segunda-feira, 30 de abril de 2012

“Huis Clos”


Falou-se, uma vez mais, na ditadura do patronato, na dificuldade de os casais poderem ter filhos, explorados como são nos seus trabalhos com excesso de horas impostas pelos patrões e de gratidão dos que os têm, por os terem.
- Ninguém quer uma grávida, confirmou a minha amiga. Quando uma mulher vai a uma entrevista para o emprego, uma das perguntas é: Pensa engravidar?
Também se falou em Marinho Pinto, mas eu não sei até que ponto se pode acreditar no seu discurso acusatório de cravo vermelho ao peito. Ele fala na justiça para pobres e na justiça para ricos, banalidades do nosso quotidiano, os pobres quando são condenados apanhando cadeia, os ricos obtendo recurso e um processo arrastando-se até prescrever, por vezes também uma prisão domiciliária, no aconchego familiar.
E assim nos vamos envolvendo nas temáticas do costume acerca deste país “pequenino de uma assoalhada”, como lhe chama a minha amiga, abismadas com as fraudes monumentais de que o BPN actualmente se revela como exemplo edificante no nosso reduto desde sempre fechado.
Lembrei a peça de Sartre que reli há pouco, “Huis Clos” - “Entre quatro paredes”, na  tradução brasileira, mais ao sabor da caninha verde da nossa canção,  a lembrar o samba deles, Natália Correia, tendo-a traduzido, antes da democracia dos cravos, por “À porta Fechada” nas contingências das nossas realidades pidescas de então, que tanto carisma proporcionavam aos que lhes sofriam os efeitos ou que apenas delas troçavam em revista ou anedota popularuchas dos nossos prazeres espirituais.
Trata o seu enredo de uma chegada ao inferno, sucessivamente de três condenados – Garcin, Inês e Estelle – inferno não semelhante ao que é descrito  em tantas obras do passado, como os círculos do Inferno de Dante, onde vão girando os condenados pelas suas fraquezas várias em vida, perdida a esperança, segundo inscrição à entrada da passagem para o Aqueronte: “LASCIATE OGNI SPERANZA, VOI CH’ENTRATE” – mas em que a tortura é resultante, não só de um espaço requintado, de imutabilidade e claridade sem fuga possível, mas do próprio carácter argumentador de cada interveniente, obrigado ao convívio e ao julgamento dos outros e de si próprio, sem ilusão sobre si nem sobre os outros, capazes da mistificação nas histórias que cada um de si conta, apelativas do amor ou da admiração do outro, num universo sem Deus e sem esperança, o homem sendo o fautor do seu próprio destino, neste mundo ou em qualquer outro, onde a conclusão é a de continuar. Na imutabilidade de cada inferno: “Continuons”.
Os diálogos dos mortos, desde Luciano, constituem, por vezes, sátiras, de que os Autos das Barcas de Gil Vicente são igualmente exemplo, julgados os mortos pelos arrais das Barcas, em tom mais severo ou jocoso, segundo o barqueiro do Paraíso ou do Inferno. Não têm, pois, a dimensão humanista que se detecta na peça existencialista de Sartre, sobre a condição trágica do homem entregue ao seu ser responsável pelos seus actos, embora pretendendo esquivar-se – em vão - ao inferno do olhar alheio, ou do seu próprio, também condenatório dos seus truques de ambiguidade.
Sem grande dimensão, pois, vivemos neste nosso reduto de farsa, criticando-nos continuamente, em círculo vicioso, dada a inutilidade da crítica, numa nação que não se toma a sério.
- Continuemos pois, solta a minha amiga, certa de que este universo de “huis clos” não vai parar. Sequer em vida.

quarta-feira, 25 de abril de 2012

Ficou lá tudo


Comecei por lamentar a morte de Miguel Portas e a minha amiga logo afirmou, na ancestral consciência da nossa menoridade mental, que tanto nos inferioriza, mau grado as loas patrióticas tão literárias de Fernando Pessoa ou as de Cavaco Silva que até a Via Verde de inventiva nacional tomou como exemplo laudatório, no seu discurso abrilino de exaltação patriótica, esquecendo-se injustamente dos Magalhães socráticos:

- Coitado! Nem na Bélgica se safou! Um fulano com tudo à disposição! Mas eu estava convencida  de que ele superara a doença…

Lembrei que ele fumava muito:

- Parecia-me uma pessoa séria e bem formada, mas não sei se o seria de facto, se estivesse no Governo, sujeito aos condicionalismos desse posicionamento.

A minha amiga  não se comoveu:

- Eu, como já não sei quem é sério, é melhor não dizer nada. Então hoje, que estão a festejar o 25 de Abril por aí… Se os sacanas pensassem o que nos fizeram a nós…

E ei-la disparando sobre as suas evocações da altura, 38 anos atrás, em Quelimane:

- Eu estava a provar um vestido numa sobrinha da Tatão que era modista, quando me disseram: Houve uma revolução em Lisboa.

Consegui lembrar o meu caso, em Lourenço Marques:

- A mim, foi um telefonema da Flávia, logo pela manhãzinha. Mas a vida continuou, não ligámos muito, inicialmente. Só que comecei a escrever com mais afinco, o meu “Pedras de Sal” do contra.

- Passados dias, o inspector escolar Alves Pereira, disse-nos: “Estou a ver aquilo muito vermelho!”. Eu, a partir daí, perdi completamente a esperança naquilo. Tínhamos programadas as primeiras férias da nossa vida. Íamos por três meses. Mas eu tratei logo dos papéis dos meus filhos. Ficámos em casa dos donos da fábrica das camisas na Matola que estavam cá de férias. Estávamos a fazer uma vida de africanistas, frequentávamos um café onde se juntavam muitos de África, para os lados da praça de Alvalade, quando chegou a notícia de uma revolta na Matola, avisando que tinham destruído tudo na Matola. Ficou tudo aterrado. Eu e os meus filhos já não partimos para lá. Mas o Sud tinha uma empresa, teve que ir. Nós ficámos. Ele partiu com o dono da fábrica. Mas tiveram que se vir embora. Foi a 7 de Setembro.

- Bem sei, nesse dia nós fomos juntar-nos à multidão que defendia as tropas afectas ao governo português, que assaltaram o Rádio Clube de Moçambique. No dia 8, a Paula fez anos e levámos-lhes dos bolos da festa. Há um livrinho que me ofereceram “Aqui, Moçambique Livre” onde descobrimos a fotografia do meu filho Artur, de cerca de quatro anos, encostado a um Volkswagen. Na primeira página, puseram a foto de um idoso a esconder as lágrimas envergonhadas atrás da bandeira, na página seguinte colocaram o retrato da criança. Foram dois dias de entusiasmo e esperança ingénua de recuperação que vivemos, mas no dia 9 já não deixei os meus filhos brincar na rua, o medo instalara-se entre as gentes, e a partir daí, pedi férias e comecei a tratar dos papéis para trazer.  Chegámos em 23 de Setembro.

- O meu marido tinha dinheiro no Banco Nacional Ultramarino, que o reteve. Com o dinheiro que guardava em casa e na empresa, foi ter com um comerciante de camarão: - Vende-me um contentor de camarão? O negócio fez-se, mas o meu marido não veio para cá sem ver o contentor embarcado. Todos os dias ia ao cais. Aguentou dias. Mas as supra-renais pararam, com a tensão nervosa. Foi a um bom especialista quando cá chegou, que lhe receitou hidrocortone para o resto da vida. Só que o hidrocortone acabou agora em Portugal. É preciso importar de Espanha. O meu marido teve essa safa do camarão, foi um dos primeiros e iniciar-se na Doca Pesca. Fora estimado em África, como agente da Volvo. Já se estava a expandir quando veio o 25 de Abril. Era amigo do Monteiro e Giro e do Pio Cabral. Ficou lá tudo. Quem era só funcionário público era uma coisa, quem fez obra ao longo da vida era outra. Mas deixaram lá tudo.

- Também houve os Almeidas Santos que não deixaram lá nada. Trouxeram tudo.

- Ah! Sim! Mas alguns não aguentaram, com ataques cardíacos. Como agora, aliás. Há muitos que não resistem, com AVCs, pela falta de emprego. E a perda de bens do tempo das vacas gordas de empréstimo com que lhes acenaram antes.

- Mas a Brigada do Reumático está aí prestes a escarrar as suas teorias do costume. Até faltou às comemorações do costume. Talvez para preparar novos truques para não deixar recompor o que todos eles ajudaram a destruir.


segunda-feira, 23 de abril de 2012

“A gente importa batatas e programas”


Foi a propósito do programa “A tua cara não me é estranha” da TVI de que ontem à tarde escutei Luciana Abreu no fado de Amália “Lágrima”, imitando Dulce Pontes. Já ouvira falar dela como excelente intérprete, mas para mim a interpretação de Margarida Bessa desse fado excedia a da própria Amália e, desconhecedora das regras do programa, que só vira de passagem - e numa delas, dando com Goucha de gatas, preso por uma coleira a imitar um cão, logo orientara o comando televisivo para outro destino menos deprimente – comentei que me lembrara a Dulce. A minha amiga explicou que era esse o objectivo do programa, reproduzir as vozes de outros cantores. Mas tratava-se de um programa de importação. E concluiu, com o arrebatamento costumeiro:

- “A gente importa batatas e programas”.

