segunda-feira, 30 de abril de 2012

“Huis Clos”


Falou-se, uma vez mais, na ditadura do patronato, na dificuldade de os casais poderem ter filhos, explorados como são nos seus trabalhos com excesso de horas impostas pelos patrões e de gratidão dos que os têm, por os terem.
- Ninguém quer uma grávida, confirmou a minha amiga. Quando uma mulher vai a uma entrevista para o emprego, uma das perguntas é: Pensa engravidar?
Também se falou em Marinho Pinto, mas eu não sei até que ponto se pode acreditar no seu discurso acusatório de cravo vermelho ao peito. Ele fala na justiça para pobres e na justiça para ricos, banalidades do nosso quotidiano, os pobres quando são condenados apanhando cadeia, os ricos obtendo recurso e um processo arrastando-se até prescrever, por vezes também uma prisão domiciliária, no aconchego familiar.
E assim nos vamos envolvendo nas temáticas do costume acerca deste país “pequenino de uma assoalhada”, como lhe chama a minha amiga, abismadas com as fraudes monumentais de que o BPN actualmente se revela como exemplo edificante no nosso reduto desde sempre fechado.
Lembrei a peça de Sartre que reli há pouco, “Huis Clos” - “Entre quatro paredes”, na  tradução brasileira, mais ao sabor da caninha verde da nossa canção,  a lembrar o samba deles, Natália Correia, tendo-a traduzido, antes da democracia dos cravos, por “À porta Fechada” nas contingências das nossas realidades pidescas de então, que tanto carisma proporcionavam aos que lhes sofriam os efeitos ou que apenas delas troçavam em revista ou anedota popularuchas dos nossos prazeres espirituais.
Trata o seu enredo de uma chegada ao inferno, sucessivamente de três condenados – Garcin, Inês e Estelle – inferno não semelhante ao que é descrito  em tantas obras do passado, como os círculos do Inferno de Dante, onde vão girando os condenados pelas suas fraquezas várias em vida, perdida a esperança, segundo inscrição à entrada da passagem para o Aqueronte: “LASCIATE OGNI SPERANZA, VOI CH’ENTRATE” – mas em que a tortura é resultante, não só de um espaço requintado, de imutabilidade e claridade sem fuga possível, mas do próprio carácter argumentador de cada interveniente, obrigado ao convívio e ao julgamento dos outros e de si próprio, sem ilusão sobre si nem sobre os outros, capazes da mistificação nas histórias que cada um de si conta, apelativas do amor ou da admiração do outro, num universo sem Deus e sem esperança, o homem sendo o fautor do seu próprio destino, neste mundo ou em qualquer outro, onde a conclusão é a de continuar. Na imutabilidade de cada inferno: “Continuons”.
Os diálogos dos mortos, desde Luciano, constituem, por vezes, sátiras, de que os Autos das Barcas de Gil Vicente são igualmente exemplo, julgados os mortos pelos arrais das Barcas, em tom mais severo ou jocoso, segundo o barqueiro do Paraíso ou do Inferno. Não têm, pois, a dimensão humanista que se detecta na peça existencialista de Sartre, sobre a condição trágica do homem entregue ao seu ser responsável pelos seus actos, embora pretendendo esquivar-se – em vão - ao inferno do olhar alheio, ou do seu próprio, também condenatório dos seus truques de ambiguidade.
Sem grande dimensão, pois, vivemos neste nosso reduto de farsa, criticando-nos continuamente, em círculo vicioso, dada a inutilidade da crítica, numa nação que não se toma a sério.
- Continuemos pois, solta a minha amiga, certa de que este universo de “huis clos” não vai parar. Sequer em vida.

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