quarta-feira, 30 de maio de 2012

Les signes


Mais um texto poderoso de Vasco Pulido Valente, saído na Opinião do Público de 26 de Maio, historiando os factos de decomposição de um país desde os tempos do Ultimato, que a revolta badaleira do povo, a acrescentar à degradação financeira, conduziria ao regicídio e ao governo republicano caótico, de sucessivas  mudanças governativas, durante dezassete  anos, com mais quarenta e poucos de prudente estabilidade, e já quase quarenta a retomar o caos da falta de união e do interesse de todos em volta do osso pátrio, por descarnado que esteja.

É uma lição de história em que se deve atentar:

«O Ultimato da Inglaterra de 1890 e a crise financeira que veio logo a seguir em 1891-1892 fizeram cair a monarquia. Talvez que, por si só, passada a histeria do momento, o ultimato não tivesse chegado. Mas, pouco a pouco, a crise financeira desmantelou o regime. Primeiro, houve anos de governos constitucionalmente irregulares (como agora na Grécia e na Itália). E, dali em diante, quando se tentou voltar à “normalidade”, com um ou outro pretexto, os dois partidos “dinásticos” (o equivalente ao “centrão” desta nossa República) não conseguiram aguentar a sua velha coesão e acabaram por se dividir em facções, que tornaram Portugal ingovernável e a república certa. Quem julga que, passada a crise, em 2020 ou 2030, tudo voltará, como devia, ao seu sítio próprio, está muito enganado.

Os sinais já se vêem no comportamento do PS. Influenciado ou entusiasmado pela eleição de Hollande, o PS resolveu adoptar a retórica do “crescimento”: e proclama o “falhanço” da troika como se ele fosse uma espécie de triunfo privado, enquanto gaba os méritos de um “crescimento” imaginário, de que, de resto, não dá o mais leve pormenor e que, a existir, no essencial não depende dele. Mas nada disso aparentemente incomoda o sr. Seguro, que não hesitou em entrar numa pequena guerra com a maioria, para se decorar com uma vantagem “táctica” e em “descolar” da troika para exibir a sua independência. O sr. Seguro anda com certeza muito feliz, porque não percebeu ainda que prejudica o país com estas ridículas manobras e que, além disso, põe em  causa a existência do PS ou, se preferem, a estabilidade da  República.

As grandes coisas nascem das pequenas. Uma inclinação, ou mesmo uma simples vacilação, do PS para a esquerda pode provocar (e até já provocou) dissidências, não inteiramente inócuas, que tarde ou cedo tornarão a esquerda caótica e, na prática, impotente e que forçarão uma parte da direita para um populismo de sobrevivência. Nessa altura, Portugal não negociará com a troika, porque ninguém quererá negociar com ele. O Syriza é uma festa como foi o PREC, não é uma solução política. E os portugueses que sofrem, não apreciam com certeza as manobras de partido ou os puros sentimentos da “inteligência”, quando, em última análise, eles só servem para complicar a situação e não resolvem nada. A crise é um problema sério para pessoas sérias.»

Infelizmente, seriedade é o que menos se vê cá por casa. Muita lamúria, muita gritaria, pouca reflexão. A vitória de Hollande não contentou só Seguro que, levianamente, e usando sempre os mesmos discursos redondos, em torno dos mesmos motivos de compaixão e ataque, parece estar a libertar-se das amarras do compromisso a que fora forçado pelas próprias responsabilidades no desastre nacional. E os outros partidos, igualmente com leviandade e falsa piedade, deitam achas na fogueira das virtudes de defesa do pobre povo desarrimado, cinicamente libertos da responsabilidade governativa e por isso férteis em truques de promessas ou de levantamento de elementos condenatórios dos que governam.

Esperava-se que este Governo se comportasse como prometera, com hombridade, seriedade, trabalho, eficiência, desejo de vencer. Mas a cada passo vêm à tona informações de erros, lapsos, arrogâncias, mentiras, vaidades, tal como se detectara nos governos anteriores.

E embora desejando confiar nele, por aqui andamos, às voltas, querendo manter uma luz de esperança, mas, como há 38 anos, apenas vibrando com os articulados críticos de jornalistas ou de historiadores de bom senso, enquanto assistimos ao resvalar de um país que, aparentemente melhorado nas suas estruturas físicas, foi perdendo em sentido pátrio e humano, em degradação espiritual que, provavelmente será o aspecto mais vilmente atraiçoador da nossa existência como nação.

Resta-nos confiar no bom senso dos professores, para irem segurando o barco do aparelho educativo, mau grado as péssimas condições em que se efectua a sua orientação pedagógica.




Os arrotos das nossas ambições


A minha amiga há muito que não se exprimia com tanta cólera, de tal modo se “espremeu” na crítica, com o recorte do jornal a confirmar:

- Menu muito rico, próprio de país muito rico. Como é possível?  A gente olha para aquilo e diz assim: “Não pode ser verdade”. Mas está assinado por fulana e fulana.

Espreitei o artigo que ela me trouxe e as fulanas assinantes chamam-se Raquel Oliveira e Sónia Trigueirão, como confirmei para a minha amiga, que continuou:

- Mas a Troika que está cá a ver as borradas também sabe disto? Abrem o concurso, escolhem a empresa. Estas duas jornalistas tiveram acesso e vá de publicar o artigo, que é digno de espanto.

- Ora! Está de acordo com a nossa dignidade – explico, generosamente, que considerações é o que nós acima de tudo prezamos, como já várias vezes tenho referido na referência ao Damasozinho Salcede (o que é indício de uma cultura extremamente parcimoniosa na questão dos referentes) o qual de ninguém admitia desconsiderações, e com muita razão. Ainda hoje mesmo, sofremos desse sentimento de inferioridade e vexame, como mal que mergulha fundo, creio que nas nossas raízes históricas, geográficas e sociais, de tal modo enviesadas que as suas ramificações resultaram num posicionamento caudal relativamente ao posicionamento estrangeiro. É o que sobressai nos dizeres da heroína do “Eixo do Mal”, troçando pelo facto de ninguém lá de fora nos prezar, passarmos sempre despercebidos e quem sabe se altivamente marginalizados pelos deputados dos outros países europeus. E assim se vê que somos todos uns Damasozinhos Salcedes, que vivemos no terror das humilhações, mesmo os ou as que se pretendem demarcar do povinho ignaro. Como nos tempos de Eça, vivemos sob  o culto da admiração pelos povos cultos, embora nos digam que a isso se chama provincianismo, mesmo nos Eças da nossa praça.