Gabei a voz de Luciana Abreu, condenei os arrebiques linguageiros dolicodoces de António Sala, mas a minha amiga contou que se tratava de um programa brincalhão, gabou a Alexandra Lencastre, que fazia parte do júri,  como actriz segura.

 Eu tinha outra na manga, e a nossa bica domingueira descambou por aí. Com efeito, tinha ouvido das 7 às 8 horas da manhã, o “Eixo do Mal”, em repetição, e entre a barafunda das gargalhadas, interrupções ou discursos de diferente alcance, dos cinco participantes, ouvi da Clara Ferreira Alves, a respeito da caçada de Juan Carlos, o desdenhoso comentário sobre Cavaco Silva, “que oxalá fizesse caçadas com amantes e se perdesse com elas” – não distingui se a perdição se reportava à companhia  das caçadas ou das amantes.

A minha amiga não me deu tempo a comentar sobre a infantilidade do insulto da cronista, porque enveredou logo pela figura do rei de Espanha e pelas suas experiências cinegéticas de zambeziana divertida:

- Foi caçar elefantes aonde? Aquilo é só para a fotografia! Foi vê-los ao longe. Foi à mata e partiu a anca. Ele é presidente de uma associação de protecção do ambiente, não pode caçar. É preciso gente competente para caçar elefantes. Foi passear para o Botswana, sem se preocupar com as despesas, e agora agradece a quem se preocupou com a sua perna.

- Mas pôs o mundo em alvoroço.

- Eu já estive na Gorongosa juntamente com um grupo de amigos. Em vez de irmos pela estrada principal, metemos por uma picada e apanhámos grandes sustos, pois vimos manadas de elefantes, sem estarmos protegidos. São muito perigosos, pois as trombas são muito pesadas. E abanam assustadoramente as orelhas. Nunca devíamos ter ido pela picada. É claro que tudo, mais tarde, foi motivo de risota, mas já estávamos a salvo. Só não houve fotografia com elefante. Ainda hoje nos telefonamos. Era gente divertida, à moda da Zambézia.

E passou a falar em Pio Cabral, seu amigo, que começara como caçador de elefantes:

- Um dia um dos empregados disse-lhe que havia coisas a brilhar, numa determinada zona. Pio Cabral foi ver. Encontrou esmeraldas, turmalinas. Mas não era essa a fortuna da terra. Mandou examinar no estrangeiro o pó da terra, uma espécie de pó de carvão. Tratava-se de tantalite, uma liga que serve para fazer aviões. Durante anos Pio Cabral explorou a liga, tornou-se o homem mais rico da terra. Aquela mina, até ao 25 de Abril nunca acabou, estava  no auge. No aldeamento que construiu, nada faltava. Aquilo tinha tudo: casas, igreja, cemitério, cantinas, cinema, uma piscina fabulosa na casa dele, campo para os táxis aéreos, pois nos fins de ano as festas na sua casa eram fabulosas, trajes de cerimónia, tudo iluminado… Parecia uma cidade americana…

E a minha amiga revivia com entusiasmo o seu passado de passeios e diversão frequentes.

- E a tantalite?

- Creio que continua a ser explorada, talvez por gente da terra, a mina só se acabou para os portugueses.

sexta-feira, 20 de abril de 2012

Que futuro?


O texto seguinte foi-me enviado por email:

Salazar disse:

«Devo à Providência a graça de ser pobre: sem bens que valham, por muito pouco estou preso à roda da fortuna, nem falta me fizeram nunca lugares rendosos, riquezas, ostentações. E para ganhar, na modéstia a que me habituei e em que posso viver, o pão de cada dia, não tenho de enredar-me na trama dos negócios ou em comprometedoras solidariedades. Sou um homem independente. Nunca tive os olhos postos em clientelas políticas nem procurei formar partido que me apoiasse mas em paga do seu apoio me definisse a orientação e os limites da acção governativa. Nunca lisonjeei os homens ou as massas, diante de quem tantos se curvam no Mundo de hoje, em subserviências que são uma hipocrisia ou uma abjecção. Se lhes defendo tenazmente os interesses, se me ocupo das reivindicações dos humildes, é pelo mérito próprio e imposição da minha consciência de governante, não por ligações partidárias ou compromissos eleitorais que me estorvem. Sou, tanto quanto se pode ser, um homem livre. Jamais empreguei o insulto ou a agressão de modo que homens dignos se considerassem impossibilitados de colaborar. No exame dos tristes períodos que nos antecederam esforcei-me sempre por demonstrar como de pouco valiam as qualidades dos homens contra a força implacável dos erros que se viam obrigados a servir. E não é minha culpa se, passados vinte anos de uma experiência luminosa, eles próprios continuam a apresentar-se como inteiramente responsáveis do anterior descalabro, visto teimarem em proclamar a bondade dos princípios e a sua correcta aplicação à Nação Portuguesa. Fui humano».

