quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

«Alguém devia mandá-lo calar»


Comecei por apontar o paralelismo entre a linguagem verbal e gestual no discurso do dirigente Seguro do PS, a sua seriedade comedida resultante do perfeito equilíbrio entre os dizeres sobre o prolongamento dos prazos de pagamento da dívida troikista para os naturais amortecimentos da nossa dor populista e a posição dos dedos e das mãos de Seguro explicando simultaneamente o fenómeno da filosofia por si expendida, os dedos polegar e indicador em via paralela inicial, progressivamente as mãos afastando-se e finalmente unindo-se no aprumo das conclusões, lantejoulas assinalando o compasso.

Parece que a minha amiga não se sensibilizara com essas imagens etéreas, que a mim pareceram sintomáticas de uma certa categoria mental por Eça bem caracterizada nos seus conselheiros Acácios, não já só na sua respeitabilidade, convencionalismo e vazio formais, mas “enriquecido” numa gestualidade não para surdos-mudos mas para “ceguinhos” (intelectualmente falando) necessitados de apoio figurativo, específico dos novos tempos de animação pedagógica.

A minha amiga despejou o seu parecer, com iracúndia:

- Já devia estar calado. Alguém devia mandá-lo calar. Ele quer ser primeiro ministro. O que ele pede é que seja alargado o tempo, esquecido de que eles autorizaram a entrada da Troika.

               E continuou rapidamente, que o nosso tempo é escasso e ela tinha as medidas cheias das novidades :

            - A Ferreira Leite ontem falou desse Seguro, para ver se ele se cala. Está a fazer a promoção para ver se nas próximas eleições vai lá. Mas parece que vivemos num filme de terror. A corrupção faz-se com o maior descaramento e no entanto há políticos que vêm contar tim-tim por tim-tim. Estes novos parece que querem pôr o país normal. Em milagres não acredito.

            E acrescentou com ênfase:

- Agora eu pergunto: Porquê vocês políticos deixaram chegar o país a tal miséria da corrupção? É porque, se falassem, iam para a rua! Hoje os da Justiça já se atrevem a dizer que há corrupção nela!

Eu gravava afanosamente as frases num guardanapo do café, pois esquecera o bloco, na pressa de ir apanhar o ar diário do meu convívio habitual! E a minha amiga citava imparável:

- O Correio da Manhã transcreve a conversa entre Sócrates e Arouca sobre a forma de definição do curso do PM. Parecem dois anormais! O Arouca reitor de uma Universidade! A forma como se baixa ao pedido do Sócrates e cozinham o currículo! Só porque é ministro! E a forma malcriada com que Sócrates se refere aos investigadores da conclusão desse curso! Depois há os outros casos miseráveis, que foi tudo parado. Então um país vai viver assim? É miserável! Os cartões de crédito dos ministros para usarem na sua vida social… Há de ver as importâncias! O direito que eles têm de gastar! Dão-lhes uma pequena fortuna! A Ferreira Leite diz que o mal do país é que, quando chegou o euro toda a gente ficou a pensar que o país era rico. Mas o mal não está aí! O mal está no roubo. Foi qualquer coisa de extraordinário: "Vamos aproveitar ao máximo!" Criaram-se empregos fictícios – assessor de imagem! Mulheres criadas à moda! Mas isto é um país de quê? E porque é que estes economistas não tinham antes esta percepção?

- Com efeito! – arranquei eu finalmente, já levantada, na pressa dos afazeres domésticos. - Tanto Ferreira Leite como Medina Carreira da entrevista de Judite de Sousa já tiveram cargos no governo. Como foi com eles?

De longa data se vira o disco que toca o mesmo. Dalida o disse: “Parole! Parole! Parole!”




segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Casa Africana


No Pingo Doce encontrei o semanário I que me chamou a atenção sobretudo pela fotografia de José Gil que por vezes leio com apreço, até por ser alguém que conheci. Era filho da escritora Irene Gil e irmão de Fernando Gil, este, sim, meu colega no 7º ano de Letras no Liceu Salazar, como figura marcante de saber e rebeldia, naquele ano de 53, em que esteve preso na Pide, juntamente com outros colegas, por crime, ao que parece, de leituras subversivas e talvez reuniões condenáveis pela contestação que implicavam ao regime de Salazar.

Lembro o dia em que ele entrou na nossa pequena sala de Letras e eu soltei um deslumbrado “Olha o Gil!”, após os dias de sentida ausência, e as lágrimas, mal refreadas, lhe brotaram nos olhos, geralmente contidos, por consciência altiva da sua distância ao comum de nós outros, mortais. Significavam elas o sofrimento por que passara e o reconhecimento da amizade e admiração dos colegas no escândalo que assumira tal prisão e que, afinal, só poderia trazer-lhe mais glória ainda, na nossa impossibilidade de a penetrar, vista a fronteira intelectual que o distinguia dos colegas.

Fernando Gil e José Gil seguiram os seus caminhos que são concisamente dados a conhecer nas biografias dos seus méritos.

De José Gil, que conheci posteriormente em casa da sua mãe, já após o 25 de Abril, embora fosse referência nas conversas de uma mãe não resignada à sua solidão, vou lendo ou vou ouvindo, nas suas actuações em programas televisivos, para além do livro de fácil abordagem “O Medo de Existir” que nos encheu as medidas, na altura em que se constituíam regras perversas contra a dignidade de uma classe que fora chamada docente, impedindo-a de respirar e de viver. É certo que agora, quem impõe essas regras são todos os que têm trabalhadores a seu cargo, a ditadura/escravatura passou a ser empresarial, graças ao medo de não se existir como trabalhador, para parafrasearmos desmistificadoramente uma filosofia altamente elaborada.

Todo este introito vem a propósito da entrevista assinada por Maria Ramos Silva feita a José Gil, que termina da forma seguinte:

«-Tendo passado tanto tempo em diferentes sítios, chama casa a algum deles?

- Sabe, eu não tenho necessidade de lar porque não nasci num lar. Não nasci num lar porque o que se criou como ideia e realidade de lar em Moçambique, numa ex-colónia portuguesa, é um edifício artificial, construído sobre a ausência de lar, ausência de uma relação natural, que passa pela língua e pelo corpo, com o território. Nós, moçambicanos brancos, nascemos em Moçambique sem lar, mas criámos um, que dizemos ser o mais forte que existe, que é Moçambique. Não tenho nostalgia nenhuma de um lar que nunca tive.»

Incomodou-me tão acintosa contestação de um lar moçambicano, como humilde reconhecimento de que a sua cor de pele lhe não dava direito a uma naturalidade em terra doutra cor, mas silenciando o facto de lhe ter absorvido os bens que lhe permitiram seguir os estudos no estrangeiro, bens paternos que lhe não faltaram e que soube reivindicar como de direito, mau grado as generosidades perdulárias a favor do povo negro, sem atender aos direitos do povo branco de longa data aí estabelecido, como em outras partes da esfera acontecera, como muitos outros povos exemplificam.

Salvou a sua imagem, numa pseudodedicação à causa libertária da África negra, mas ocultou, com saber, quanto a ela devia a sua projecção actual no mundo da cultura. Sem esses investimentos na sua educação, de uns pais com posses suficientes, nessa terra que renega como sua, a sua genialidade não seria tão reconhecida agora, chamado, certamente, a cumprir na defesa da pátria, de que pôde desse modo livrar-se a tempo.

Não foi caso único, hélas, pois muitos houve que, depois de lhe saborearem os frutos, arrancaram as raízes da árvore que lhes deu o ser, a pretexto de uma ideologia momentânea que lhes dava aura: «O marxismo era a filosofia. Também me deixei apanhar; felizmente durou pouco tempo» - afirma José Gil. Apenas o tempo de poder safar-se, entendo eu, da mesma forma desmistificadora.

José Gil aponta a inveja como característica específica do temperamento português. Só desejaria que, caso lhe chegasse aos olhos este texto, do que evidentemente duvido, não atribuísse a esse feio sentimento a minha crítica. Também já não é a raiva da surpresa ingénua dos primeiros tempos perante a “fuga dos ratos” dos porões de então, que a move.

É realmente pena, por ver tão brilhantes cabeças pronunciando tão balofas sentenças.


quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

As fitas da nossa auto-estima


Achei estranho que a minha amiga não aparecesse com uma expressão mais prazenteira, pois, tal como eu, escutara um pouco o que uma senhora ainda bastante jovem exprimira ontem no Portugal no Coração à Tânia e ao Baião sobre a necessidade de cultivar a alegria no nosso país, que anda a murchar de pasmo. Até comentámos que iguais propósitos de difusão da gargalhada devem ter estado na origem dos invólucros de algumas saliências nas paredes exteriores dos prédios, colocados por pessoas também defensoras da alegria, entre os quais dois à porta do nosso café matinal, feitos de plásticos e laçarotes berrantes, a fim de elevar o moral, diz-se - não sei se o dos frequentadores se o dos donos do café, que verdadeiramente precisariam de mais frequentadores e de maior calibre consumista do que nós, que nos limitamos a modesta biquita  pois já vimos matabichadas de casa, graças ao atavismo que nos prende aos costumes da nossa ancestralidade comensal em  família.

Já tínhamos, aliás, comentado os plásticos e as fitas - e também os laçarotes nas árvores  que se diz que ali são colocados no mesmo objectivo jubiloso - como coisa parola própria do nosso horizonte espiritual provinciano.  Mas  o discurso da socióloga, ou psicóloga, ou talvez  mesmo astróloga, no “Portugal no Coração”, deixou-nos murchas de todo. De enfado.

A minha amiga ainda tentou entender as razões da senhora entrevistada e a anuência dos simpáticos entrevistadores com a justificação de que somos considerados o povo mais triste dentre os povos europeus, mas eu achei que o que nos torna tristes é a insegurança da nossa modéstia cultural, de povo que viveu sempre na apatia de um sol preguiçoso, geralmente mal governados por reis ávidos, numa sociedade de classes, com um povo escravizado, uma nobreza parasita e fútil, um ensino  de orientação jesuítica desligado das conquistas culturais e técnicas dos povos europeus, sempre na cauda de todos, ao contrário do que afirma Pessoa, que põe no seu país o rosto da Europa fitando um além de valentia, é certo - embora os olhos se tenham fixado paradoxalmente na Grécia - mas de uma ambição de posse que não se concretizou pelo desenvolvimento cultural e social como no resto da Europa.

E hoje, que não sabemos para onde vai um ensino que grande parte dos alunos despreza, com a conivência dos adultos, hoje, em que parece não haver regras nem respeito por coisa alguma, em que se permite que os meninos comecem a beber cedo álcool, em que a droga impera, em que os acidentes na estrada provêm de todos esses factores e sobretudo da falta de consciência cívica, em que a justiça falha e a corrupção alastra impune, falar do cultivo da alegria ou tentar inspirá-la com toscos artifícios de enfeites de bairro, não parece sério nem eficaz.

Porque a alegria não resulta da gargalhada, nem a gargalhada é consequência desta. A alegria é um estado de alma que nasce do amor e da convicção de que a nossa vida tem sentido, sentido que se vai obtendo com o conhecimento e a educação, com o respeito por si e pelos outros.

Não temos motivos para a tal gargalhada de felicidade, num mundo a desfazer-se, entre nós, no pasmo e na desesperança, mas lá fora, também, na tropelia de violências e desacatos igualmente animalescos, exceptuado, naturalmente, tudo o que de bom existe em toda a parte.

Não somos más pessoas. Criámos bancos nos jardins, onde os velhotes apanham o seu sol, solitariamente ou com algum amigo, raramente lendo, desinteressados, blocos graníticos de vidas a extinguir-se. Mas ultimamente até os deixamos aparecer mortos nas suas casas de solidão.

Um país endividado assustadoramente, um governo que o quer desendividar, mas manietado sempre pelos que, tendo anteriormente garantido que o aumento da miséria e do desemprego ia continuar de forma atroz, preferem condenar agora as acções desse governo, a dar-lhe margem para cumprir como promete, sempre emperrando, em auto-saliência de sabedoria que também não provoca alegria, embora por vezes mereça gargalhada de desprezo.

Entretanto, a minha amiga falou na gente hospitalizada  por causa destas tosses e gargantas arranhadas como a nossa, presentemente, de alergia a qualquer  bactéria ou vírus talvez provenientes da falta de chuva, esta sendo mais uma calamidade a acrescentar às outras, de obstáculo à alegria recomendada pelos animadores psicológicos.

E a minha amiga conclui, escandalizada:

- Olha-me esta! Só nos faltava a bactéria!






segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Os extraordinários linguistas do nosso despudor

  • Chama-se Ferreira Fernandes, assina-se como jornalista de uma rubrica diária na última página do DN – “Um ponto é tudo” – geralmente insulsa, quando não pretensiosa, felizmente em reduzido tamanho, maior, todavia, do que o tal ponto que imodestamente a intitula. 
  • A de hoje, 20 de Fevereiro, que me permito transcrever, para maior realce ainda, pois sei bem o quanto as chamadas de atenção para as idiotias nesta nossa terra têm o condão de lhes dar mais projecção, tem por título “Vocês sabem o que é o “modus operandi”?  
  • «Um luandense escreve de forma lenta e esforçada: “Çapato”. Outro luandense lê e espanta-se: “Quê? Sapato com c de cedilha?!” O primeiro relê-se, hesita, mas logo contra-ataca, varrendo o espanto do outro: “E você leste bota?...” A fala que a minha cidade natal dá à minha língua, usando-a de forma saboreada e gozada, tem paralelo com a escrita que os brasileiros praticam, por exemplo entre os seus magníficos cronistas. A essas duas formas de usar o português, imaginativas, apropriadoras, piscando os olhos com os lábios, eu sei que não abuso quando as comparo com a língua substantiva dos camponeses transmontanos. Em 1975, quando Portugal fervilhava, Lisboa mandou estudantes universitários, então em parênteses com a farda catequizar aquelas bandas. “ Numa aldeia, um jovem oficial miliciano subiu ao Unimog, cercado de povo, e falou como sabia, oco: “Vocês sabem o que é o socialismo?” Ao que uma camponesa respondeu: “E vossemecê sabe o que é o salamim?” Eu, que não sabia o que era o salamim e do socialismo só julgava saber , tenho essa história demasiado presente quando leio os jornais portugueses a debater o Acordo Ortográfico. Escreve-se sem alma nem raízes, longe da coisa salamim e enrolados em vazios como “implementação” e “modus operandi” – os jornais não se lêem porque são escritos sobre Unimogs – mas sufoca-se com o “p” mudo perdido. Prefiro o luandense do “çapato” e os erros de concordância de Nelson Rodrigues.» 
  • Um texto que se permite ironias sobre os atacantes do AO, quando só revela lacunas gramaticais graves, na desculpabilização do erro angolano (o ç jamais inicia as palavras portuguesas), solecismos angolanos comparáveis aos que a camada popular brasileira pratica profusamente nas suas discordâncias sintácticas e fonémicas, a bajulice aos magníficos cronistas brasileiros, embora, neste ponto, com razão de ser, pois indiscutivelmente o tipo de argumentação daqueles nada tem a ver com o emaranhado fraseológico do articulista português bajulador, a indiferença pelo erro linguístico e mesmo a sua aceitação, com o pretexto desonesto de que os saberes populares se correspondem com os saberes dos oficiais milicianos e quejandos, em história memorada de despicienda experiência passadista, a inexplicável ironia sobre o uso de latinismos ou de neologismos que são, naturalmente, uma valiosa forma de enriquecimento linguístico (Camões, Garrett, Eça, os simbolistas etc., o justificam em abundância), a explicação sarcástica da falta de leitura dos jornais (e por consequência dos artigos de Ferreira Fernandes) ao que parece, por cediça instalação de quem os escreve, e finalmente a ironia do “sufoca-se com um p mudo perdido”, nem que ele colida com o p fónico em palavras de idêntica estirpe linguística – caso de egípcio com p colidindo com o seu país de origem – o velho Egito manquejante pela incompreensível destituição do seu p etimológico. 
  • A par de tudo isso, o bonitinho de um estilo adornado de adjectivos e com metáfora surrealista de bom efeito retórico, caso do “ piscando os olhos com os lábios”, como forma definitiva de torcer o pensamento. Se é que existe algum. Importante.

Narciso, sempre

Uma vez mais La Fontaine
É fonte de reflexão
Nas sínteses que foi fazendo
Das leituras que foi tendo
Dos clássicos de estimação
Que tão bem o alertaram
Para a eterna repetição
Dos jeitos que delinearam
A humana geração.
Segue o exemplo a contento:
«O Estatuário e a Estátua de Júpiter»
«Um bloco de mármore era tão belo
Que um estatuário o comprou.
- “Que fará dele o meu escopro? - disse ele:
Será uma mesa, uma pia ou um deus?
Será um deus: até por ser meu prazer mor
Que tenha um trovão na mão!
Tremei, humanos! E orai!
Eis da terra o senhor.”
O artista tão bem expressou
Do seu ídolo o carácter
Que todos acharam que só a palavra
Faltava a Júpiter.
Até se disse que o artífice,
Mal a sua estátua acabou,
Foi o primeiro a recear
E da sua obra tremer.
À fraqueza do escultor
Em nada outrora
A do poeta fora inferior,
Ódio e cólera receando
Dos deuses de que fora inventor.
Nisto era bem qual criança
Que a alma tem ocupada
Por contínua preocupação:
A de não deixar irada
A boneca de estimação.
O coração segue facilmente
O espírito criador:
Desta comum fonte surgiu
O erro pagão que se viu
Em tantos povos difundido.
Eles abraçavam violentamente
Os interesses da sua quimera.
Pigmalião tornou-se o amante
Da Vénus que fabricou.
Cada um vira em realidades
Os seus sonhos, o mais possível.
De gelo para com as verdades,
O homem é de fogo com as mentiras.”

E aqui está uma história de mitos
Construída com muitos atritos
Pela humanidade,
Em que uns crêem, outros descrêem,
Em conformidade
Com a sua realidade.
No caso da nossa portugalidade
Também não temos
Verdade que preste.
Pois não sabemos
Se o governo está de facto a governar
Com o mito da honestidade custe o que custar
Ou se está a desfazer ainda mais
A estátua que por muitos, no tempo, fora fabricada
E que por poucos mas suficientes
Foi sendo destruída
Pelos recentes fazedores de mitos
A que chamam, “de fogo com as mentiras”,
Democracia,
E que ninguém quer ver,
“De gelo para com as verdades”,
Que é pura autocracia,
Se não for simplificadamente, e em conclusão,
O ruir total de uma nação
Por conta da mitologia.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Por trás de um grande homem…