Eu, por mim, confesso (e desculpe-se-me tão acentuada redundância) o meu sentimento de inferioridade, essencialmente provinciano, não passa de uma admiração sem limites pelos outros povos que investiram em educação, acompanhada por uma sentida inveja e pesar, pela consciência de que jamais os alcançaremos, por não termos educação suficiente para nela investirmos, e mesmo que a tenhamos, os que poderiam nela investir já não encontrarão a resposta adequada a essa justa ambição de transformação, pelo estreitamento cada vez maior dos interesses culturais da nossa juventude mandriona e indisciplinada que nas queimas das fitas universitárias culmina em espectáculos degradantes de bebedeiras descomunais de jovens em vias de se iniciarem no mercado de trabalho, pelo menos dantes era assim na questão do mercado.

Vejamos o recorte da notícia saída no Correio da Manhã:

«Fornecimento de Refeições

«MENU DE LUXO NA ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA

«Perdiz, porco preto alimentado a bolota e lebre são alguns dos produtos exigidos pelo Caderno de Encargos do concurso público para fornecer refeições e explorar as cafetarias do Parlamento. Das exigências para a confecção das ementas de deputados e funcionários constam ainda pratos com bacalhau do Atlântico, pombo torcaz e rola, de acordo com o documento a que o CM teve ontem acesso. O café a fornecer deverá ser de “1ª qualidade” e os candidatos ao concurso têm ainda de oferecer  quatro opções de whisky de 20 anos e oito de licores. No vinho, são exigidas 12 variedades de Verde os meus preferidos - e 15 de tintos alentejanos e do Douro. É também especificado que o mesmo prato não deve ser repetido num prazo de duas semanas. O Caderno de Encargos do concurso, que termina em Junho, estabelece que a qualidade dos produtos vale 50%, o preço 30% e a manutenção 20%.»

De lamber e chorar por mais. E percebi o porquê da exclusão da gravata – não sei se chegou a ser decretada, como medida capital de um governo disposto a trabalhar, segundo informou, na altura. Uma medida de extremo alcance, como expliquei à minha amiga ainda afrontada: a exclusão da gravata possibilitava os arrotos dos afrontamentos provenientes da ingestão dos pitéus do concurso.

 Há sempre uma lógica para as medidas de longo alcance. Quanto menos gravata maior a extensão dos arrotos. As comidas são um índice de civilização e requinte. Os imperadores romanos até vomitavam para ingerirem mais a seguir, nas suas refeições orgíacas. E os chineses, com os seus arrotos educativos, chegam cada vez mais a todo o lado, acompanhando-os.

 Sem gravata, com tais menus, é um fartote de arrotos, como medidas de salvação nacional.

Se bem que a bolota de que os porcos do menu se alimentaram em vida deva ser um bom exemplo para o corte nas gorduras que os do governo prometeram, expliquei à minha amiga com ponderação. É meio caminho andado para a dieta nacional de povo gordo, a precisar de bolota para a supressão prometida das gorduras. O governo começa por mostrar o caminho. O porco de bolota para ele ainda. Para o povo a bolota, qualquer dia.


domingo, 27 de maio de 2012

O ser de ter


Nem sempre são animais
As personagens irreais
Dos fabulistas passados.
Com humanos e duendes
A fábula que se segue,
De La Fontaine,
Cumpre a mesma função
De lição
Que as dos animais
De maior ou menor estimação
Das fábulas normais:

«Os desejos»
«Há no Império Mogol uns duendes
Que fazem ofício de criados aplicados.
Mantêm limpa a casa, tratam do mobiliário
E por vezes da jardinagem,
Sempre com muita coragem.
Se alguém mal informado
Se mete no seu trabalho,
O caldo fica entornado.
Um deles, outrora,
Cultivava o jardim de um bom burguês,
Trabalhava sem barulho,
Com habilidade e pachorra,
Amava o senhor e a senhora
E sobretudo o jardim.
Deus sabe se os Zéfiros,
Povo amigo do demo,
Não o ajudariam na tarefa.
O duende, por seu lado,
Trabalhando sem descanso,
Cumulava de prazeres os seus amos bem-amados.
Para maiores mostras do seu zelo
Ter-se-ia mantido para sempre na mansão
Dos seus senhores,
Não obstante a ligeireza
Tão natural nos seus pares;
Mas os espíritos seus confrades
Tanto fizeram, que o chefe desta república,
Por capricho ou por política,
Mudou-o de apartamento.
Ordem lhe chegou num momento
Para, nos confins da Noruega,
Ir trabalhar e cuidar
Duma casa precisada,
De neve sempre coberta;
E de Hindu que era, virou Lapão.
Antes de partir, saudoso,
Disse o espírito aos seus hóspedes,
Melindroso:
“Obrigam-me a deixar-vos:
Não sei por quais erros meus;
Mas enfim é necessário, não posso ficar  senão
Algum tempo mais, um mês,
Uma semana talvez.
Empregai-a; três desejos formulai,
 Porque poderei
Três desejos satisfazer:
Três e nenhum mais».
Desejar não é uma pena
Estranha e nova aos humanos.
Estes, como primeiro voto, pedem a abundância;
E a abundância, às mãos cheias,
Em seus cofres lança a finança;
Nos seus celeiros o trigo, os vinhos nas suas caves;
Tudo de fartura rebenta. Como gerir tanta fartura
Sem impostura?
Quantos registos, cuidados, tempo vário
Lhes foi necessário?
Ambos ficam embaraçados de modo extraordinário.
Os ladrões contra eles conspiraram,
Os grandes senhores empréstimos lhes pediram,
O príncipe de impostos os taxou.
Ei-los que estão
Infelizes até mais não
Pelo excesso de fortuna que os esmagou.
“Tirai-nos destes bens a influência importuna -
Disseram - Felizes os indigentes
Tão pouco importantes!
A pobreza vale mais do que tal fortuna.
Retirai-vos, tesouros; fugi.
E tu, deusa do belo espírito,
Companheira da serena alegria,
Doce mediania, volta depressa.”
A estes dizeres a mediania regressa.
Com ela, eles entram em graça,
Ao fim dos dois desejos, tão desastrados que foram,
 Como são todos aqueles que sempre ambicionaram
E em quimeras perderam
O tempo que a trabalhar deviam
Ter estado,
O duende riu com eles do tempo mal empregado
No recente passado.
Para aproveitarem a sua generosidade,
Quando estava prestes a partir
Pediram, como terceiro desejo,
A sabedoria, para sua felicidade.
É um tesouro que, pela sua ligeireza
 Não embaraça
Nem permite a trapaça.»

