quarta-feira, 16 de maio de 2012

Delírio de Brás Cubas


Foi um narrador defunto que, dedicando as suas “Memórias Póstumas ao verme que primeiro roeu as frias carnes do seu cadáver”, quis com isso transpor à raça humana tal categoria zoomórfica, dentro da sua visão sarcástica que tornou o livro “Memórias Póstumas de Brás Cubas” de Machado de Assis o primeiro exemplar do romance naturalista brasileiro.

Trata-se, assim, de um romance de estrutura circular, o final remetendo para o início, já contido na Dedicatória ao primeiro verme roedor do cadáver, e igualmente marcado, nas suas frases finais – “Capítulo CLX – Das Negativas” - pelo julgamento pessimista constante de um enredo marcado pelas frequentes interrupções à linearidade descritiva das vivências de Brás Cubas, pela constante intromissão, quer dos dados do seu amplo saber cultural, quer dos conceitos amargamente irónicos da experiência humana do seu autor: «Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e consequentemente que saí quite com a vida. E imaginará mal; porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: - Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria».

Mas foi o carácter fantasista contido no capítulo VII – “O Delírio” – que me chamou a atenção para o universo de fantasmagoria ou transfiguração que já detectáramos em obras de Flaubert –  como “La Tentation de Saint- Antoine” , “La Légende de Saint-Julien l’Hospitalier”– as “Lendas de Santos” de Eça, posteriores, estas, às “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, “Segundo Fausto” de Goethe, na busca do saber e das origens, pela infinita curiosidade da inteligência humana, a que Brás Cubas também não é alheio, montado em veloz hipopótamo, contrariamente aos santos congéneres, seduzidos pelo Diabo -  Mefistófeles (“Segundo Fausto”), Hilarion (“Lenda de S. Frei Gil” ), os próprios animais como o “Licorne”, da “Tentação de Santo Antão” que se descreve dinamicamente e surrealisticamente, em paralelismo imagístico com o hipopótamo de “Brás Cubas”: “A galope! A galope! Eu tenho cascos de marfim, dentes de aço, a cabeça cor de púrpura, o corpo coberto de neve, e o corno da minha testa está pintalgado com as cores do arco-íris. Viajo na Caldeia, no deserto tártaro, nas margens do Ganges e na Mesopotâmia. Ultrapasso as avestruzes. Corro tão depressa que arrasto o vento. Esfrego o dorso nas palmeiras, rolo-me nos bambus. De um salto transponho os rios...”

Mas é especialmente a análise do mundo, do tempo na sua infinitude, que formam o universo dos considerandos deste extenso capítulo VII, sobre o delírio de Brás Cubas precedendo a sua morte causada por um resfriado quando se ocupava na descoberta de um “emplasto anti-hipocondríaco, destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade”.

Eis alguns passos que aproximam o capítulo fantasista, de textos colhidos nos autores citados, pese ainda o vasto repertório de referências culturais que percorrem a obra, como característica um tanto exibicionista, colhida nos clássicos, de entretecer enredo e vastidão de conhecimento, que distanciam a prosa pesada de  Machado de Assis da prosa luminosa de gracilidade de Eça de Queirós:

“… Ultimamente, restituído à forma humana, vi chegar um hipopótamo, que me arrebatou. Deixei-me ir, calado, não sei se por medo ou confiança: mas dentro em pouco, a carreira de tal modo se tornou vertiginosa, que me atrevi a interrogá-lo, e com alguma arte lhe disse que a viagem me parecia sem destino.

- Engana-se – replicou o animal – nós vamos à origem dos séculos.

… Pela minha parte fechei os olhos e deixei-me ir à aventura. Já agora não se me dá de confessar que sentia umas tais ou quais cócegas de curiosidade, por saber onde ficava a origem dos séculos, se era tão misteriosa como a origem do Nilo…. Abri os olhos e vi que o meu animal galopava numa planície branca de neve, com uma ou outra montanha de neve, vegetação de neve e vários animais grandes e de neve. Tudo neve; chegava a gelar-nos um sol de neve. Tentei falar, mas apenas pude grunhir esta pergunta ansiosa:

- Onde estamos?

- Já passámos o Éden. …..

… Caiu do ar? destacou-se da terra? não sei; sei que um vulto imenso, uma figura de mulher me apareceu então, fitando-me com uns olhos rutilantes como o sol….”

Tratava-se de Natureza ou Pandora, que lhe disse:

“- … eu não sou somente a vida; sou também a morte, e tu estás prestes a devolver-me o que te emprestei. Grande lascivo, espera-te a voluptuosidade do nada.”

“… Isto dizendo, arrebatou-me ao alto de uma montanha. … Imagina tu, leitor, uma redução dos séculos, e um desfilar de todos eles, as raças todas, todas as paixões, o tumulto dos impérios, a guerra dos apetites e dos ódios, a destruição recíproca dos seres e das coisas. Tal era o espectáculo, acerbo e curioso espectáculo. A história do homem e da terra tinha assim uma intensidade que lhe não podiam dar nem a imaginação nem a ciência, porque a ciência é mais lenta e a imaginação mais vaga, enquanto que o que eu ali via era a condensação viva de todos os tempos. Para descrevê-la, seria preciso fixar o relâmpago. Os séculos desfilavam num turbilhão, e, não obstante, porque os olhos do delírio são outros, eu via tudo o que passava diante de mim – flagelos e delícias – desde essa coisa que se chama glória até essa outra que se chama miséria, e via o amor multiplicando a miséria e via a miséria agravando a debilidade. Aí vinham a cobiça que devora, a cólera que inflama, a inveja que baba, e a enxada e a pena, húmidas de suor, e a ambição, a fome, a vaidade, a melancolia, a riqueza, o amor, e todos agitavam o homem, como um chocalho, até destruí-lo, como um farrapo. …               

Um capítulo poderoso, que apetece mostrar na sua íntegra. António Nobre, no seu poema “A Vida” dá-nos uma idêntica visão moralista e crítica, Vieira transformara alegoricamente em “Naus” – Soberba, Vingança, Cobiça, Sensualidade – os defeitos humanos captados entre os colonos brasileiros exploradores. Machado de Assis, levado por igual ímpeto que fez o Doutor Fausto seguir docilmente o sedutor Mefistófeles para a descoberta das origens que desde sempre  atormentam o homem, desvia-se dele, todavia, na sua visão espacial, optando pelos valores morais que regem a humanidade.

E sempre na mira de “uma figura nebulosa e esquiva, feita de retalhos… a quimera da felicidade” ….

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