            Foi-me enviado o texto sobre Salazar por alguém que, talvez por ser jovem ainda, nunca viveu sob um regime que outros recordam com horror, fingindo ignorar, é certo, os condicionalismos de um país saído de uma primeira república de anárquica sucessão de governos em débito permanente e desordem social sem tréguas, um país de analfabetos a que uma revolução – de 28 de Maio – pretendeu impor ordem e, com a entrada de Salazar, impor igualmente o saldo da dívida externa.

            É claro que, para bem governar, Salazar entendeu fazê-lo segundo a sua linha de pensamento que respeitou os valores impostos pela sua educação de católico e de patriota, defendendo o legado pátrio colonial e tentando reconstruir o país em obras públicas, de que Duarte Pacheco foi nome cimeiro. Lembro que se cantavam hinos nas escolas – o Nacional e o da Mocidade Portuguesa – e indiscutivelmente as escolas tinham uma disciplina que se volatilizou com a revolução seguinte, a que em breve se vai festejar na fraternidade morena das Grândolas actuais.

            O texto de Salazar reflecte um digno homem de bem, pese embora uma modéstia limitativa, proveniente da origem humilde que lhe não limou as arestas de uma visão económica mesquinha, não à maneira da clássica mediania dourada apesar da sua inteligência viva. Igualmente recai sobre ele a impugnação de ditador pela voz dos amantes das liberdades que eles julgam democráticas e já vimos que não existem, encaminhadas essas para a defesa dos direitos próprios de enganar, burlar, espezinhar, em clima de dolo, mentira, corrupção e impunidade que se vivem hoje.

            Talvez o jovem admirador de Salazar que me enviou o email, depois de uma visita a Santa Comba Dão, seja daqueles caracteres fracos que ao cinismo prefere a via do respeito pelos princípios. Só lhe direi que gente mesquinha sempre a houve entre nós. E o tempo de Salazar o provou, com a existência de bufos ou delatores, afora outros dolos de que ele próprio talvez não se tenha apercebido.

Hoje em dia é mais ao nível dos grupos que se protegem reciprocamente, marginalizando os que não têm jeito para engraxar ou bajular. Mas desses também os houve no tempo de Salazar, não sejamos ingénuos. Só que os direitos próprios eram mais protegidos e os cursos ou os cargos conquistavam-se pelo esforço próprio e não pelo atropelo.

Salazar foi um homem honrado da velha têmpera do antes quebrar que torcer. A casa onde viveu está em ruínas.

Indigna nação esta que não respeita os seus maiores, a sua história, aqueles que a amaram de facto, e que dá voz preferencial aos papagaios que a destruíram.

quinta-feira, 19 de abril de 2012

Um povo altruísta


Ouvi neste momento a Rosa Mota,
Nossa maratonista olímpica e mundial,
Que tantas vezes
Nos fez escutar o hino nacional,
Dizer que somos um povo generoso
Pois o nosso sangue damos mais que os outros
Para salvar vidas em risco,
Sem que disso
Nos cobre o fisco,
O que, quanto a mim,
É isso caso de estranheza sem fim.
Mas só me pergunto
Se, mesmo assim,
O povo generoso
Ou a Rosa vitoriosa
Não merecem críticas deste ou daquele
Como é o caso de alguns deuses
Ou heróis mitificados
Por Esopo relembrados
Na sua fábula para todos os gostos
E até para os desgostos,
Zeus, Prometeu, Atena e Mômo”:
«Zeus, Prometeu e Atena,
Tendo engendrado respectivamente
Um touro, um homem e uma casa,
Para árbitro chamaram o próprio Mômo.
Invejoso das obras pelos deuses realizadas,
Mômo declarou primeiramente
Que Zeus se mostrara trapalhão
Ao não colocar os olhos do touro
Sobre os próprios cornos de valentão
Para melhor ver onde tocava
Quando marrava;
O próprio Prometeu ele atacou
Por não ter suspendido o coração
Do homem na parte exterior,
Para impedir o vício de se dissimular
E permitir manifestar
Os pensamentos de cada um
Sem escrúpulo nenhum;
Finalmente,
Atena ele atacou
Por a sua casa não ter feito com rodinhas
Que possibilitariam rápida mudança
Em caso de má vizinhança.
Indignado com a crítica impertinente,
Embora inteligente,
Júpiter expulsou Mômo do Olimpo omnipotente.
Mostra a fábula que ninguém nem nada
Por maior que seja a sua perfeição,
Escapam à chicana endiabrada.»
O mesmo assunto é tratado
Na fábula mais grotesca
O velho, o rapaz e o burro
Que se transportam mutuamente
E alternadamente
Para escapar às criticas da multidão,
As quais não se extinguem nunca,
Tanta é a paixão
De mostrar opinião
Que move cada ser humano,
Ele próprio não isento
Da alheia ferroada ou nódoa,
Que cai sobre o melhor pano,
Ou, como diria o provérbio,
Tantas são as sentenças
Quantas as cabeças
Às vezes bem travessas,
Outras, arrevesadas,
Outras, concordantes
Outras, quando escritas,
Em desordenada alegria,
De erros ortográficos polvilhadas,
O que é moda, hoje em dia,
Que tristeza!
Peço perdão pela dureza,
Ou antes... leveza
Bem à portuguesa.