Aqui está mais uma fábula de um saber universal
Que não tem uma aplicação geral.
Qual de nós era capaz
De desdenhar assim uma fortuna
Tão oportuna?
Até porque logo pensaríamos
Em escondê-la em qualquer paraíso fiscal
Que nos impedisse
De pagar as taxas que o Estado nos exigisse!
Que agora já não é como antigamente,
Tempo vulnerável e inclemente.
E também porque hoje em dia a sabedoria
Jamais seria suficiente a uma áurea mediania
Que não faz préstimo nem causa alegria.
Porque a maior virtude
Consiste em acumular riqueza,
Não só pela incerteza
De um futuro inseguro,
Como pelo esplendor
Que resulta do ter
Mais do que do ser.
Na safra do saber ter
A ninguém já importa o saber ser.
Embora me pareça que o ser
Se define melhor com o ter.



quinta-feira, 24 de maio de 2012

A linha


Recebi por email um artigo de Daniel Oliveira arrasando a figura de Passos Coelho que teve a ousadia de explanar sobre a questão do desemprego da seguinte forma: "Estar desempregado não pode ser um sinal negativo. Despedir-se ou ser despedido não tem de ser um estigma. Tem de representar também uma oportunidade para mudar de vida. Tem de representar uma livre escolha, uma mobilidade da própria sociedade."

Transcrevo apenas um dos parágrafos do dito artigo de Daniel Oliveira, o que segue os vários considerandos sobre os altos e baixos das fortunas de cada um e caracterização do respectivo comportamento, sob os traços de solidariedade, crueldade, boa formação, ou “rapaziada”, terminando com a interrogação de estranheza: “Como é que este rapaz chegou a primeiro-ministro?”

“Não atribuo às infantis declarações de Passos Coelho sobre o desemprego nenhum sentido político ou ideológico. Apenas a prova de que é possível chegar aos 47 anos com a experiência social de um adolescente, a cargos de responsabilidade com o currículo de jotinha, a líder partidário com a inteligência de uma amiba, a primeiro-ministro com a sofisticação intelectual de um cliente habitual do fórum TSF e a governante sem nunca chegar a perceber que não é para receberem sermões idiotas sobre a forma como vivem que os cidadãos participam em eleições. Serei insultuoso no que escrevo? Não chego aos calcanhares de quem fala com esta leviandade das dificuldades da vida de pessoas que nunca conheceram outra coisa que não fosse o "risco".”

Em comentário, refiro a minha experiência de retornada, chegada de férias definitivas a uma metrópole mergulhada no êxtase da sua revolução criadora dos vários territórios independentes da tutela portuguesa, e transformadora do território propriamente português em definitivamente tutelado pelas potências simultaneamente esmoleres e endividantes, para recreação dos revolucionários e seus descendentes na governação do tal:
Após o vencimento recebido na íntegra durante os seis meses de férias, o Estado português catapultou-me para o estatuto de adida, durante mais seis meses, com o vencimento reduzido a metade e a incerteza no futuro como funcionária, caso não conseguisse, entretanto, colocar-me. Consegui, mas recordo esses tempos de náusea, de frustração, de falhanço relativamente às competências adquiridas, anos antes, no curso tirado, de sentimento de pânico em relação ao futuro, até mesmo de humilhação pela exclusão social a que a falta de emprego iria dar lugar, com as consequências de carência económica num agregado familiar de certa amplitude. Quando se é novo e se não tem espírito aventureiro, porque se está manietado pelos laços familiares constituídos, e se vive sob o peso dessas responsabilidades criadas, a perspectiva de retirada do calço torna-se perfeitamente aterradora. Tudo se resolveu a contento, não passou de pesadelo esse tempo incerto. Os ultramarinos - retornados, na designação mais comum - foram-se adaptando, a velha metrópole estendeu-lhes a mão, permitindo-lhes a integração, ou os mais independentes economicamente criaram as suas próprias defesas.

Mas esse tempo incerto nada foi em pesadelo, comparativamente aos tempos de hoje. Apesar de tudo, houve então regras de cidadania, talvez por se estar ainda sob a égide dos velhos parâmetros do governo anterior, que se apoiavam na legalidade dos direitos que a Declaração Universal dos Direitos Humanos propalava. É certo que se foi assistindo à contínua degradação do país, provocada pelos sucessivos “condottieri” mais ou menos inescrupulosos que se foram apoderando das rédeas da nação, apoiados pelos seus partidários. E chegou-se a um estado tal de carência, que as ameaças do que se iria passar, pelos muitos Rasputins da nossa sociedade erudita, em programas de discussão política, não deveriam estranhar hoje os mesmos Rasputins que continuam  a publicitar os seus muitos saberes nas mesmas mesas redondas televisivas de ontem

Daniel Oliveira foi um dos que avisou ontem, juntamente com a sua companheira Clara F. Alves, a qual muito troçou do alheamento ignaro da nossa gentinha relativamente ao seu futuro – actual presente em continuidade. Não devia estranhar hoje a tragédia do desemprego que vivemos, pois que estava programado, sabiam-no de antemão. Não se entende o seu discurso tão crítico relativamente a Passos Coelho e à sua dura frase acima transcrita. É uma frase de um rapazola que nunca viveu, talvez, tais dificuldades, ou, se as viveu, as soube ultrapassar com a determinação do ambicioso legítimo. Mas é também a frase de alguém que não pode expor doutra maneira, manietado que está na monstruosidade de uma herança para já, insolúvel, mas que se esforça por ultrapassar, na dureza que impõe a todos os da gentinha, e mais aos que perdem o emprego ou são explorados pelos patrões aproveitadores do contexto.