Simone de Beauvoir, na expressão clara das suas ideias contra a desigualdade entre os sexos, explicou no seu livro “O Segundo Sexo” que, graças à educação para a feminilidade, de que a sociedade é responsável,  a mulher torna-se mulher, não nasce mulher, o que me parece um aforisma contrário aos dados fornecidos, entre outros, pela Bíblia, em que a mulher surge como fruto secundário da costela viril de Adão, e pela Biologia, com os nomes arrevesados do aparelho reprodutor, com que massacram as crianças logo no seu terceiro ano escolar, logo após as primeiras letras, fazendo-as distinguir os testículos dos ovários, os espermatozoides dos óvulos, conceitos arrevesados que remexem mais com os rapazinhos tímidos do que com as meninas inicialmente mais desenvoltas.
Mas, enfim, Simone de Beauvoir, na sua revolta contra a condição da fêmea amordaçada que sempre foi a mulher, escreveu a obra citada, responsável pela autonomia actual da mulher, que lhe permite votar, ascender a cargos governativos, etc., etc., e, sobretudo, desinibi-la a tal ponto que nenhum escrúpulo a impede de se expor em programas de sexo sem tabus, que, naturalmente, pervertem cada vez mais o mundo das crianças que nele vão colher os princípios da sua orientação espiritual.
Mas Simone de Beauvoir tinha razão na sua revolta contra a marginalização a que foi sempre votada a mulher, e nem se estranha que seja a França a detentora de uma obra de tal envergadura intelectual, por muito anterior que tenha sido o Women’s Lib, iniciado nos Estados Unidos, a grande pátria de todas as libertações.
Mas Simone de Beauvoir tinha antecedentes, como escritos defensores dos direitos da mulher, e entre esses a pequena peça em apenas um acto, “Quitte pour la peur”, de Alfredo de Vigny, que focando o adultério da mulher, num nobre  casamento imposto, e o medo da sua heroína duquesa suade represálias do marido, ultrajado na sua honra, mau grado o seu parceirismo em idêntica pecha conjugal, por posse de uma também nobre amante, termina em apoteose de alegria, entre a ama e a criada, após a visita do marido, salvadora das aparências e desculpabilizadora da falta da frágil e revoltada duquesa sua esposa, por ele abandonada. Nada, pois, semelhante às nossas histórias machistas de faca e alguidar, mas discursos reveladores de uma plena consciência da injusta desigualdade  na repartição da lei para o crime feminino e para o masculino, de que citarei breves excertos.
Uma amostra do diálogo entre a duquesa e a sua camareira:
Cena I: A Duquesa: …Ai, em que tempo vivemos! – Compreendes isto, que um homem seja meu marido e não me visite? Explicas-me o que é precisamente um amo desconhecido que devo respeitar, temer e amar como Deus, sem o ver, que nada se preocupa comigo e que devo honrar; de quem me devo esconder e que nem se digna espiar-me; que me dá somente o seu nome para usar de longe, como se dá a uma terra abandonada?”
Rosette: Senhora, eu tenho um irmão dono de uma bela quinta na Normandia, o qual repete sempre que quando não se cultiva uma terra, não se deve ter direito nem sobre as suas flores nem sobre os seus frutos.”….
CenaXII: A Duquesa (para o Duque, erguendo-se, enfurecida) :  Senhor Duque…eu não percebo mais nada, nem das vossas ideias, nem dos vossos sentimentos, nem da minha existência, nem dos vossos direitos, nem dos meus; não serei talvez mais do que uma criança! talvez tenha sido sempre enganada. Dizei-me o que sabeis da vida real do mundo. Dizei-me porque é os usos são contra a religião e o mundo contra Deus. Dizei-me se a nossa vida tem ou não razão de ser; se o casamento existe ou não; se sou vossa mulher, porque é que vós nunca mais me vistes, e porque é que não sois censurado por isso; se os juramentos são sérios, porque o não são para vós; se tendes e eu própria também, o direito ao ciúme. (…)
Mas o Duque revelar-se-á em toda a magnanimidade e tolerância de quem tem iguais pecados secretos, deixando a mulher liberta do seu medo, “quitte pour la peur”.
Nos nossos tempos, já tudo se faz mais às claras e até os casais se separam em amizade e desportivamente, “numa boa”, para bem dos filhos, que beneficiam das novas relações dos pais, por vezes mesmo em lucrativos negócios de chantagem disputadora de  afectos.
O ciúme é, todavia, causador de muita atitude vingativa, já mesmo nos tempos do Eurípedes, que pôs Medeia a matar os filhos que tivera de Jasão, o primeiro navegador marítimo de que há memória, na conquista do velo de ouro. Afinal, até fora Medeia que, apaixonada por ele, com as suas artes mágicas o fizera conquistar o tal velo que pertencia a seu pai, o rei da Cólchida. Não, não fora Jasão, nem nenhum dos seus argonautas que o conseguira. Fora ela, Medeia, que sabia que por trás dum grande homem está sempre uma grande mulher. E ele atraiçoara-a, amando outra, por isso se vingou atrozmente.
Estas histórias até provam que o segundo sexo também é relevante na condução do mundo. Mas nunca, como hoje, foi tão grande a diferença entre os dois sexos, apesar dos direitos femininos conquistados.
A menos que os grandes escândalos financeiros da nossa e outras praças, geralmente praticados, na actualidade, pelos homens - o primeiro sexo, o do prestígio, das conquistas, das escroquerias - tenham as suas, não medeias mas ninfas a manobrar por trás, como já se vira dantes e se vê ainda a cada passo. Daí que a Simone de Beauvoir não precisa de se preocupar mais, lá onde a eternidade a imortaliza, nem com as mulheres nem com as políticas de chavascal. “Tout va bien qui finit bien.”

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Os pigmaliões da nossa indústria

Não são nem o escultor da Galateia, nem Henry Higgins, o “escultor” de Eliza Doolittle, rapariga vendedeira de flores e de linguagem arrevesada, que  o professor foneticista Higgins ajudaria a corrigir, transformando-a numa bela senhora, tanto no conceito de George Bernard Shaw, autor da comédia “Pigmalião”, como no conceito de George Cukor, no seu filme musical “My Fair Lady”, naquele inspirado.
Uma deslumbrante visão, a de Audrey Hepburn do filme de 1968, maravilhoso filme que transforma a rude vendedeira mal vestida e mal falante numa autêntica princesa de modos corteses, distinção nos fatos e, sobretudo, como tinha sido prometido pelo professor Higgins, elegância de linguagem, mirífica transformação que os cenários e as canções tornam admissível, como varinha mágica de contos de fadas prodigalizando desfechos de feeria. Não assim a vida real, embora a comédia de Bernard Shaw admita essa possibilidade de modificação em seis  meses, dos jeitos e falas toscos para ademanes e discursos principescos da figura feminina. Mas neste caso, como no anterior, tal possibilidade resulta do facto de as figuras serem elegantes na origem, a linguagem e os jeitos grosseiros são a deformação que os actores caricaturam, em estudo prévio.
Aparentemente, pois, um professor expert em sons humanos vai modelar uma voz e um ser falante, ensinando-lhe, em seis meses, como falar, como pronunciar, como se apresentar, como se distinguir. É o trabalho, afinal, na nossa sociedade, tal como nas anteriores, dos pais, dos professores, dos meios livrescos ou outros, na formação dos indivíduos, em percursos de maior ou menor dimensão, conforme as aptidões dos educandos, em inteligência e dedicação, que a música, o recitativo, podem contribuir para acelerar, como no filme de Cukor. Mas nunca em seis meses.
Todavia, não direi o mesmo dos recentes pigmaliões linguísticos da nossa praça portuguesa, os forjadores do novo Acordo Ortográfico e as personagens governantes que o avalizaram, sem, contudo,  revogação do anterior, prova de insegurança nessa sua arte inefável.
 Escultores aberrantes de uma língua que não respeitam, com os seus objectos de pedra lascada substitutos dos convencionais cinzéis e buris próprios  dos autênticos, foram retocando aqui, podando ali, no final do trabalho produzindo, não, certamente, uma Galateia, não uma Eliza Doolittle, mas simplesmente um aborto.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Comentário a “A essência do progresso, 9”

Finalizou Henrique Salles da Fonseca a sua séria empreitada de detectar anomalias na condução do nosso sistema educativo, no seu trabalho de pesquisa e orientação sobre aquilo que é fulcral numa sociedade para que o progresso exista - «A Essência do Progresso”. Ao longo dele, vários foram os comentários dos seus leitores e algumas as lições que deles se colheram também.


Destaco, de ISAIAS AFONSO a 7 de Fevereiro de 2012, o comentário que segue, sobre a crise que atravessamos e todas as que já atravessámos, por conta de uma “praxis”específica, creio que sem ideal nem bom senso, em que se acentua uma espécie de parasitismo endémico com o dinheiro exterior, dos emigrantes, a equilibrar as finanças, como outrora se fazia com o trabalho escravo e as remessas provenientes das terras conquistadas:


«O diagnóstico das nossas endémicas crises está feito. Recorrendo a Marx, o problema reside na "praxis". Sabemos e sentimos que a crise existe, mas como sair dela? O nosso amigo Salles da Fonseca indica alguns dos caminhos, salientando que o factor humano é extremamente importante.
Duarte Ribeiro de Macedo, na sua obra do século XVII, Da Introdução das Artes Neste Reino, que ilustrou a tese de António Sérgio sobre As Duas Políticas Nacionais, a da Fixação e a da Circulação ou Transporte, afirma: NEMO NOS CONDUCIT, ninguém nos conduz, ninguém emprega os nossos braços e daí a mórbida emigração.
Um terço da população total do país encontra-se emigrada, numa espécie de "transumância", na procura de melhores condições de vida, que Sabatino Moscati, na sua obra “L'Orient avant les Grecs”, acrescentou ser a "Primavera dos Povos".
Legitima esta movimentação populacional, a qual esvaziou o país, mas serviu de almofada ao desemprego conjuntural e estrutural. Ganharam-se as remessas dos ausentes, proveitosas para a nossa balança de pagamentos e até comercial, mas o país despovoou-se, criando vácuos no interior e macrocefalias urbanas ao longo do litoral.
Temos um país desequilibrado e aceitámos imigrantes, como "compensação populacional" ou como equilíbrio num sistema de vasos comunicantes. Com eles sustentamos a Segurança Social e também a solução para o nosso deficit demográfico. Nunca conseguimos uma Política de Fixação, nem da riqueza nem das pessoas. Preferimos a Política de Circulação ou Transporte, errando pelo Mundo em constante "Peregrinação", mas transportando para regiões longínquas os produtos doutros países para as trocas comerciais. Transformámo-nos em meros intermediários para prejuízo das nossas manufacturas. Na última década, diz-se, mais de 700.000 portugueses procuraram outras paragens que não Portugal.
Em 2011, foram para o Brasil 52000 e Angola já acolhe 130.000.
No século XVI, com as especiarias, criámos o "Período do Ócio", em que os escravos faziam todo o trabalho em Lisboa e os burgueses passeavam em liteiras, aos ombros dos negros.
O encorajamento à facilidade do crédito, no nosso tempo, levou à compra de casa própria, do automóvel, das férias no Brasil ou nas Caraíbas, na compra de mobiliário, nos aparelhos das novas tecnologias, nos almoços e jantares constantes fora dos lares e hoje e no futuro esmolamos de mão estendida à caridade, porque NEMO NOS CONDUCIT.»


Segue o último texto de Salles da Fonseca, que propõe várias pistas a que, modestamente, chama la palissianas, mas propensas a reflexão, e, provavelmente, com diversidade de pontos de vista:

« Como alcançar os objectivos enunciados anteriormente?

Com vista à discussão, eis algumas pistas bem la palissianas:

• O ensino obrigatório tem que ser gratuito; o que estiver para além dele – público ou privado – tem que ser pago pelos utilizadores com base em propinas cujo nível seja livremente definido.
• Num cenário de analfabetismo adulto tão escandaloso, não se justificaria que a alfabetização fosse alcandorada a objectivo fundamental da República?
• Num cenário de abandono escolar precoce tão grande, que curricula devemos privilegiar – profissionalizante ou generalista?
• Deve a disciplina escolar continuar a ser prejudicada pelo princípio de que é proibido expulsar os vândalos?
• À Escola compete educar ou instruir?
• Deverão as Ordens (profissionais) continuar a condicionar o acesso às profissões ou bastará a homologação governamental dos cursos?

Há que discutir estas questões com a maior seriedade e sem as demagogias a que nos quiseram habituar nestes decénios passados pois são as pessoas que fazem a diferença entre os países ricos e os outros países.»

FIM

E mais uma vez, se aponta a seriedade corajosa de Salles da Fonseca, no seu apelo final: «Há que discutir estas questões com a maior seriedade e sem as demagogias a que nos quiseram habituar nestes decénios passados pois são as pessoas que fazem a diferença entre os países ricos e os outros países.»

E o meu comentário, sem demagogia:

«Os parâmetros propostos no texto “A essência do progresso, 9” de Salles da Fonseca, para um ensino sério, de facto, parecem tão evidentes que dificilmente deverão ser contestados: a gratuitidade do ensino oficial, a alfabetização maciça do mundo adulto – (com o consequente aumento dos níveis de empregabilidade docente, o que seria excelente, para um país a esfarrapar-se).
Em caso de falhanço no ensino generalista, optar pela via profissionalizante mas com critérios de exigência e de rigor, como preparação para a cidadania e respeito pelo trabalho, e mesmo para uma continuidade possível no estudo, em termos de seguimento em cursos superiores, como se fazia dantes com as Secções Preparatórias dos Ensinos Técnicos.
Cremos que o rigor na disciplina exige meios drásticos e uma chamada à responsabilização das famílias, ao invés de se apaparicarem os meninos com os falsos conceitos de uma liberdade, fraternidade e igualdade que não são mais do que abertura para a licenciosidade e a perversão, com o desrespeito pelas normas e o desinteresse pelas matérias do saber, sem o que, a não ser invertido o processo, jamais viveremos numa sociedade construtiva de gente competente e disciplinada.
Quanto ao sentido de Escola, creio que se põe demasiado em causa o papel do professor, na tola pretensão de minimizar o seu trabalho pela relevância dada actualmente aos saberes dos alunos, que muitas vezes trazem como consequência a desestabilização, o desinteresse, o vazio, o ruído e a perda de tempo, que seria mais bem utilizado na exploração e orientação feita pelo professor, com o auxílio dos seus materiais de apoio esclarecedores e a intervenção dos alunos quando solicitados ou quando o desejo de saber os levasse a participar.
Naturalmente que ao papel da Instrução se aliará o da Educação que a Escola não deve minimizar, mas que não pode sobrepor ao objectivo fundamental de abrir caminhos culturais.
Ideal seria que tais condicionalismos no acesso às profissões se não fizessem sentir, desde que as provas dadas pelos formados fossem suficientemente explícitas de valor pedagógico e científico positivos, descontados, evidentemente, os factores exteriores de influência negativa, tantas vezes castradores das actuações docentes.»

Ainda o A.O.

Mais um texto que me chegou por via Internet sobre o Acordo da nossa discordância derrotada. O colocá-lo no meu blogue serve apenas para me regozijar, na constatação de que há cidadãos que, mau grado os ventos adversos, insistem em soltar o seu grito de um “Ipiranga” nacional de independência linguística relativamente aos poderosos Brasis amordaçantes, merecendo o respeito e a gratidão de quem ama deveras o seu país, no desejo de o ver sair da lama em que chafurda.
Mas não posso deixar de referir mais um absurdo proporcionado por um Acordo que, mal interiorizado pelos que o desejam expandir na RTP, permitem um programa de interrogatório às populações sobre a ortografia das palavras, com explicações de autêntica baboseira, sem que ninguém mais grado intervenha, talvez por vergonha de dar a cara ao disparate, ou por ainda desconhecer a regra. É o programa “Assim se escreve em bom Português”: Há dias, a pergunta foi sobre a grafia da palavra adoptar, se se escrevia com p ou sem p. Houve quem dissesse que era sem p, já que tal letra se não pronunciava. Conclusão da gentil entrevistadora, no quadro escrito para ela: As duas grafias são permitidas – adoptar e adotar - sem explicar porquê, o que não parece certo, dentro da regra do A.O. que elimina da grafia os fonemas não pronunciáveis, proporcionando, aquela ilação, um verdadeiro caos ao nível da pretensa justificação com base científica que suponho os linguistas do Acordo não deixarão de impor dentro dos seus parâmetros, a menos que a arbitrariedade de escrita se instale neste país, sujeito a tantas mais arbitrariedades.
Um país que se permite tais disparates, para além da falta de qualidade ortográfica nas traduções de filmes, etc., etc., não vai certamente comover-se com o rigor dos que mostram quanto é erróneo o Acordo, e mau grado a recusa do governo angolano de o assinar.
Mas aqui fica o texto recebido, como demonstração de algumas forças de bom senso que se não calaram no país:

«Cidadãos usam argumentos jurídicos contra novas regras de ortografia. Já há uma queixa na Provedoria de Justiça, um pai que quer proibir a escola de ensinar as novas regras à filha e há uma petição para levar o assunto ao Parlamento. Margarida Davim - margarida.davim@sol.pt
A PROVEDORIA de Justiça está a analisar uma queixa que pretende travar o Acordo Ortográfico (AO). Trata-se de um pedido de revisão da constitucionalidade do Acordo, feito por Ivo Miguel Barroso, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, que garante que as novas regras de escrita são inconstitucionais. Ao mesmo tempo, um grupo de cidadãos está a recolher assinaturas para entregar na Assembleia da República e tentar travar o Acordo e vários escritores como Miguel Sousa Tavares e Vasco Graça Moura recusam escrever com a nova grafia. E há até pais que estão a pedir às escolas para que os filhos não aprendam as novas regras (ver texto ao lado).
«A nossa Constituição é rígida», explica Ivo Barroso, sublinhando que «nenhum tratado internacional – como o Acordo Ortográfico – ou recomendação da Assembleia da República podem mudar o que está na lei fundamental do país».
Ou seja, não é por haver um acordo entre os países de Língua Portuguesa que se pode mudar a ortografia que foi usada para escrever a Constituição. Mas esta não é, segundo o especialista, a única inconstitucionalidade do AO. «Há uma violação grave da identidade nacional e estão em causa direitos fundamentais como o direito à Língua».
Ivo Miguel Barroso defende que «a Língua não se muda por decreto». Lembra que no passado houve «reformas ortográficas», mas nota que «nunca as alterações foram tão profundas como se propõe agora».
Contactada pelo SOL, a Provedoria de Justiça adianta apenas que a queixa «está a ser analisada».
Acordo não está em vigor.
Mas esta não é uma tentativa isolada para travar a aplicação das novas regras ortográficas. O tradutor João Roque Dias tem usado a internet para divulgar o que considera serem as «aberrações» do AO. E assegura que não há nada que obrigue a usar a nova ortografia, porque «o Acordo não está em vigor».
Argumentos jurídicos não lhe faltam. «Não há nada que revogue o decreto-lei de 1945, que define as regras da ortografia que usamos», explica lembrando que a legislação nacional que suporta o AO resume-se a uma resolução da Assembleia da República de 2008 e a uma resolução do Conselho de Ministros de 2011 – que obriga todos os documentos oficiais a usar o ‘novo’ Português a partir de l de Janeiro de 2012 -, «que juridicamente estão abaixo do decreto-lei e não o podem revogar».
António Emiliano, professor de Linguística da Universidade Nova de Lisboa, é da mesma opinião e lembra que até a forma como o Acordo foi feito na CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa) é questionável. «Foi definido que se três países aceitassem o Acordo – neste caso Brasil, São Tomé e Cabo Verde – passaria a estar em vigor, quando a regra na CPLP é a aprovação por unanimidade».
Emiliano acredita, aliás, que a oposição de Angola e Moçambique – que não ratificaram o tratado – pode travar a nova ortografia. «Angola pode ter um papel determinante», diz.
O linguista critica ainda o facto de não haver qualquer estudo sobre os impactos das alterações introduzidas pela nova ortografia e alerta para as consequências económicas: «Ninguém sabe ao certo quanto será preciso gastar para adaptar ao Acordo os documentos oficiais e livros».
António Emiliano alerta, aliás, para o facto de a nova escrita mudar para sempre a forma como se pronunciam as palavras. «Na maior parte dos casos, as consoantes mudas servem para abrir as vogais», esclarece, dando um exemplo: «Podemos deixar de dizer ‘telespectadores’ para passar a ler ‘telespêtadores’».
E há ainda as confusões geradas pelo facto de se deixarem de escrever todas as consoantes que não se lêem sem ter em atenção as palavras que derivam umas das outras. «Há dias, a minha enteada de 15 anos não conseguia perceber a palavra ‘aspetual’ porque não viu que tinha relação com a palavra ‘aspecto’».
Razões suficientes para Emiliano considerar que o Acordo «é anti-linguístico e não tem respeito pelas regras da etimologia [a evolução das palavras]».
Cidadãos querem mudar a lei.
As razões invocadas por João Pedro Graça para ser contra o Acordo são semelhantes. A diferença é que decidiu usar um instrumento previsto na lei para ir à Assembleia da República travar o processo.
«Estamos a recolher assinaturas para fazer uma Iniciativa Legislativa de Cidadãos (ILC)». João Pedro Graça não revela quantas assinaturas tem já, mas adianta que a tarefa de chegar às 35 mil que a lei obriga é uma missão quase impossível.
«Na internet é muito fácil. O pior é que os serviços da Assembleia exigem que as assinaturas sejam entregues em papel e com o número de eleitor e a referência do concelho e da freguesia», conta, explicando que por esse motivo já muitas das assinaturas que tinham sido recolhidas foram consideradas inválidas.
Ortografia oficial
{Desde Janeiro} A partir do primeiro dia do ano, todos os documentos oficiais passaram a obedecer ao Acordo. Exemplo disso, é a página oficial da Presidência da República, mas também o Diário da República e até as sentenças dos tribunais.
Escritores contra {Editoras aceitam} autores como Miguel Sousa Tavares e Vasco Graça Moura e cronistas como Pedro Mexia continuam a usar a grafia antiga, apenas com uma nota de aviso aos leitores. Todas as editoras estão a respeitar a decisão dos escritores.
Clássicos reeditados {Edições escolares} Eça de Queirós e Fernando Pessoa são autores que o Grupo Leya vai reeditar com a nova ortografia, por serem escritores estudados nas escolas – onde os alunos já aprendem segundo o Acordo.
Aliás, todos os manuais escolares já foram adaptados.
Jornais e televisões
{RTP e Lusa primeiro} O canal do Estado foi o primeiro a seguir as novas regras de escrita, a par da agência Lusa. TVI, Público e SOL são órgãos de comunicação que ainda não aderiram à nova forma de escrever Português.
Pai quer impedir nova ortografia
Já avisou na escola que não deixa a filha aprender as normas do Acordo Ortográfico. E acredita que a lei está do seu lado: UM PAI está a tentar impedir que a filha de oito anos aprenda Português com as novas regras do Acordo Ortográfico (AO). «Já falei com o professor e expliquei à directora que não aceito que ela seja ensinada assim», explicou ao SOL José Manuel Bom, que acredita que o AO não está em vigor.
«Nada revogou o decreto-lei de 1945 que define as regras da ortografia que usamos», defende o consultor, que ainda não obteve da escola qualquer reacção. «Até ao momento, ainda não tive resposta». De resto, o SOL tentou também sem sucesso ter uma resposta do Agrupamento de Escolas Eugénio dos Santos, em Lisboa, que não fez qualquer comentário.
Pais à procura de apoio jurídico
José Manuel Bom acredita, contudo, que não está sozinho. «Há na internet vários pais que anunciam em blogues que não querem os filhos a aprender regras absurdas», conta o encarregado de educação que se queixa de não perceber a forma como a filha pronuncia as palavras escritas com a nova ortografia. «Há palavras que ficam irreconhecíveis. Por exemplo: deixa de haver uma maneira de diferenciar ‘para’ e ‘pára’, porque o acento do verbo desaparece».
João Pedro Graça, um dos activistas anti-acordo, explica que há «muitos pais que querem evitar que os filhos aprendam segundo o AO». O problema, conta, é que quando procuram apoio no seu movimento Iniciativa Legislativa de Cidadãos contra o Acordo, este não pode fazer nada. «Não somos uma instituição. Não podemos dar apoio jurídico. Tem de ser cada um por si».
Ainda na semana passada, num evento de recolha de assinaturas contra o AO, em Lisboa, foi esta a resposta que teve de dar a um pai «que queria saber como poderia travar o Acordo».
António Emiliano, professor de Linguística da Universidade Nova de Lisboa, acredita, porém, que o facto de haver pais a organizar-se pode fazer com que a resistência ao Acordo seja mais eficaz. «Foi o que aconteceu com a TLEBS, uma terminologia nova para a gramática que não fazia sentido nenhum», conta, lembrando que «o Governo acabou por recuar no essencial, graças à pressão das associações de pais».
Já a resistência por parte dos professores pode ser muito mais difícil. «Têm-me chegado denúncias de professores que anunciaram que não iriam aplicar o Acordo e que, por isso, começaram a ter as piores turmas e os piores horários e a ser alvo de verdadeiras perseguições por parte das direcções», revela João Pedro Graça.
O Ministério da Educação e Ciência (MEC) assegura, contudo, não ter conhecimento de qualquer situação em que pais se estejam a recusar a que os filhos estudem com a nova ortografia.
M.D.
[Transcrição integral de peça jornalística da autoria de Margarida Davim publicada na edição em papel do semanário "Sol" de 27.01.2012.


quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

“Custe o que custar”

- Aos outros! – indignou-se a minha amiga, que saiu finalmente à rua após uma semana de quarentena, por conta duma tosse renitente e que por isso lhe provoca estas propensões atrabiliárias contras as anomalias da nossa vivência nacional propensas ao azedume.


Porque há quem diga que é pura “mitomania” governativa pretender saldar a dívida de um empréstimo, numa paranóia de honestidade, sem criar riqueza, reduzindo à pobreza e à paragem no trabalho e na exportação, e ao surto da fuga dos capitais e de empresas para sítios de maior equilíbrio financeiro, etc., etc., empréstimo que possibilitou as escroquerias aliadas a uma generalizada feira de vaidades de um povo mal habituado ao dinheiro fácil e que se deixou deslumbrar pelo inesperado bodo, em compromissos de aquisições de bens materiais que se despenham, nesta hora, no caminho da insolvência dum país ao qual más políticas anteriores revelaram uma abundância irrisória e desencaminhadora.
E assim, continuou:
- Estes estão na rua, ao frio.
- Nanja nós! - defendi-me eu, avessa a invasões de lamúria na nossa privacidade, mas a minha amiga ignorou a interrupção:
- Vamos pagar a dívida. Vamos pagar a dívida, mas arrancado ao desgraçado que a vai pagar. Acredito que a pagarão…
- Mas há quem discorde disso! – explico eu, muito pessimista, por conta dos prospectores dos truques económicos da nossa governação tão drástica como pouco explícita.
Mas ambas tínhamos ouvido o banqueiro optimista, em entrevista da noite anterior, a explicar que a banca estava de boa saúde e quisemos crê-lo, nestas flutuações entre o medo e a confiança que nos têm arrastado ultimamente, contudo a minha amiga não se deixou entusiasmar tanto:
- O mundo começou a afundar desde o que foi roubado por ele e pelos comparsas. E não é a Europa, é o mundo inteiro…
- Menos a China! - garanto, com a confiança no país que nos vem dar a mão, embora cortando-nos as pernas, ao que se diz…
- É! É isso! A China sobe… Quem é que há-de subir senão a China? Mas o Brasil também…
- Mas no Brasil há muita corrupção!
A minha amiga é de ideias fixas, no capítulo da justiça:
- Esta mulher Dilma já pôs na rua cinco ou seis ministros… Aquele país não havia de ser rico porquê? Qual é a matéria de que é feito o ser humano, que, quando enriquece o faz unilateralmente?
E assim nos íamos afastando do ponto de partida da nossa conversa inicial, a frase brutal de Passos Coelho, pronunciada com grande salero, e que me trouxe à memória, comovidamente, o fado da nossa Amália, trocando, evidentemente de destinatário, não o homem amado mas o amado país merecedor das nossas lágrimas de dedicação patriótica, inspirada na força anímica do discurso do nosso PM:

“Se eu soubesse que morrendo
Tu me havias de chorar,
Por uma lágrima tua
- Que alegria! – me deixaria matar
.”

É claro que a letra seria alterada de acordo com o nosso arroubo patriótico:

Se eu soubesse que morrendo
Com teu “custe o que custar”
Eu salvaria a nação,
Mesmo sem lágrima tua
Com alegria, deixar-me-ia matar.

E no fado se finou a nossa conversa comezinha.

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Em busca dum tempo nunca vivido

O mundo dos sentimentos íntimos, de par com a extraordinária capacidade de os descrever – nos amores, medos, raivas, inquietações, ciúmes – e a presença dos seres que amou – a mãe, a avó, “non plus ultra” da distinção e beleza de uma burguesia defensora dos princípios éticos, os amigos, as amadas, jovens e mulheres distintas na aristocracia que frequentou, e juntamente as evocações dos momentos vividos, as figuras, os odores, os sabores, os gestos, os caracteres, os sentimentos, configurados num tempo não cronológico mas durativo, despoletando um descritivo rigoroso e apaixonado, brilhante de convívios e ternuras, de uma França que para sempre permaneceria a pátria intelectual da admiração e do amor do mundo inteiro. Tal o universo em síntese do livro “Em busca do tempo perdido” de Marcel Proust.
Não se trata dos discursos apaixonados de um Rousseau, um Lamartine ou tantos outros que traduziram os sentimentos nublados das lágrimas românticas e saudosistas pela amada perdida, em recolhimento espiritual e em meio de dolente ou sombria natureza com eles convergente. Pelo contrário, Proust, mostra-se extremamente arguto, ao pôr a nu os sentimentos do seu universo de personagens, recolhidas do seu passado, a que a memória deu amplitude, e favorecido, não só pelo desenvolvimento dos estudos da psicanálise, como por uma infância e adolescência demasiado protegidas, na preocupação materna pela sua doença crónica de asmático. Eram mundos diversos, vidas livrescas diferentes, que marcaram as respectivas épocas de acordo com os parâmetros da evolução social.
Entre nós também hoje há quem analise e se analise na fogosidade das paixões, pondo a nu descritivos que pendem mais sobre pormenores de erotismo, a espiritualidade dando lugar à sacralização da “besta humana”, numa vulgaridade de discurso tantas vezes grosseira e mesmo animalesca que o cinema, aliás, favorece.
É certo que há quem escape a esta ordem da obrigatoriedade da pornografia, e eleja, para valores de mais ampla universalidade, feita das experiências e reflexões pessoais, as temáticas humanas centradas tanto no ego como no que está para além dele e que é descodificado com extrema argúcia. É o caso de Pedro Mexia, de Gonçalo M. Tavares.
Mas aquele mundo do requinte e luminosidade que nos é trazido por Proust, não existe para nós, habituados a uma literatura passional de sofrimento, violência e miséria bem choradinhos com que Camilo nos marcaria, no seu estilo profuso em rico vocabulário colhido nos clássicos e com enredos sobre figuras aparentemente extraídas de consulta documental, a que acrescentaria a exacerbação moralista dos seus comentários apaixonadamente críticos, tantas vezes satíricos.
Não, conforme se diz que não temos bossa dramática, também não temos uma literatura romanesca tão expressivamente elegante como a que nos é revelada por Proust e tantos outros escritores da narrativa e da dramaturgia francesas.
Um universo cultural que não temos, a não ser por núcleos esporádicos e fechados, seria fundamental para tal criatividade, e mesmo as sociedades pseudo-elegantes ou pseudo-literárias do romance queirosiano não deixam de revelar a mediocridade, a frivolidade ou a avidez financeira ou de notoriedade das figuras repetidas ao longo da sua ficção. Ressalvamos em parte a “Peregrinação Interior” de Alçada Baptista, no seu memorialismo de sensível recorte humorístico, mas a que não é alheia a crítica social.
Porque hoje aqui vivemos numa época de remendos, tentando consertar o caos criado pelos génios que trabalharam obscuramente no seu próprio proveito, e só tardiamente se deu por isso, pelo que escaparam à justiça, fumando charuto.
Não, a nossa intelectualidade fica-se pela poesia de alguns. A maralha entretém-se a referir as suas misérias. Aos jornalistas ou às vizinhas apiedadas.
É o nosso mundo. Mundo que sempre tivemos. Como uma bandeira emporcalhada.