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Nos sete anos da Mafaldinha


Fiz os seguintes versinhos que a tia Paula ilustrou com belos motivos da internet, mas que o blogue não aceita, numa somítica aridez:
A Mafaldita espertita´
Fez um ditado à vovó
Em 19 de Março,
Que foi o “Dia do Pai”,
Embora fosse também
O Dia da Mãe,
Pois todos os dias
São Dias dos Pais
Que são os maiores
Dos seus amores.
Corrigiu o ditado da vovó
 Com tal rigor,
Que a avó indignada
Viu a sua prosa marcada
Com um somítico Bom
Em vez do Excelente
Que a vovó, que é doutro tom,
Deu à sua Mafaldita
No ditado anterior,
Que ditou com muito amor
Sobre o seu Papá também.
E tudo por uma questão
De incompreensão
Da letra torta
Da avó Berta
Que ela não entendeu
Por não estar tão perfeitinha
Como a que ela escreveu.
Mas a vovó generosa,
Não sente nenhum rancor
Por não ter tido Excelente
No seu ditado em prosa,
Nem mesmo se importaria
Com simples Suficiente.
E hoje, dezasseis de Abril
É dia dos seus sete anos
Uns anos tão jeitosinhos
Que só merecem miminhos.
Mas Mafalda, a professora,
Que já está uma senhora,
Prefere dar o miminho
Ao seu maninho
 Sebastião comilão,
Para depois ir fazer
Os deveres que diz ter,
Que a professora marcou,
Pois Mafalda é uma menina
Cumpridora e perfeitinha
Em tudo o que conquistou.
Beijinhos de parabéns,
À Mafaldinha querida,
Desejando-lhe felicidade
Risonha e certa,
E muitos anos de vida,
Os três avós da netinha,
Pureza, Vitorino e Berta.

A tia Paula associou-se à brincadeira, com os seguintes dizeres, fruto dos seus muitos saberes:
Pois é, Mafalda…
E então a avó Berta,
que é sempre muito esperta,
veio assim atrás da tia,
p’ra que os anos da Mafalda
tenham prosa, tenham verso,
como os anos do Bruno –                  
- os dez que fez noutro dia.
Já não se pode ter ideias
que fujam à monotonia.
Logo temos que as tornar
 uma rotina exemplar.
O blog tem de correr
e a avó Berta, muito certa,
muito porAmaisB,
diz que os anos dos netinhos
são uma letra que se lê;
não constituem uma balda
e merecem poemas lindos.
Então aí vai, Mafalda:
umas bolas, uns meninos,
uns bonecos a saltar,
bolo, fitas e balões,
numa festa de encantar.
E um ano, de seguida,
que te corra sempre bem,
porque tu és muito querida
e mereces, nesta vida,
o melhor que o mundo tem.

E a brincadeira levou-me à evocação de outros sete anos – os meus próprios – em que recebi do meu pai, que estava em Moçambique, no tempo da grande guerra, numa carta que guardo preciosamente, juntamente com outras, uns versos muito mais literários, que talvez um dia a Mafaldinha queira ler, por serem do seu bisavô, que ela não conheceu e que era um homem inteligente e bom:

“Os anjos são pequeninos”
«Nem festas nem parabéns,
Miúda, pode lá ser!
Sete anos! Que pressa tens!
P’ra onde vais a correr?

Eu sei que novos destinos
Te esperam. Mas, que saudade!
Os anjos são pequeninos,
Os anjos não têm idade.

Sete anos, dizem os sábios.
Não creio, fico indeciso.
Julgo inda ver nos teus lábios
O teu primeiro sorriso,

Sorriso feito pelas fadas
Há poucos meses ainda,
Das pétalas orvalhadas
Duma rosa muito linda.

Só a estrela da alvorada
Tão formosa em Portugal,
Poderia, filha amada,
Produzir sorriso igual.

E Deus e Nossa Senhora
Resolveram, de improviso,
Da estrela fazer a rosa
E da rosa o teu sorriso.

A estrela ficou sentindo
A grande diferença e chora.
O teu sorriso é mais lindo
Que o lindo sorrir da aurora.

Sete anos! Será verdade?
Não creio em tais desatinos!
Os anjos não têm idade.
Os anjos são pequeninos.»


É certo que a Mafaldinha não reconhecerá neste retrato tão embelezado de uma menina da sua idade – setenta anos atrás – a figura  de uma avó que se ri para ela, mas que nem por sombras se aparenta a uma aurora de sorriso orvalhado. E nem mesmo a um poente descaindo autoritariamente em fogo.
Precipitações da imaginação e da saudade dos pais ausentes, quando são poetas de alma grande. E do desconhecimento, quando se é pequeno, da veloz dimensão do tempo.




sábado, 14 de abril de 2012

A hora fatal


Transcrevo um problema de matemática para o 3º ano, copiado do quadro de uma escola pelo aluno:

“No sábado à tarde, a Laura encontrou-se com a Leonor. Às 16h 35, o Francisco juntou-se às duas amigas. Trazia cromos repetidos dos quais deu metade à Leonor. Como ainda tinha metade dos cromos resolveu fazer uma troca com a Laura. Deu-lhe 18 cromos repetidos e recebeu 8 cromos que ainda não tinha. Regressou a casa com 48 cromos. Quantos cromos tinha o Francisco levado?”

Um problema folclórico, cheio de dados para enganar.  A referência inútil ao dia e à hora, a referência a uma Leonor que podia não ter entrado na história, a quem o Francisco deu metade dos cromos repetidos que não são para figurar no raciocínio, mas apenas para o atrapalhar. Os únicos dados que contam são os sublinhados:  Os 48 cromos com que chegou a casa, os 8 que a Luísa lhe deu, que portanto ele não tinha (48-8=40), os 18 que ele deu à Luísa e que portanto ele tinha (40+18=58). Como 58 correspondem a metade dos seus cromos, deduz-se que teria o dobro: (58X2= 116).

E assim, por meio de raciocínios tortuosos se ensinam as crianças, que, naturalmente, a menos que sejam muito bem dotadas, não vão compreender.

O mesmo direi da divisão. No 3º ano não se exige a resolução da operação, com dividendo, divisor, quociente e resto, mas apenas ao nível da compreensão da palavra repartir. O que tem como resultado, por vezes, em números maiores, a decomposição do número em milhares, centenas, dezenas e unidades, cada um desses números de ordem, assim dividido, dificultando mais a compreensão do que pela forma prática da aprendizagem antiga.

Dou um exemplo fácil: 9999 berlindes a repartir por três meninos: Começo por decompor por ordens: 9000+900+90+9; segue-se a repartição de cada ordem por 3: 3000+3000+3000+300+300+300+30+30+30+3+3+3. Soma-se cada parcela diferente: 3000+300+30+3= 3333 berlindes a cada um dos meninos.

É claro que, antes de chegarmos a estas altas especulações, já se tinham usado números mais pequenos, para distribuir por sacos ou meninos igualitariamente.

Não compreendo a insânia destes métodos que pretende desenvolver os raciocínios juvenis complicando, através de um rebuscamento impróprio para as suas idades, quando seria muito mais eficaz a aprendizagem da divisão como processo inverso da multiplicação e com os seus trâmites próprios: em 9 quantas vezes há 3…

Foi, talvez, através destes rebuscamentos do nosso empolamento precioso, que no nosso país as divisões resultaram em multiplicações estrondosas, porque houve tempo para lhes torcer os trâmites, autênticas bacanais de arrojo em todos os níveis. Evoé!

quarta-feira, 11 de abril de 2012

«Ninguém se apercebe de nada»


Mas Rui Knopfli apercebia-se, ele era dos que frequentavam os sítios onde havia informação. O resto do povo fazia a sua vida, a maioria trabalhava, ainda as drogas não frequentavam os espaços de uma África ampla e saudável, a mocidade brincava em liberdade. E também estudava. O 25 de Abril colheu quase todos de surpresa, até mesmo os governantes – esses, sobretudo – e as tropas de cá e de lá, chamadas a defender aquilo lá, para benefício de cá, até mesmo aqueles que traíam sobretudo lá.

Rui Knopfli foi dos que se apercebeu, dos que frequentou, dos que traíu por conveniência ficticiamente democrática, embora sem muita convicção, alma sensível que era e tão bem se revelara nos versos com que moldou as paisagens da sua tristeza. Mas, europeu que era, não permaneceu, para cá veio, protegido pelo bloco dos que, atraiçoando a pátria, agora distribuíam as benesses pelos da Intelligentsia traidora. Veio para cá, esteve em Inglaterra em trabalho, julgo que viveu na agonia da saudade pela terra que tão bem descreveu, no arrependimento pelos da “inocência bem – ou antes, mal - aventurada” que desprezara, burguesia do trabalho, que construíra cidades e vias e as fábricas que a Metrópole consentia que se construíssem por lá.