O tempo é de horror, os do Governo vão fazendo promessas, pretendendo resolver e dando esperança. Os intelectuais do contra deviam olhar-se mais ao espelho, lembrar-se dos tempos em que viveram com entusiasmo a libertação do país, indiferentes, então, às tragédias provocadas nos milhões de compatriotas que perderam valores e vidas, fossem embora compatriotas de segunda, no orgulho apoucante destes portugueses de primeira.

Passos Coelho foi duro nas frases que pronunciou. Mas não são frases incorrectas. Por vezes a adversidade é ponto de partida para a luta, para a busca de outras oportunidades, ele tem razão nisso. Daniel Oliveira não devia ser tão drástico, só porque deu em moralista, como o são todos os das linhas contrárias.

Embora o intelectual Daniel não reconheça nenhuma linha ao nosso P.M., o que é pouco digno num português de primeira.


segunda-feira, 21 de maio de 2012

“Já não volta à cadeia”


Cada uma de nós deseja desabafar as alegrias ou as penas – mais estas, em todo o caso – que nos purificam ou maculam a alma, para utilizar um verbo mais rebuscado, que dignifique as sujeiras do nosso panorama social. A minha amiga arranca em primeira:

- Ninguém tenha ilusões. Há uma lei feita à medida, que os protege. Estão a tentar, os juízes que têm vergonha na cara, mudar uma coisinha da lei…

E logo eu atalho, no escândalo dessa coisa da “coisinha”, - “coiso”, na designação desdenhosa do ministro Pereira para a questão despicienda do desemprego nacional - que não se devia coisar segundo os pruridos cautelosos das línguas dos nossos Louçãs atentos que logo os distorcem para os coisês a que estamos reduzidos na nossa navegação serpenteante, de escape ou à bolina,  mas a minha indignada amiga nem pára para reflectir no que colhi do indignado Louçã:

- … uma coisinha da lei que os protege, pelos adiamentos sucessivos que ilibam os corruptos, cujas condenações acabam por prescrever graças a essa coisinha que ninguém quer extrair da lei. O Isaltino está na maior. Agora, como é que os políticos não hão-de roubar? O paraíso fiscal é noutros lados, aqui temos o paraíso terreal. O Duarte Lima fica no seu palacete com a pulseirinha, a escrever as suas memórias. Agora é que vamos saber a história do BPN. Ele vai enfiar os outros que estão cá fora a rir e ele está a acusá-los, lá dentro.

Achei que estava a descambar para a utopia, julgando que seriam presos, mas ela continuou:

- O ar imponente  que estes ladrões tomam! O dinheiro que se gastou à espera da saída do Lima da cadeia! Mas o fulano sai e não responde. O crime do Brasil fica impune. Há mais uma história de assinatura falsificada por ele, que o incrimina. O filho estava metido no negócio do BPN, mas conseguiu que fosse ilibado. A história da Feteira… A falsificada assinatura do marido da Rosalina ... Ela tinha que desaparecer do mapa. Ele vai lá e mata-a. Como é que o Duarte Lima, que é advogado, se mete numa assim? A viagem, uma amiga Gisele inexistente, o homem julgava que era só ir matar… ela deve ter sabido da assinatura, ela tinha que desaparecer! Esquisito até dizer chega. Mas porque é que ele havia de querer este mundo e o outro? Já tinha este, pois era podre de rico, porque lutou pelo outro?
- O dos caldeirões de pez a ferver?

Mas a minha amiga não acredita no Inferno, desdenha a arremetida:

- Ele está como quer. Já não volta à cadeia. Será que se vai safar da pulseirinha?

- Tem cara disso, concluo eu, que não tive ocasião de narrar as penas que me vão na alma,  uma delas, a da maligna inveja, a merecer o pez – a do êxtase  provocado pela participação de uma mocidade bela, competitiva, estudiosa, que Julien Lepers levou, uma vez mais, ao seu “Questions pour un Champion”. A mocidade das “Hautes Écoles”,  denunciante de um país que pode esperar na sua continuidade como nação da inteligência, desde sempre iluminando o pensamento, ao investir dessa forma, simultaneamente séria e jubilosa, na cultura dignificante que distingue os verdadeiros homens.

A inveja, a merecer o caldeirão, é a triste consciência do que não temos. Porque o desejar tê-lo não resolve. É preciso querê-lo. E o que nós aqui, de facto, queremos e protegemos  são os Duartes Limas da nossa bestialidade. Não precisamos de outros campeões.

sábado, 19 de maio de 2012

«Conte-me tudo»


Eis uma frase empolgante que uma amiga nossa, a maior parte do seu tempo  assente no Dubai, constrói para cada uma de nós, como forma de saudação quando, depois de desembarcada – o que é frequente – chega, exuberante e maternal, embora bastantes anos mais jovem, mas com a autoridade do bem-estar material e do seu saber professoral, exigente de amplos saberes a quem pouco mais tem para fornecer que as novidades da sua domesticidade diária acrescidas das observações fofoqueiras habituais, tendo como modelo as roçagantes saias de Elvira colhidas nos noticiários da imprensa diária de um país sem calças e definitivamente descalço.

Mas a pergunta megalómana explode junto de nós que rimos da pretensão de um tudo que é nada, contrariamente ao mito de Pessoa, hélas!  - “um nada que é tudo”.

O “Conte-me tudo” é, aliás, pretexto para o uso unilateral da palavra própria, com a graça esfuziante de uma dicção perfeita e a vivacidade de uma exposição plena de datas, de dados, de enigmas, de analogias, que percorrem o império das suas evocações e jorram sobre a minha mudez atenta, deixando a troca de dados a cargo da minha amiga, habitual leader na observação das referências  à  mesa do café diário.

“Conte-me tudo!” Acabo de ler a frase imperativa, ditada com ternura pelo amante à sua amada, após ausência prolongada, por doença, num velho livro que a recordação da adolescência empolgante trouxe a um desejo de fuga às penúrias das nossas actuais vivências.

