Ó João, onde está a tua gramática? Respondo: Está nula e subentendida na retrete, setôra, enfiei-a no predicativo do sujeito.

João Abelhudo, 8º ano, turma C (c de c…r…o, setôra, sem ofensa para si, que até é simpática).

Comentário que fiz ao texto de Teolinda Gersão. No mesmo blogue “A bem da Nação”, em 24/7/12

Já tinha lido o texto de Teolinda Gersão, merecedor de todo o aplauso daqueles que, amando a sua língua e desejando elevá-la a um grau de entendimento nos jovens que gradualmente se vão abrindo para o mundo, através das matérias das diferentes disciplinas, e para isso considerando primordiais os antigos instrumentos gramaticais de abertura para a compreensão das leituras nos valores do significante e do significado, a vêem "poluída" de arabescos só indispensáveis para os especialistas, desejosos de colher resultados espectaculares nas suas investigações, tais como os cientistas que se debruçam sobre os infinitamente pequenos dos seus universos de análise, para detectar e curar as doenças ou descobrir bombas potentes. Mas parece absurdo querer levar para os anos de formação escolar tais preciosismos de um requinte inútil, instauradores de doença e morte e não curadores delas. A imbecilidade em marcha, nos nossos programas educacionais. Julgava que o novo Governo traria mudanças a esse respeito, mas se ele não elimina o A. O., como há-de ser sensível a estas outras monstruosidades da nossa verborreia nacional? Se não sabem fazer contas, pelo que se tem visto nos cálculos financeiros, como hão-de exigir o estudo das tabuadas? Os erros próprios passam mais despercebidos no charco da mediocridade generalizada, já Sá de Miranda o dizia, na sua écloga "Basto", o Bieito contando ao solitário Gil o exemplo daquele único que se salvou do temporal, mas que foi incitado pelos mais a molhar-se no charco como eles: "Quantos viram, lá correram: / um que salta, outro que trota / Quantas graças aí fizeram! / Logo todos se entenderam: / Ei-los vão numa chacota." Estamos já no charco, colaboremos na chacota da indiferença. Porque nem o texto de Teolinda Gersão, tão rico no seu saber e oportuno na sua indignação subentendida, conseguirá o objectivo de mudança.

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