Não, ninguém se apercebeu. E nem mesmo Rui Knopfli, que, se vivesse hoje, se espantaria com o trajecto de um país a saque, um país que fora amplo e que agora se via condenado a viver dos empréstimos, usados em reformas e benefícios, sim, do país reduzido, mas a maior parte, talvez, em benefício dos habituais do saque. Nesses se incluem também os estrondosos cartões de crédito a governantes, e as mordomias dos mesmos, e os vencimentos dos trabalhadores da RTP que o povo também paga para ser tratado com muitas boquinhas pelos apresentadores de sorrisos torcidos e de outros requebros. E inclui-se igualmente a multa a Mário Soares que em cólera pela desconsideração do polícia cumpridor, solta um formidável “O país é que vai pagar!”, tão sintomático daquilo que valemos, como povo da discrepância e da mediocridade. Salvou-se o polícia cumpridor, contra os do endeusamento dos heróis fictícios da nossa “epopeia” actual, não mais marítima, mas bastante aérea.

Eis o poema de Rui Knopfli:

«Winds of change»
«Ninguém se apercebe de nada. / Brilha um sol violento como a loucura / e estalam gargalhadas na brancura / violeta do passeio. / É África garrida dos postais, / o fato de linho, o calor obsidiante / e a cerveja bem gelada. / Passam. Passam / e tornam a passar. / Estridem mais gargalhadas, / abrindo umas sobre as outras / como círculos concêntricos. / Os moleques algaraviam, folclóricos, / pelas sombras, nas esquinas / e no escuro dos portais / adolescentes namoram de mãos dadas. / De facto, como é mansa e boa / a Polana/ nas suas ruas, túneis de verdura / atapetadas de veludo vermelho. / Tudo joga tão certo, tudo está tão bem /  como num filme tecnicolorido. / Passam. Passam / e tornam a passar. / Ninguém se apercebe de nada.»

E agora, que percebemos, resta-nos o “tarde piaste” da nossa inconsciência. Porque os da incontinência souberam piar mais cedo. Sem parar.


O Perigo Amarelo com música de fundo


Ontem lembrei à minha amiga uns versos do Rui Knopfli sobre o povo chinês, e tudo porque ela voltou a frisar a sua expansão no mundo:

- Toda a gente conhece essa expressão “perigo amarelo”. Está implantado no mundo. Na Austrália… alguém pensava? Numa telenovela do Brasil aproveitaram para dizer isso. Os chineses já estão bem instalados, quer seja aqui, quer em Angola, nos Estados Unidos… E pronto. É o mundo que vai mudar. No domingo de Páscoa, loja de chinês aberta. Eles provaram que vão longe. Trabalham e vão longe. Há escravos. Eles aceitam a escravatura. Aqui vai haver muita malta com os olhos em bico, com os cruzamentos. Os miúdos desses cruzamentos ficam giríssimos e são muito espertos.

Eu desdenhei do entusiasmo, assustada com as perspectivas de uma perda da pureza nacional na questão dos genes e da salada que as nossas escritas, provenientes dos Camões e dos Pessoas, poderiam formar de mistura com os Confúcios, muito embora destes só pudessem colher boas ideias, mau grado os Maos revolucionários. Mas os nossos são os nossos, enquanto o sangue  for correndo em veias lusas, não desejamos os nossos escritores votados ao esquecimento, por muito preparados que estejamos para tal eventualidade, graças a um Acordo Ortográfico para mentecaptos e a outras medidas de mentecaptos que nos vão esbatendo da configuração europeia, perante a indiferença do mundo, esquecido do nosso contributo para ele, mais apostado no berço clássico da Europa bem falante.

Rui Knopfli, no seu livro “Reino Submarino”, retrata, pois, esse povo manso que já então, pelos anos sessenta, se ria de nós, lá nas Áfricas, ciente de que o mundo inteiro seria seu, mansamente, sem definhamento, com a inteligência da dedicação nacionalista, de ambição ilimitada, disciplinadamente manipulada, ratos roedores do grande queijo que apeteceram. Escreveu Rui Knopfli:

“O povo da China visto do Alto-Maé”

«Eh pá, a gente pensa na China, / nos compridos campos de arroz /  nos milhões de pessoas / como imensos bagos de arroz, / vivendo lá na China. / É engraçado a gente aqui no Alto-Maé / que conhece o Kong, magrinho, da hortaliça / com aquela voz engraçada (Stá plonto patlão), / é engraçado como a gente se engana / com a China, aquele povo imenso / de Kongs amarelinhos e fala doce / que construiu a Grande Muralha / e que constrói a vida / e que, se tem tempo, se ri de nós, / da nossa pele  descolorida, / dos nossos olhos redondos / e dos erres engraçados com que falamos.»

Rui Knopfli era poeta e vidente. A minha amiga faz anos hoje, ela ficará contente por ter um poeta, que ela conheceu, a confirmar o seu pensamento sobre o perigo amarelo que apontou. Como homenagem de parabéns os transcrevi.

sexta-feira, 6 de abril de 2012

O cofre-forte


A fábula de Esopo
“A serpente e o caranguejo”
Não é bem o que eu julgava
Quando da serpente falava
O caranguejo insensível                
De um amigo desprezível,
- Uma serpente malfeitora -
A quem ele apertou a goela
Predadora.
A maioria das vezes
Os que morrem são passíveis
De elogios indizíveis,
Sem qualquer correspondência
Entre o real e a aparência.
Mas não foi esta a moral
Com que Esopo concluiu
A sua fábula plural:

«Um caranguejo e uma serpente
Viviam no mesmo solo
Mais ou menos flutuante.
O caranguejo para com a bela se comportava
Com rectidão e benevolência
Mas esta, matreira e com dolo
Sempre para com aquele se mostrava,
E sem clemência.
O caranguejo não cessava
De a exortar a deixar
As maneiras tortuosas
E antes a imitar
A sua rectidão de senhor.
A outra, contudo, fazia
Ouvidos de mercador.
Até que o caranguejo indignado
O momento espreitou
Em que a serpente, dormindo,
E com maroscas sonhando,
Se descuidou.
Apanhou-a pela goela
E matou-a
Sem nenhuma pena dela.
Vendo o cadáver estendido
A todo o seu comprimento,
Exclamou com sentimento:
“Ah! Tu! Não é agora
No momento em que estás morta
Que devias parar de ser torta
Mas quando eu to pedia,
Sem que jamais me escutasses
E nunca te contivesses.”

Realmente,
O que eu tenho ouvido sempre,
Sobre os últimos fins do homem,
Quer seja velho quer jovem,
São palavras de gentil sentido
De loas sobre o finado,
Mesmo que se tenha comportado
Menos bem.
De vil que era
Ou pouco brilhante
Em vida,
Passou a ser
Emérito  e impoluto
Agora que provocou o luto
E já não faz mal a ninguém.
Mas Esopo é doutro tempo,
Quando as fúnebres cerimónias
Se faziam sem cinismo
E sem as simpáticas histórias
De ilustres memórias.
Por isso a moral dele
Versa mais
Sobre a utilidade na morte
De quem em vida quis ser forte
No porte,
Que é como quem diria,
Hoje em dia,
No cofre-forte.
De grande importância pois, a sua morte,
Para os herdeiros do seu cofre-forte.






quinta-feira, 5 de abril de 2012

Na palma da mão


Falou-se primeiro da chuva, tão necessária aos fogos florestais e até aos incêndios em edifícios, embora por pouco tempo, que o verão ainda está para vir.

- Coisa horrível a fábrica moderna, moderníssima, ardeu tudo, lá para o Zêzere. A quantidade de galinhas, de ovos, é uma coisa inconcebível. Mas a serenidade do dono surpreendeu-me - disse a minha amiga sempre pronta a alvitrar com suspeição.

- Não terá sido ele próprio a incendiar para receber do seguro? – achei eu, também de alvitre desconfiado, embora sem as configurações dos dos Sherlocks ou Poirots da minha amizade.

- A quantidade de gente que vai para o desemprego! Nunca tinha ouvido que tínhamos a fábrica mais moderna das galinhas e dos ovos.

- Na questão de volume, temos colossos como o Colombo, temos auto-estradas em barda, automóveis e telemóveis também em barda. Pequeninos e dançarinos é como nos concebemos.

- Ou velhacos – alvitrou outra vez a minha amiga, que não deixa os provérbios pela metade.

E passámos à questão dos ipods:

- No tempo da televisão dizia-se que a Internet ia ser uma espécie de big-bang da nova era, cuja espiral de crescimento não se sabia onde iria dar. Pois está aqui. Na palma da mão. Já aqui chegámos em 2012. Temos os ipods, os ipads, a internet reduzida à palma da mão. O sujeito que desenvolveu a ideia de três estudantes teve a pouca sorte de não ver o seu trabalho. Morreu com sessenta e poucos anos. O aparelho apareceu o mês passado na América: logo em Portugal se fizeram bichas para comprar os aparelhos. Não há nenhuma criança que não peça à mãe ou ao pai. Só há o perigo de roubo.

- Pois é. Não há criança sem ipod. Será que os deputados sabem disso? É que atacam tanto o Governo na questão dos subsídios de férias e de Natal, a defender o pobrezinho do povo sem eles até 2015 - mas devem ser mais anos, e os deputados sabem disso, que os tróikas é que mandam, e até mesmo já falam em supressão total dos subsídios – que não devem ter conhecimento dos ipods das criancinhas, embora reconheçam que há carros e telemóveis q. b. neste país tão amigo de saber coisas que caibam na palma da mão.