“John, chauffeur russo” de Max du Veuzit, eis o livro amado, que reli com curiosidade, pensando não mais encontrar nele o encanto daqueles tempos em que se sonhava com o príncipe encantado o que, um século antes desviara a Ema Bovary, e a Luísa do “Primo Basílio” dos convencionais caminhos matrimoniais, por excesso de leituras românticas, fossem elas da Jane Austen, irmãs Bronte, George Sand e outros escritores debruçados sobre as sensibilidades das almas amantes, de Tristão e Isolda, a Paulo e Virgínia, Atala, René, La Nouvelle Héloise e tantos mais.

Não creio que as escritoras da literatura que, dos anos 40 a 60 alagaram as livrarias com a chamada leitura cor-de-rosa teriam hoje igual saída. As adolescentes de hoje são motivadas por prosas mais direccionadas para a acção, em que o mundo dos valores morais é soterrado pela violência das relações humanas.

“John, chauffeur russo”, comprado numa Feira do Livro em 2000, mantém a mesma capa azul, específica dos “livros de capa azul” daqueles tempos, deve, pois, ser, dentre os livros repudiados pela intelectualidade, um dos poucos que continuou a editar-se, o que comprova o seu mérito e o seu fascínio.

Trata-se da história de uma bonita e rica rapariga francesa – Micaela – que toma como chauffeur um belo espécime russo, a quem, por pruridos de altivez distanciadora, troca o nome sonante Alexandre pelo comum John. Toda a trama ficcional gira à volta de um enamoramento progressivo, feito de alternâncias de atracção e distanciamento, em que a arrogância despeitada da jovem, pela consciência dessa atracção gradual em si própria, provoca nela constantes atitudes de desprezo para humilhação do rapaz, o qual lhe faz sentir o seu repúdio e aparente indiferença, modo de garantir a sequência evolutiva de uma paixão intensificada ainda pelo ciúme de uma sua amiga americana, igualmente apaixonada pelo chauffeur, desinibida e destituída de idênticos pruridos de riqueza distanciadora.

Alexandre revelar-se-á um príncipe russo no exílio, com uma vasta colónia da aristocracia russa igualmente exilada, após a revolução soviética. O casamento entre ambos segundo o cerimonial ortodoxo, com desconhecimento do riquíssimo pai de Micaela, que jamais o aceitaria, adepto do casamento por conveniência e convergência de fortunas, é uma peripécia quase final da novela, retardadora do final feliz, graças a uma espécie de “mise en abîme”, pela referência involuntária de um amigo a uma prática usual de russos unidos pelo casamento a francesas, a fim de melhor lhes sacarem a fortuna, coscuvilhice que faz cair doente Micaela reconhecendo nela  a imagem da sua própria história. O final será, naturalmente, muito feliz, Micaela transformada em princesinha de conto de fadas.

Uma história encantadora que, ao invés de outras mais ou menos lamechas dessa colecção azul, contém um enredo bem urdido, com personagens salientando-se nas suas manipulações sentimentais. Foi, ao chegar a Inglaterra, onde o seu marido russo fora trabalhar como médico, que este lhe disse, em atenta preocupação pelo seu bem-estar, após a longa doença a que ele não tivera acesso, impedido pelo irascível milionário pai de Micaela: “Conte-me tudo”.

Muito teria Micaela para contar ao seu adorado Sacha sobre a odisseia vivida em França.

À nossa amiga risonhamente bombástica a resposta definitivamente trágica é: “Já só nos resta o silêncio”.

Mas os papagaios ainda se não extinguiram na nossa corte: palremos, sobre o nosso nada.


quarta-feira, 16 de maio de 2012

Delírio de Brás Cubas


Foi um narrador defunto que, dedicando as suas “Memórias Póstumas ao verme que primeiro roeu as frias carnes do seu cadáver”, quis com isso transpor à raça humana tal categoria zoomórfica, dentro da sua visão sarcástica que tornou o livro “Memórias Póstumas de Brás Cubas” de Machado de Assis o primeiro exemplar do romance naturalista brasileiro.

Trata-se, assim, de um romance de estrutura circular, o final remetendo para o início, já contido na Dedicatória ao primeiro verme roedor do cadáver, e igualmente marcado, nas suas frases finais – “Capítulo CLX – Das Negativas” - pelo julgamento pessimista constante de um enredo marcado pelas frequentes interrupções à linearidade descritiva das vivências de Brás Cubas, pela constante intromissão, quer dos dados do seu amplo saber cultural, quer dos conceitos amargamente irónicos da experiência humana do seu autor: «Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e consequentemente que saí quite com a vida. E imaginará mal; porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: - Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria».

Mas foi o carácter fantasista contido no capítulo VII – “O Delírio” – que me chamou a atenção para o universo de fantasmagoria ou transfiguração que já detectáramos em obras de Flaubert –  como “La Tentation de Saint- Antoine” , “La Légende de Saint-Julien l’Hospitalier”– as “Lendas de Santos” de Eça, posteriores, estas, às “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, “Segundo Fausto” de Goethe, na busca do saber e das origens, pela infinita curiosidade da inteligência humana, a que Brás Cubas também não é alheio, montado em veloz hipopótamo, contrariamente aos santos congéneres, seduzidos pelo Diabo -  Mefistófeles (“Segundo Fausto”), Hilarion (“Lenda de S. Frei Gil” ), os próprios animais como o “Licorne”, da “Tentação de Santo Antão” que se descreve dinamicamente e surrealisticamente, em paralelismo imagístico com o hipopótamo de “Brás Cubas”: “A galope! A galope! Eu tenho cascos de marfim, dentes de aço, a cabeça cor de púrpura, o corpo coberto de neve, e o corno da minha testa está pintalgado com as cores do arco-íris. Viajo na Caldeia, no deserto tártaro, nas margens do Ganges e na Mesopotâmia. Ultrapasso as avestruzes. Corro tão depressa que arrasto o vento. Esfrego o dorso nas palmeiras, rolo-me nos bambus. De um salto transponho os rios...”

Mas é especialmente a análise do mundo, do tempo na sua infinitude, que formam o universo dos considerandos deste extenso capítulo VII, sobre o delírio de Brás Cubas precedendo a sua morte causada por um resfriado quando se ocupava na descoberta de um “emplasto anti-hipocondríaco, destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade”.

Eis alguns passos que aproximam o capítulo fantasista, de textos colhidos nos autores citados, pese ainda o vasto repertório de referências culturais que percorrem a obra, como característica um tanto exibicionista, colhida nos clássicos, de entretecer enredo e vastidão de conhecimento, que distanciam a prosa pesada de  Machado de Assis da prosa luminosa de gracilidade de Eça de Queirós:

“… Ultimamente, restituído à forma humana, vi chegar um hipopótamo, que me arrebatou. Deixei-me ir, calado, não sei se por medo ou confiança: mas dentro em pouco, a carreira de tal modo se tornou vertiginosa, que me atrevi a interrogá-lo, e com alguma arte lhe disse que a viagem me parecia sem destino.

- Engana-se – replicou o animal – nós vamos à origem dos séculos.

… Pela minha parte fechei os olhos e deixei-me ir à aventura. Já agora não se me dá de confessar que sentia umas tais ou quais cócegas de curiosidade, por saber onde ficava a origem dos séculos, se era tão misteriosa como a origem do Nilo…. Abri os olhos e vi que o meu animal galopava numa planície branca de neve, com uma ou outra montanha de neve, vegetação de neve e vários animais grandes e de neve. Tudo neve; chegava a gelar-nos um sol de neve. Tentei falar, mas apenas pude grunhir esta pergunta ansiosa:

- Onde estamos?

- Já passámos o Éden. …..

… Caiu do ar? destacou-se da terra? não sei; sei que um vulto imenso, uma figura de mulher me apareceu então, fitando-me com uns olhos rutilantes como o sol….”

Tratava-se de Natureza ou Pandora, que lhe disse:

“- … eu não sou somente a vida; sou também a morte, e tu estás prestes a devolver-me o que te emprestei. Grande lascivo, espera-te a voluptuosidade do nada.”

“… Isto dizendo, arrebatou-me ao alto de uma montanha. … Imagina tu, leitor, uma redução dos séculos, e um desfilar de todos eles, as raças todas, todas as paixões, o tumulto dos impérios, a guerra dos apetites e dos ódios, a destruição recíproca dos seres e das coisas. Tal era o espectáculo, acerbo e curioso espectáculo. A história do homem e da terra tinha assim uma intensidade que lhe não podiam dar nem a imaginação nem a ciência, porque a ciência é mais lenta e a imaginação mais vaga, enquanto que o que eu ali via era a condensação viva de todos os tempos. Para descrevê-la, seria preciso fixar o relâmpago. Os séculos desfilavam num turbilhão, e, não obstante, porque os olhos do delírio são outros, eu via tudo o que passava diante de mim – flagelos e delícias – desde essa coisa que se chama glória até essa outra que se chama miséria, e via o amor multiplicando a miséria e via a miséria agravando a debilidade. Aí vinham a cobiça que devora, a cólera que inflama, a inveja que baba, e a enxada e a pena, húmidas de suor, e a ambição, a fome, a vaidade, a melancolia, a riqueza, o amor, e todos agitavam o homem, como um chocalho, até destruí-lo, como um farrapo. …               

Um capítulo poderoso, que apetece mostrar na sua íntegra. António Nobre, no seu poema “A Vida” dá-nos uma idêntica visão moralista e crítica, Vieira transformara alegoricamente em “Naus” – Soberba, Vingança, Cobiça, Sensualidade – os defeitos humanos captados entre os colonos brasileiros exploradores. Machado de Assis, levado por igual ímpeto que fez o Doutor Fausto seguir docilmente o sedutor Mefistófeles para a descoberta das origens que desde sempre  atormentam o homem, desvia-se dele, todavia, na sua visão espacial, optando pelos valores morais que regem a humanidade.

E sempre na mira de “uma figura nebulosa e esquiva, feita de retalhos… a quimera da felicidade” ….

quarta-feira, 9 de maio de 2012

O incrível Vasco Pulido Valente


É de Vasco Pulido Valente o texto que me permito transcrever, extraído do Público de Domingo, 6 de Maio:

«O Incrível sr. Hollande»

«Para acreditar na megalomania francesa, fora os franceses, só há os portugueses. A esquerda política e a esquerda bem-pensante que por aí se arrasta resolveu que o sr. Hollande , se ganhasse, ia com certeza mudar a Europa e o mundo. Isto mostra, em primeiro lugar, a ignorância de que a França se tornou desde a abjecta derrota de 1940 numa potência económica e militar de quinta classe, que vai aguentando um lugarzinho ao sol, pelo favor da América, que ela ostensivamente tanto detesta. E também mostra que na cabeça dos portugueses ficaram ainda os vestígios do tempo em que De Gaulle não se calava com a imaginária “grandeza” que supunha representar; e a “lúmpen-inteligência” indígena lia aplicadamente Sartre e Althusser. Com o “25 de Abril” e o “cavaquismo”, a França tinha desaparecido pouco a pouco do nosso pequenino universo. Mas parece que, talvez por desespero, voltou agora a ressuscitar.

Na falta de “socialistas” o sr. Hollande acabou por servir. A França do sr. Hollande é uma França com mais de 10 por cento de desemprego, um défice ameaçador, uma dívida de 90 por cento do PIB e uma economia em estagnação. De quase nenhuma destas pequenas contrariedades se falou na campanha. O sr. Sarkozy exibiu a sua xenofobia (até ameaçou que poderia sair de Schengen) e o sr. Hollande, com a imaginação que se lhe conhece, preferiu insistir na “social-democracia” da sua adolescência e prometeu 60.000 novos professores, 150.000 “empregos de futuro”, diminuir a idade da reforma, um subsídio de família maior e um imposto estapafúrdio, que atinge o número nunca visto de 200 ricos: por outras palavras, prometeu um magnífico regresso a 1960.

Os franceses que se avenham, com ele. Mas, seja qual for o resultado, no meio deste delírio, o sr. Hollande não se esqueceu da “Europa”. E, para a “Europa” ele quer, evidentemente, uma mutualização da dívida, o BCE a imprimir papel (que já, de resto, imprime em grande quantidade) e um obscuro e definitivo “programa de crescimento”. Que a França não esteja em posição de impor nada à “Europa” aparentemente não o preocupa: a grandeza da França bastará para convencer os pategos. Sucede que de Helsínquia a Amesterdão, os pategos, embora possam seguir (prudentemente) a Alemanha, não seguirão com certeza o sr. Hollande sobretudo quando ele se prepara para meter uma “Europa”, desorientada e frágil, num grande sarilho.»

Vasco Pulido Valente é, há muitos anos, para mim, um verdadeiro senhor de uma escrita arguta e desassombrada, feita de uma lúcida análise dos acontecimentos que vai desmontando e historiando com a mordacidade que lhe merecem as imparáveis irregularidades de que o país tem sido palco pelos seus executores, sucedâneos na governança ou no compadrio dela, após a viragem que tanto ansiavam, pelos motivos que se vão clarificando em cada ano que passa.

No texto de Pulido Valente está bem patente o desprezo que lhe merecem os de cá como os de lá – da França – apressando-se  a eleger mais um papagaio  de cartilha mais que lida, feita de promessas angariadoras de votos vitoriosos. Fica-se com a ideia de que, pese embora o nosso parco mérito na cena mundial, ou mesmo só europeia, temos um ex-ministro que, enrolado em França nas filosofias concitadoras de vasta audiência juvenil, tal como outrora o seu sósia – em nome – conseguiu obter adeptos de idêntica categoria mental, certamente que inspiradoras de mais um Platão escrevinhador dos seus diálogos . A dimensão intelectual que uns e outros de outrora tiveram – Sócrates, Platão, Diálogos – poderá ter correspondência – embora patega – nos nossos de agora. A pateguice em dimensão também leva à glória. Para mais reforçada pelos Magalhães do nosso orgulho.

O certo é que as promessas de Hollande de criação de empregos e de facilidades nos trazem à mente as que por cá se fizeram pelo ministro antes de se tornar um ex triunfante, lá na Gália, como o fora cá, com tanta gula.

Mas os nossos antigos de cá, pertencentes a igual partido, em palmadas e abraços de recuperação e regozijo, envolvem-se de novo em cravos promissores da desordem que se avizinha, anciãos largamente experientes em destruição pátria.  E os da Inteligência seguidista bradando como eles, fingindo amor pelos desvalidos, mas forcejando por os tornar mais desvalidos, na desordem que preparam, discípulos e colaboradores beneméritos dos primeiros, ou actuando fogosamente e gostosamente por conta própria.

Torpedear. Eis o que irmana velhos e novos – os velhos que já foram novos, os novos ou de meia idade que vão a caminho. Todos eles criticando o velho governante que governou até cair da cadeira. Todos eles ambicionando a cadeira do poder e continuando no poder da fama protegidos pelos pategos da sua escolta crescente. A coberto, hoje, do sr. Hollande e da nação francesa que o elegeu. Como afirma V. P. V., “Com o “25 de Abril” e o “cavaquismo”, a França tinha desaparecido pouco a pouco do nosso pequenino universo. Mas parece que, talvez por desespero, voltou agora a ressuscitar.”

Por pouco tempo será, infelizmente, cada vez mais desprendidos dos valores culturais de uma França das Luzes.

Uma nação arruinada e patega não tem contratorpedeiros para responder. Está condenada.

sábado, 5 de maio de 2012

Era uma vez uma língua grega


Uma das consequências do 25 de Abril foi a exclusão do Grego dos estudos liceais para os alunos de Clássicas. Quando, em 1976, a minha filha se quis matricular em Românicas, escolhendo Latim e Grego, que no meu tempo eram disciplinas obrigatórias, juntamente com as Literaturas Francesa e Portuguesa, o Grego foi retirado duma escola que não se chamou mais liceu, e o curso na Faculdade passou a designar-se por Línguas e Literaturas Modernas. Tive pena que a minha filha não vivesse os prazeres que me foram proporcionados a mim, no meu 6º e 7º anos do liceu, com o estudo do Grego, leccionado pelo excelente professor Francisco Maria Martins, no liceu Salazar de Lourenço Marques. Tratava-se de uma escrita diferente, a começar pelo alfabeto, os verbos, as declinações, e a terminar em alguns escritores de que lembro, além de fábulas de Esopo, S. João Crisóstomo e a sua conhecida frase “Vaidade das vaidades, tudo é vaidade” que me ficou na memória (Mataiótês mataiotêton, tá panta mataiótês, naturalmente que reconvertido toscamente, e por graça, no alfabeto latino, a internet ainda não possibilitando, pelo menos aos leigos, escritas simultâneas em alfabetos diferentes).

Era um prazer, a decifração de uma escrita ligada a escritores da Grécia antiga, como faróis  de um mundo de ideias e filosofias de tão lata repercussão na Europa Ocidental primeiro, seguidamente no mundo esclarecido que dela proveio. Na Faculdade, só os estudantes de Clássicas é que continuaram a usufruir desses prazeres, cá, relativamente ao Grego, os estudantes de Românicas continuando por mais três anos o estudo do Latim e lembro, do meu tempo de estudante em Coimbra, Maria Helena da Rocha Pereira, professora já então famosa nas lides sobretudo helénicas, mas pouco visível nos meios mediáticos da actualidade, apesar dos seus trabalhos ensaísticos e de tradução dos clássicos.

Felizmente, ainda há quem prossiga nos estudos clássicos da Grécia e do Lácio e Frederico Lourenço é um desses. Traduções fascinantes da “Odisseia” e da “Ilíada” e “Grécia Revisitada” são os livros que dele tenho presentes. É deste último que extraio o início do texto “A Língua Grega”, o qual reflecte bem o porquê da mágoa que inutilmente me acompanha por não ter proporcionado à minha filha Paula o encantamento que vivi na mesma idade em que ela poderia ter sentido iguais deslumbramentos de uma estranha e curiosa conquista, ainda que limitada a dois anos escolares. Ficou-lhe o Latim, de que guarda belas recordações referentes à sua competente professora Maria Luísa Gravata da Escola de S. João do Estoril.

Eis um excerto do texto de Frederico LourençoA Língua Grega”:

«Tragicamente arredada dos planos de estudo do ensino secundário e aprendida por uma minoria insignificante no ensino superior, a língua de Homero, Platão e do Novo Testamento tornou-se, em Portugal, aquilo que em três mil anos de história nunca chegou verdadeiramente a ser: uma língua morta.

É pena. Pois não só é um idioma mais belo e mais expressivo do que qualquer língua moderna (e se há pessoa que ama profundamente o português, o inglês e o alemão é o autor destas linhas…): foi em grego que os textos mais fundamentais para a nossa consciência de europeus foram escritos.

É uma língua difícil, sem dúvida. Para ser dominada com um mínimo de competência, requer à vontade dez anos de estudo diário, intenso. É uma língua exigente, porque quem não a lê todos os dias acaba rapidamente por esquecer o vocabulário, a diabólica morfologia, a multiplicidade de fenómenos fonéticos, os mistérios arcanos da sua acentuação. Pegar na “República” de Platão e lê-la como se fosse o jornal? São poucos os classicistas que chegam a esse estado de beatitude.

Na Universidade de Cambridge, tive o privilégio de conhecer alguns dos maiores helenistas da actualidade. Qualquer um deles lia grego todos os dias – treino diário como se fossem pianistas ou atletas – para não perder a forma. (…) Tenho consciência aguda da necessidade de trabalhar o grego todos os dias; do risco que me espreita sempre: deitar a perder anos de estudo. É mais fácil esquecer o grego do que aprendê-lo. (…)

Há dois argumentos tradicionais que são normalmente invocados quando se trata de defender o ensino e aprendizagem das línguas clássicas. O mais patusco alega que aprender grego ou latim torna as pessoas mais inteligentes! (…)

Sou um pouco mais sensível ao segundo argumento tradicional: saber grego e latim enriquece a relação do lusitano com a sua própria língua. Digo “um pouco mais”, porque já reparei há algum tempo que, entre as camadas mais jovens da população universitária, os estudantes de línguas clássicas falam tão mal português como os que nunca leram duas palavras de Horácio. “É assim”: parece que o português falado entrou em queda livre, a todos os níveis. Trata-se de um fenómeno histórico, sociológico: irreversível, de qualquer forma – e os botas de elástico da “correcção” podem bem arrumar de vez as botas.

Não, o grego não torna ninguém mais inteligente; também não oferece defesa contra a plastificação da língua portuguesa, imposta por uma televisão tão reles como a da Itália, pátria de Horácio. Há apenas duas razões para aprender grego. Dá prazer. Alarga. ……..»

Um texto para meditar. Como os restantes deste livro «Grécia Revisitada”. Que alarga e dá prazer. Mas só a quem o apetece. A gravidade do que nele se diz, quer em relação à retirada “trágica” do Grego no Ensino Secundário, quer ao torpedeamento da Língua Portuguesa pelas camadas estudantis do Ensino Universitário não perturbam os governos, este último, sem outra devoção que não seja a de pagador de promessas.

Também o Francês e a sua literatura foram estrelas condutoras  “tant bien que mal” do nosso panorama intelectual de outrora. Eça de Queirós largamente o definiu. Levou o mesmo pontapé que o Grego, nos anos posteriores ao de Abril. E assim a Filosofia… Mas se a própria língua é menosprezada pelos dirigentes da Nação em Acordos Ortográficos da nossa vileza e mediocridade sem paralelo, e não só neste espaço de uma Europa competente, herdeira ou não do passado helénico, mas ao nível de tantos outros países do mundo inteiro, que mais se pode augurar a não ser o soçobrar deste pobre rectângulo, nau para sempre à deriva?

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Também estive na bicha


Mereci com isso ser falada,
A minha vida obscurecida
De repente foi iluminada
Pelos que teimaram em esclarecê-la
A uma luz de moralidade
Ou de preocupação,
Ou de ironia superior,
Atribuindo a minha longa espera
Na bicha, para pagar,
Quer a intuitos perversos
De açambarcar,
Quer a carências reais
Que os que filosofaram
Nunca tiveram
E por isso falaram
Troçando da mendicidade
Embora envergonhada,
Segundo explicitaram,
Implícita na atitude atribulada
De gastar horas dolorosas
Para o desconto para metade
Da despesa efectuada.
Um jovem que falou
Na “Opinião Pública” da Sic
Troçando do que viu
- Nem sei mesmo se lá esteve
Também,
Creio que não, pois não deve precisar,
Provavelmente vivendo
À custa do pai ou da mãe
Que custeiam
O seu curso de doutor,
Para assim poder caricaturar…
Mas a mesma visão parodística
Encontrei na exibição discursiva
Nada efusiva,
De Pacheco Pereira
Mais matreira que certeira…
Pois o tal jovem caricaturista
Da insólita situação
Dos Pingos Doces a abarrotar de gente
Despejando as  prateleiras,
Contou a hipotética história
De ele, como senhor doutor,
Pôr
Dois mendigos a lutar
Para ao fim lhes pagar
Um prato de sopa e um cigarro,
O que os pedintes logo fizeram
E tiveram.
Muito se discutiu pois, a acção
Da distribuição
Dos Pingos Doces da nação,
Uns criticando a concorrência desleal,
Por eles executada,
À manifestação do primeiro de Maio
Feita de reclamação,
E sem proveito algum,
E retirando toda a visibilidade
E a importância habitual
Ao Dia do Trabalhador.
Outros, falando, como eu já disse,
De mendicidade
E de falta de vaidade
- De auto-estima –
Num povinho que se esgadanha,
Ou espera com paciência,
Para obter mais barato
O seu naco de pão
Ou o caldo da sua tradição,
Embora a maioria
Levasse carregos quantos podia.
Os meus cento e  quarenta euros
Traduzidos em setenta
Foi ou não boa redução na quantia?
Obrigada, Pingo Doce, pela lembrança.
Valeu a pena.
Deves repetir a cena.
E até digo mais
Como qualquer dos Dupond/t também diria:
Bom seria
Que os vários espaços comerciais
Se revezassem ao longo do ano
Numa atractiva redução
Dos preços dos seus produtos alimentares.
Mesmo porque os outros espaços comerciais
Sobretudo de panos,
Fazem saldos pelo menos
Duas vezes por ano.
E ninguém critica
Nem filosofa
Tão displicentemente
Ou tão preocupadamente
Sobre tal fenómeno
Do nosso consumismo imprudente.
E digo mesmo: indecente.