sábado, 5 de maio de 2012

Era uma vez uma língua grega


Uma das consequências do 25 de Abril foi a exclusão do Grego dos estudos liceais para os alunos de Clássicas. Quando, em 1976, a minha filha se quis matricular em Românicas, escolhendo Latim e Grego, que no meu tempo eram disciplinas obrigatórias, juntamente com as Literaturas Francesa e Portuguesa, o Grego foi retirado duma escola que não se chamou mais liceu, e o curso na Faculdade passou a designar-se por Línguas e Literaturas Modernas. Tive pena que a minha filha não vivesse os prazeres que me foram proporcionados a mim, no meu 6º e 7º anos do liceu, com o estudo do Grego, leccionado pelo excelente professor Francisco Maria Martins, no liceu Salazar de Lourenço Marques. Tratava-se de uma escrita diferente, a começar pelo alfabeto, os verbos, as declinações, e a terminar em alguns escritores de que lembro, além de fábulas de Esopo, S. João Crisóstomo e a sua conhecida frase “Vaidade das vaidades, tudo é vaidade” que me ficou na memória (Mataiótês mataiotêton, tá panta mataiótês, naturalmente que reconvertido toscamente, e por graça, no alfabeto latino, a internet ainda não possibilitando, pelo menos aos leigos, escritas simultâneas em alfabetos diferentes).

Era um prazer, a decifração de uma escrita ligada a escritores da Grécia antiga, como faróis  de um mundo de ideias e filosofias de tão lata repercussão na Europa Ocidental primeiro, seguidamente no mundo esclarecido que dela proveio. Na Faculdade, só os estudantes de Clássicas é que continuaram a usufruir desses prazeres, cá, relativamente ao Grego, os estudantes de Românicas continuando por mais três anos o estudo do Latim e lembro, do meu tempo de estudante em Coimbra, Maria Helena da Rocha Pereira, professora já então famosa nas lides sobretudo helénicas, mas pouco visível nos meios mediáticos da actualidade, apesar dos seus trabalhos ensaísticos e de tradução dos clássicos.

Felizmente, ainda há quem prossiga nos estudos clássicos da Grécia e do Lácio e Frederico Lourenço é um desses. Traduções fascinantes da “Odisseia” e da “Ilíada” e “Grécia Revisitada” são os livros que dele tenho presentes. É deste último que extraio o início do texto “A Língua Grega”, o qual reflecte bem o porquê da mágoa que inutilmente me acompanha por não ter proporcionado à minha filha Paula o encantamento que vivi na mesma idade em que ela poderia ter sentido iguais deslumbramentos de uma estranha e curiosa conquista, ainda que limitada a dois anos escolares. Ficou-lhe o Latim, de que guarda belas recordações referentes à sua competente professora Maria Luísa Gravata da Escola de S. João do Estoril.

Eis um excerto do texto de Frederico LourençoA Língua Grega”:

«Tragicamente arredada dos planos de estudo do ensino secundário e aprendida por uma minoria insignificante no ensino superior, a língua de Homero, Platão e do Novo Testamento tornou-se, em Portugal, aquilo que em três mil anos de história nunca chegou verdadeiramente a ser: uma língua morta.

É pena. Pois não só é um idioma mais belo e mais expressivo do que qualquer língua moderna (e se há pessoa que ama profundamente o português, o inglês e o alemão é o autor destas linhas…): foi em grego que os textos mais fundamentais para a nossa consciência de europeus foram escritos.

É uma língua difícil, sem dúvida. Para ser dominada com um mínimo de competência, requer à vontade dez anos de estudo diário, intenso. É uma língua exigente, porque quem não a lê todos os dias acaba rapidamente por esquecer o vocabulário, a diabólica morfologia, a multiplicidade de fenómenos fonéticos, os mistérios arcanos da sua acentuação. Pegar na “República” de Platão e lê-la como se fosse o jornal? São poucos os classicistas que chegam a esse estado de beatitude.

Na Universidade de Cambridge, tive o privilégio de conhecer alguns dos maiores helenistas da actualidade. Qualquer um deles lia grego todos os dias – treino diário como se fossem pianistas ou atletas – para não perder a forma. (…) Tenho consciência aguda da necessidade de trabalhar o grego todos os dias; do risco que me espreita sempre: deitar a perder anos de estudo. É mais fácil esquecer o grego do que aprendê-lo. (…)

Há dois argumentos tradicionais que são normalmente invocados quando se trata de defender o ensino e aprendizagem das línguas clássicas. O mais patusco alega que aprender grego ou latim torna as pessoas mais inteligentes! (…)

Sou um pouco mais sensível ao segundo argumento tradicional: saber grego e latim enriquece a relação do lusitano com a sua própria língua. Digo “um pouco mais”, porque já reparei há algum tempo que, entre as camadas mais jovens da população universitária, os estudantes de línguas clássicas falam tão mal português como os que nunca leram duas palavras de Horácio. “É assim”: parece que o português falado entrou em queda livre, a todos os níveis. Trata-se de um fenómeno histórico, sociológico: irreversível, de qualquer forma – e os botas de elástico da “correcção” podem bem arrumar de vez as botas.

Não, o grego não torna ninguém mais inteligente; também não oferece defesa contra a plastificação da língua portuguesa, imposta por uma televisão tão reles como a da Itália, pátria de Horácio. Há apenas duas razões para aprender grego. Dá prazer. Alarga. ……..»

Um texto para meditar. Como os restantes deste livro «Grécia Revisitada”. Que alarga e dá prazer. Mas só a quem o apetece. A gravidade do que nele se diz, quer em relação à retirada “trágica” do Grego no Ensino Secundário, quer ao torpedeamento da Língua Portuguesa pelas camadas estudantis do Ensino Universitário não perturbam os governos, este último, sem outra devoção que não seja a de pagador de promessas.

Também o Francês e a sua literatura foram estrelas condutoras  “tant bien que mal” do nosso panorama intelectual de outrora. Eça de Queirós largamente o definiu. Levou o mesmo pontapé que o Grego, nos anos posteriores ao de Abril. E assim a Filosofia… Mas se a própria língua é menosprezada pelos dirigentes da Nação em Acordos Ortográficos da nossa vileza e mediocridade sem paralelo, e não só neste espaço de uma Europa competente, herdeira ou não do passado helénico, mas ao nível de tantos outros países do mundo inteiro, que mais se pode augurar a não ser o soçobrar deste pobre rectângulo, nau para sempre à deriva?

Nenhum comentário: