terça-feira, 30 de agosto de 2011

Missal

Foi a minha neta Ana que me ofereceu o livro pelos anos, com recomendações: era indispensável o conhecimento d’ Os Lusíadas, da Ilíada, Odisseia, Eneida, da Bíblia e do Santo Graal da busca de Deus, e mais uns quantos famosos, em que perpassava o Paraíso Perdido de Milton - que eu docilmente procurei na Internet - para se poder penetrar na floresta densa do livro e do seu autor, tão vastamente premiado e tão universalmente já traduzido.
Uma Viagem à Índia”, de Gonçalo M. Tavares, jovem de 41 anos, de admiráveis qualidades de pensamento, como fio condutor de uma intriga sem intriga, que vai ziguezagueando, em busca da Índia, ou do sentido da vida, ora em reflexão sardónica, ora em reflexão de uma sensibilidade vivida que nos deixam boquiabertos pela inteligência da percepção revelada, aparentemente incompatível com tão juvenil idade, lembrando Rimbaud, lembrando Mozart, o nosso Cesário, embora mais velho do que todos eles, provocador como eles, genial em destreza mental, implicando multiplicidade de leituras e de vivências.
Uma Viagem à Índia”, um livro para ler e reler. Pela sabedoria que emana, os conceitos disseminados sem tréguas, da aventura simbólica, de uma simbólica personagem – Bloom – português de Lisboa, viajante de avião, por Londres, onde sofre uma aventura policial, Paris, onde Bloom “passeia e vê coisas que o fazem pensar noutras coisas” e onde pousa para contar a sua aventura a um Jean M., cuja identificação poderemos extrapolar, em confronto com “Os Lusíadas”, como sendo o Rei de Melinde, como narratário directo do Gama/Bloom, este, por seu turno, narratário muitas vezes do próprio narrador, num complexo entrecruzar de intervenientes directos e de pistas de acção ou de excursos.
Porque se trata de uma epopeia, arbitrariamente e ludicamente assim designada, estruturalmente imitando “Os Lusíadas”, em igual número de cantos, repartidos em igual número de estrofes, também arbitrariamente assim designadas, na sua sequência prosística ora narrativa ora conceptual, sem ritmo nem rima, quebra-cabeças de astúcia argumentativa, com imagens e paradoxos de uma extraordinária densidade e engenho criativo, caixinha de surpresas a cada passo revelada, lâmpada de Aladino ou “abre-te Sésamo” propiciadores de riquezas de maravilha, no emaranhado de informações da modernidade contemporânea, ocidental e indiana, em que, na concisão do pensamento, o elo de ligação preferencial da acção sem intriga, no simbolismo dos dados verbais, foram os dados narrativos d’ Os Lusíadas.
Mas, contrariamente ao sentido da epopeia clássica, que narra feitos de heróis individuais, ou da epopeia camoniana, que narra feitos heróicos de um povo - o Gama figurando como personagem sem mola interior, manipulada pelas intrigas dos deuses oponentes ou defensores da sua chegada à Índia - “Uma Viagem à Índia” apresenta antes, como personagem central, um ser comum, (simbólico embora), apanhado nas malhas da vida moderna, de sofisticação e corrupção e ansiedades e aspirações, em busca de um sentido existencial em que não crê, procurando uma Índia de fuga e esquecimento de um crime que aparentemente cometeu – “Tem agora pressa, um morto atrás de si / e na sua cabeça uma linha imaginária / para a qual se deve dirigir. / Sabe que deve correr sempre, sem parar, / mas não o suficiente para alcançar o objectivo. / Eis a história. Acabou.” (I-14).
A viagem marítima lusíada que se inicia “in media res” na estrofe 19 do canto I, - “Já no largo oceano navegavam / As inquietas ondas apartando; / Os ventos brandamente respiravam…” - é referida, na estrofe 15 do livro de Gonçalo Tavares, em relação aos ventos: “Mas a natureza também aparece, e muito, / nesta viagem. / O vento, por exemplo, que poderá parecer elemento neutro, / que distribui os ligeiros incómodos por ricos / e pobres, / mas na verdade é apenas hábil: / nos fracos provoca frio e nos fortes é leve brisa que / acalma o calor excessivo.” e, na estrofe 16: “Aos palácios chega pela ventoinha domesticada, / enquanto sobre casas frágeis / se abate robusto como a tempestade. / O vento (de certos países) / maltrata a cabeça de quem acabou de cair e / massaja os pezinhos de quem está no topo. / O vento, meu caro Bloom, não é um elemento da natureza / em que possas sonhar.”
Quanto à referência ao mar, eis a estrofe 20: “Atravessa as águas também, excelente amigo Bloom, / quebra o mar em dois. / O mar é um mamífero, / o barco, o punhal do sacrifício. / Porque como todos os animais / o mar só é arrogante / até encontrar o seu dono. / Falamos do mar, mas talvez / seja a terra e o céu que exigem ser descritos. / Bloom, Bloom, Bloom.”
E o consílio dos deuses das estrofes 20-41 é, em “Uma Viagem à Índia”, transposto para um discurso aparentemente corriqueiro, cheio de advertência política e cívica: “Poderás acusar os deuses de serem possuidores / de uma técnica de governo muito particular, / que no fundo se poderá resumir dizendo: / Tudo deixa acontecer até ao fim. / Não poderás, pois, Bloom, / atribuir demasiada complexidade a este modo alto / de fechar os olhos, baixar os braços / e repousar as pernas. São os deuses, Bloom, / não são o teu assunto.” (estr., 21).
Os deuses actuam / como se não existissem, e assim / não existem de facto, com extrema eficácia. / É verdade que entre os deuses / existe uma hierarquia, / exactamente como entre os brutos / numa carpintaria / ou entre os carregadores de mercadorias de certos portos da Europa, "(estr. 22)
e o mais forte de entre os deuses, / sendo dextro, necessita pelo menos / dessa mão livre para agir. / Hierarquias existem, pois, nas flores, / nas ervas daninhas e no divino. / Da bondade ou da maldade poderás fazer / gráficos de competência, atribuir medalhas; / disparar mais balas a um que a outro.” (estr. 23)
“No fundo, a organização do universo / é um assunto de galões militares, / e o informe assusta (precisamente) / porque não sabemos se havemos de lhe dar ordens / ou obedecer. / Mas falemos ainda, Bloom, da ironia que muito / aplicaremos. / De que forma a catástrofe/ traz perturbações ao velho método / de aplicar uma distância ao mundo?” (estr. 24) …
E a leitura prossegue, no espanto de uma sucessividade de conceitos, em que a ironia desmistificadora na aparente banalidade dos dizeres compactua com uma sabedoria que desliza do princípio ao fim, e os temas da viagem do Gama são “virados do avesso” de uma forma extremamente irreverente e original.
Dificilmente num texto que se pretende breve, caberiam mais amplas referências a um livro de tão grande riqueza conceptual .
Finalizamos com a tradução, no canto III d’ Os Lusíadas, da apresentação do Gama ao Rei de Melinde, do seu país, após o percurso europeu: “Eis aqui, quase cume da cabeça / Da Europa toda, o Reino Lusitano / Onde a terra se acaba e o mar começa / E onde Febo repousa no Oceano (III 20) … e “Esta é a ditosa pátria minha amada / À qual se o céu me dá que eu sem perigo / Torne, com esta empresa já acabada / Acabe-se esta luz ali comigo” (III, 21), com o respectivo paralelo em Gonçalo Tavares, e o sentido ironicamente desmistificador e crítico da sua mensagem, até mesmo chocarreiro, contrastando com o sentido exaltante do discurso heróico camoniano:
Estrofe 20: “Chego, pois, ou a minha voz em meu nome, / chego, dizia, finalmente, ao sítio de onde parti: / Portugal, Lisboa, Rua Actor Isidoro, nº 31, 1º direito. / É um bairro simpático, / com uma mercearia em cada esquina. / Mesmo estando no centro da cidade, barulhenta / e com fumos de carros, / se tens maçãs e laranjas na tua rua / então estás praticamente no campo.”
Estrofe 21: Estrofe 22: “Ausência de indústrias e de fábricas significativas, / Eis a higiene de um país como o nosso. / E quando não há chaminés importantes / até o fumo do cigarro conta para efeitos estatísticos. / Não é grande nem é enorme mas é simpático, este país. Dois lados dão para a terra, dois lados para o mar. / E a coisa assim quase dá certo.”
“Gostava de um dia regressar a Lisboa, claro, / mas já com a alegria reencontrada / e com uma mulher. (…)”.
Um amplo livro, missal que se pode ir estudando, vagarosamente, e saboreando, em cada partícula do seu discurso caricatural, dissonante, à maneira de certas composições musicais atonais contemporâneas, ou da própria pintura modernista de vários quadrantes - expressionismo, cubismo, simbolismo, o próprio impressionismo nele se impondo, na sua explosão de luz e cor.

sábado, 27 de agosto de 2011

“Querido, mudei a casa”

Basílio Horta admirei
Quando parecia defender
Políticas que eu amei.
Mas Basílio Horta mudou,
E eu não consigo entender
O seu actual arreganho
De não querer
Ver o esforço tamanho
De um Governo de um Partido
A que ele já pertenceu.

Mas de facto,
Ao longo da minha vida
Pude admirar a perícia
Com que muitos sem malícia
E antes com devoção -
Outros dirão
Por comodismo ou esperteza -
Praticam a vileza
De mudar
De política posição
Conforme lhes venha à cabeça
A distinção
Entre o melhor e o pior
Para a sua própria defesa.
Já La Fontaine o informou,
Que também ele vibrou
Com desmandos tais
Dos mortais,
E por isso o descreveu
Nos seus animais:

«O morcego e as duas doninhas»
«Um morcego de cabeça abaixada
Foi dar
Ao ninho duma doninha;
Quando esta ali chegou e o viu,
Encolerizada,
Correu para o devorar
Com toda a gana que tinha.
“O quê? Você ousa – disse ela -
Aos meus olhos aparecer
Desse jeito
E sem mais aquela,
Quando a sua raça mais não tem feito
Do que me prejudicar!
Não é você um rato? Diga-o sem ficção!
Sim, é, ou não serei eu doninha!”
“ Perdoe-me, rogou o pobre,
Não é a minha profissão,
Por vida minha!
Rato, eu! Os vilões ter-me-ão
Descrito assim, ai de mim!
Graças ao autor do universo,
A quem rezo sempre o terço,
Sou um pássaro; veja as minhas asas:
Vivam os seres singulares
Que fendem os ares!”
Valeu o seu argumento
Como de muito tento,
E a liberdade lhe foi dada
Pela doninha amansada.
Dois dias depois, o nosso morcego
Estouvado,
Cegamente vai cair
Na casa doutra Doninha
Dos pássaros, inimiga.
Ei-lo novamente em perigo grado,
Porque a Dama,
“De focinho pontiagudo
Que fossa através de tudo
Num perpétuo movimento”,
De espanto,
Estava disposta a comê-lo,
Por de pássaro se tratar
Segundo o seu entendimento.
Mais uma vez ofendido,
O morcego protestou
Contra o ultraje imerecido:
“Eu? Passar por tal? Que bobagem!
O que define o pássaro? É a plumagem.
Eu sou um rato: Vivam os ratos!
Que Júpiter confunda os gatos!”
Com mais este hábil argumento
Duas vezes salvou a sua vida
O morcego bento!”

Vários se acham que, dando de barato
Mudar de texto,
Mudar de fato,
Aos perigos, tal como ele, fazem frente.
Diz o prudente, segundo o contexto:
Viva o Rei! Viva o Presidente!”

É esta a moralidade
Da fábula de La Fontaine,
Como da nossa realidade.
Nem é preciso explicar
Ou aprofundar.
O “Salve-se quem puder”
Tem sempre actualidade.
E assim vamos vivendo,
Admirando.

terça-feira, 23 de agosto de 2011

“Pessoas de bem”

Vê-se que a minha amiga anda imensamente céptica a respeito dos valores humanos, embora nenhuma de nós tenha sido tão fustigada assim pela falta de solidariedade humana. Muito menos ela, que recebe e faz contínuos telefonemas às suas amigas do outrora zambeziano da sua saudade. A verdade é que constantemente a ouço exclamar que os cães são as melhores pessoas de bem.
E hoje resolvi contar-lhe uma história de grandeza de alma de cães, que uma vizinha minha me contou dos seus. Tivera dois – o BartoK e o Shubert – dois cães que foram envelhecendo, ora livres, na estrada aberta, ora presos nas grades do jardim. E um dia veio o Sebastião, um bonito e grande cão branco, que, inicialmente, fez rejuvenescer Shubert, no seu carinho brincalhão pelo cão velho. Mas este foi perdendo forças, foi cegando, e o final chegou. Pois o Bartok e o Sebastião, acompanharam o amigo na sua decrepitude, lambendo-lhe os olhos, o pequeno Bartok dormindo encostado a ele, como sempre fizera, jamais os dois mais novos comendo ou bebendo da gamela comum, sem darem respeitosa prioridade a Shubert.
E mais uma vez a minha amiga largou o comentário sobre as melhores pessoas de bem que são os cães. Todas nós, de resto, temos histórias de gestos de amor desse grande amigo, e também de gatos.
Lembro a minha Blacky, que morreu há uns dois meses. Eu não me atrevia a ir vê-la, mas disseram-me que já tinha morrido e algum tempo depois fui levar-lhe as minhas lágrimas, chamando-a baixinho: Blackinha! E a Blacky miou o seu adeus de despedida, que esperara a visita da dona cobarde para finalmente sossegar.

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Confiteor

O que me espantou sobremaneira foram os duzentos confessionários lá postos na praça e os padres, entre os quais o Papa, disponibilizados para atender e perdoar os pecadores. Sempre me espantou o acto da confissão, desde a primeira e única que me foi imposta na vida, aos doze anos, para a primeira comunhão, sem vestido branco, como costume das aulas de moral, com as colegas da bicha atrás de mim, na galeria do lado direito na bonita Catedral de Lourenço Marques, recuando discretamente, pois a minha voz, com os nervos, inventava os pecados banais da mentira ou do incumprimento em voz audível, em vez de os bichanar em sussurros de comprometido e usual arrependimento, desculpado com o número de pai nossos e ave-marias da penitência imposta logo ali.
Julgava eu que a Igreja Católica já não fazia confissões, desde que os media se encarregaram de topar os pecados alheios e os difundir, e espantei-me com tanto confessionário na praça espanhola, que não recordava nas visitas papais cá, mas a minha amiga não se impressionou, mais sensível ao aparato do milhão de peregrinos, com os reis e príncipes discretos e educados, como sempre, e a organização impecável dos espanhóis, para uma visita de tal envergadura.
A minha amiga expunha, em gestos amplos de pasmo:
- A gente olha p’r’ali, a gente tem ali um milhão, o rei e a rainha estão ali os dois e mais a corte, tudo sem um desvio… Aquela organização! … Veja-me o tamanho daquela praça! …
Eu lembrei que onde havia rei era outra coisa, sobretudo este, do país das touradas com morte do touro na arena, ainda por cima arrastado sem glória, depois de morto, para o destino final. Um país de altivez, bem demonstrada há uns anos, quando o rei, questionadoramente, impôs silêncio ao palrador visitante venezuelano, Chavez.
A minha amiga continuou em profusão de dados, excitada:
- Mais de um milhão de pessoas! A polícia está a correr com os ateus e as “atuas”… Espanha e arredores é tudo católico. Sempre que fui a Espanha fiquei de boca aberta! E Barcelona! O avanço daquela cidade!
- Esquece-se dos nossos estádios de futebol… Também demos provas!
- Mas está tudo a ir-se abaixo!
- Nada é eterno! As civilizações desmoronam-se! E os estádios vendem-se.
Entretanto, chegou uma nossa amiga que também assistira pela televisão ao evento e debruçámo-nos sobre os grupos em quadrados, com uma cruz vermelha, que tinham intrigado a minha amiga.
Sugeri que talvez fossem da Cruz Vermelha, a nossa amiga achou que seriam acólitos do Papa, e como é muito crítica criticou os jovens deitados no chão de pernas ao léu, sem o mínimo respeito. Mas a minha amiga desculpou-os, por conta do calor que fizera.
Voltei aos confessionários. E aos discursos do Papa à juventude, cancelados pelo temporal. E à magreza do Papa, para a qual estas jornadas extenuantes devem contribuir. E ao equilíbrio que talvez tragam a um mundo de violência. E aos muitos jovens nossos que também lá foram, provando a sua seriedade e a nossa abastança.
Foi mais um evento que passou, no dia-a-dia do nosso cansaço. Ou da nossa indiferença, com que ninguém se importa.
E a continuação.

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

“Fiat Lux”

A propósito de um sacrossanto Acordo Ortográfico que pessoas da nossa praça e doutras praças acordaram entre si, apresenta Vasco Graça Moura mais um artigo no DN de ontem, 17/8 – DN Forum – que tomou um título caricato – “Acordo, epistememas e cairologia”, no qual, com uma ironia tão inútil como merecida, condena um artigo de Fernando dos Santos Neves saído no “Público” em 9 de Agosto, intitulado “Onze teses contra os inimigos do Acordo Ortográfico”. Ilustra-se Fernando Neves de uma orgia de títulos mais ou menos académicos e actuações “tão famosamente retumbantes quanto esmagadoras” na designação de V.G.M., entre as quais o lançamento “do epistemema (sim, leitores, o epistemema) “Ruptura Epistemológica Primordial” (REP) como “a passagem de uma concepção monoparadigmática e reducionista a uma concepção pluriparadigmática e aberta do próprio conceito de ciência.”
Não resistimos a continuar transcrevendo pedaços desta prosa – paradigmática "tout court" - de V.G.M., sobre os pedaços sintagmáticos assustadoramente e promissoramente asnáticos, de F.S.N.:
“Acresce que o número de “onze teses” configura já um autêntico estribilho curricular, uma vez que ele também é autor de mais “Onze Teses sobre o Ensino Superior em Portugal e no Espaço Lusófono”.
“Com tanta artilharia pluriparadigmática, os “inimigos do Acordo Ortográfico” não ganharam para o susto e ainda se arrepiaram mais ao lerem que, na nona tese, o autor propõe para a CPLP “o nome mais cairológico e menos restritivo de Comunidade Lusófona” implicando assim que a referência à língua portuguesa na sigla é afinal redutora.” ….
E V. G. M. conclui, depois de atenta análise deste, ao que parece, atentado ao bom senso, no grotesco de imbecilidades de um preciosismo ignaro, sintomático da parolice apática de quem o aprova:
Mas faça-se justiça. Há pelo menos duas das onze gloriosas que podemos reputar de verdadeiramente epistemémicas e inovadoras. Trata-se da terceira e da décima primeira: o autor, depois de reconhecer que “do ponto de vista técnico-linguístico” o Acordo Ortográfico “padece de muitos defeitos e carece de muitos aperfeiçoamentos”, sustenta que “a sua principal virtude é existir” (3ª) e ainda que “o que importa, agora, é, efectivamente, começar a praticá-lo” (11ª).”
“Da conjugação destas duas teses decorre, do enfático ponto de vista do criador do epistemema “Ruptura Epistemológica Primordial”, que um chorrilho de asneiras deve ser o factor de aproximação da maneira de escrever a língua portuguesa nos vários espaços em que é falada.”




Aqui está a razão do meu título que remonta aos primórdios edénicos: “Fiat Lux”, a partir de um pensamento fernandino amplo de santificado e nevado conceito, no seu jogo antitético que não se importa de pôr em risco a coerência dos enunciados: a existência do Acordo como sua principal virtude, já que se apresenta pleno de lacunas, a necessidade do seu arranque, maugrado estas, dê por onde der.
Faça-se luz a um novo modelo de língua padronizado por novos modelos de fabricadores dela, de uma argumentação apoiada em floresta de títulos de autopromoção, em floresta de asneiras provindas da nova educação, onde por um fenómeno de epêntese sinuosamente erótica, os epistemas passaram a epistememas por deturpação malandra de apetecíveis epistemamas dos novos estudos linguísticos e a cairologia resultou de tal outra provável confusão hieroglífica proveniente das muitas viagens da nossa internacionalidade actual, detidas nos calores arenosos das confusas Pirâmides.
O mal, nisto, é que nem Nuno Crato, Ministro da Educação, nem os demais governantes – suprimido o Presidente Cavaco que o ratificara, detido noutros desertos - parecem importar-se com tal sinistro Acordo, derrubando-o a uma nova luz de maior consciência, linguística e pátria.


“Fiat Lux”, “Fiat Lux”, Senhores! Em vós que mandais, e que prometestes. Em vós confiámos, não nos enganeis. A vossa língua não a abastardeis, o vosso País não desrespeiteis. Os caboucos da reconstrução começam por isso.

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Invisibilidade

A seguinte fábula de Esopo
É expressiva dos distanciamentos
Existentes
Entre os habitantes
Dos vários continentes,
Os grandes e os pequenos.
Mas também Pascal
E Voltaire, apreciaram
Fenómeno tal,
Inteligentes que foram,
Que assim descobriram
As anomalias
E as relatividades
Das humanas disparidades.
E até Swift o apontou
Com o seu famoso Gulliver
Que os de Liliput ataram
Julgando que o venciam.
Mas a invisibilidade
Dos pequenos seres
Para os seres superiores
É o que sentidamente
Esopo atesta
Na fábula da sua gesta:

«O mosquito e o touro»
“Tinha-se um mosquito longo tempo
Postado entre os cornos dum touro
Onde viveu bem acomodado,
Preguiçosamente instalado.
Antes de partir,
Delicadamente
- Ou sequer humildemente -
Ao touro perguntou
Se ele desejava
Ou lhe convinha
Que partisse.
Eis a resposta do touro,
Em taurina postura:
“Na tua vinda não reparei,
A tua ida tão pouco
Notarei,
Ínfima criatura.”
A fábula aplica-se
Ao homem sem poder,
Cuja ausência ou presença
Nem é útil, nem sequer
Inútil pode parecer.»

Poderá assim ser
Efectivamente.
Mas o desdém da gente superior
Às vezes, provoca reacções crescentes
Entre a gente inferior.
Fala-se hoje em dia
Em racismo,
Ou em segregacionismo,
Discriminação
Apartheid, xenofobia,
E mais o que
Também ao diabo lembraria.
Tem a ver com a importância
Dos que têm a cor da pele
Como sinónima do somatório
De todas as cores,
Contra os que a têm como sinónima
Da ausência de todas elas.
O tudo e o nada
Também na cor da pele apercebidos,
Base dessas querelas
Que pelo mundo vão estalando
E a que vamos assistindo
Aturdidos e ofendidos.
Existe por todo o lado,
Na Noruega como na Inglaterra, como na França, como na Germânia …
Entre nós cá
Também se diz que o há
Pois não somos imunes
Ao esplendor da cor,
E muito menos
Ao brilho vil do metal,
Igualmente responsável
Pela diferença racial,
Ou apenas social.
E até mesmo se diz
Que a diferença social
Cá entre nós
É pouco razoável
E muito condenável.
Como na Índia.
Mesmo que não se ponha
Com a costumeira ronha,
O problema da cor,
E só o do económico valor.
Só que um dia,
- Vivemos em democracia -
O pequeno ser poderá,
Como acontece já,
Mostrar a sua revolta
A sua indignação,
Pela humilhação.
Mas há quem nisso não creia,
Como acção muito feia.
Ou como excesso de areia
Para as camionetas
Das nossas metas.



domingo, 14 de agosto de 2011

“Também não fazem bem a ninguém”

Eis uma pronta expressão da minha amiga, assim que lhe contei de um programa que escutei esta manhã de domingo, num dos canais televisivos, sobre os monges que vivem em ascese em mosteiros do monte Athos, de que mostraram belas imagens de arquitectura, trabalho agrícola, pintura e reparação de ícones e imagens antigas, conversa de monges com o entrevistador americano… Monges que vivem em oração permanente, mesmo quando trabalham, salvo talvez nas horas de sono, procurando identificar-se com Cristo, imitando-o segundo a leitura bíblica no rito ortodoxo, numa grande frugalidade e isolamento, mesmo noticiarístico, embora se não coíbam de receber fartura de visitantes, distinguindo os do rito ortodoxo dos do rito cristão.
Já os santos eremitas da Tebaida viviam em ascese e solidão, mas estes alimentavam-se de produtos menos bem talhados, alguns de bichos e de plantas silvestres, como bem explica Eça de Queirós na sua “Lenda de Santo Onofre” e na de “S. Cristóvão”, e como, de resto, Santo Antão, narrado por Flaubert, sujeitos, na sequência desses martírios sofridos, na busca da perfeição, a visões de concupiscências e banquetes, provocadas pelo tentador demónio que sempre se riu desses fastios voluntários, como já o fizera com Cristo.
Creio que os monges ortodoxos dos mosteiros do monte Athos se alimentam e rezam sem delíquios de vis tentações da carne, embora a minha amiga tenha fungado entre dentes, afeita aos despautérios do consumismo e da libertinagem hodiernos.
E a minha amiga concluiu mansamente:
- São aqueles que se fartam da vida e pronto. Têm aí uma solução, nas muitas horas de devoção. Não interessam nem ao menino Jesus.
Mas, sempre irrequieta, acrescentou, embora a medo, que a vida nos sai por vezes adversa:
- Só espero que esses convidem a filha do Raul Solnado, porque ela fala todos os dias com Jesus. Para lhes dar umas dicas. Nós, que já temos uma Fátima, e ainda temos uma Solnada, o que é que a gente quer mais? Para quem não tem nem petróleo, nem ouro… É um fartote de bênçãos, mesmo sem os produtos de extracção.
- Não tenho sentido o efeito bênção
, exclamei com certa indignação.
Desprezou o remoque.
- Eu só fico pasmada como é que não aparece ninguém a contestar! Se não fosse filha do Solnado, nem se atreveria a propalar as suas vidências. E vende os livros todos. Nunca vi ninguém criticar. Normalmente é entrevistada quando sai um livro, como se fosse a coisa mais natural deste mundo. Mas ela é que vive bem, e o resto é treta.
Retorqui eruditamente:
- O resto é silêncio, foi o Hamlet que disse, é o que nos espera a todos.
A minha amiga fugiu do assunto macabro, criticando mais um feriado, o de amanhã, dia da Assunção:
- Somos os campeões dos feriados. Houve alguém que falou em corte de feriados. Mas não devem ter coragem. A Igreja não deixa. Embora a Merkel tenha dito que é preciso trabalhar mais.
Mas, na sequência do sentido crítico e conceito antidogmático que encontramos em Eça, a respeito do que a busca da santidade pelo ascetismo e a penitência podem traduzir de vaidade pelo desejo de equiparação com Cristo, e de vacuidade e egoísmo no desligar do mundo, cito, de Machado de Assis em “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, o seguinte passo:
«Disse-me ele (Quincas Borba) que a frugalidade não era necessária para entender o Humanitismo e menos ainda praticá-lo; que esta filosofia acomodava-se facilmente com os prazeres da vida, inclusive a mesa, o espectáculo e os amores; e que, ao contrário, a fragilidade poderia indicar certa tendência para o ascetismo, o qual era a expressão acabada da tolice humana. “- Veja S. João, continuou ele – mantinha-se de gafanhotos, no deserto, em vez de engordar tranquilamente na cidade, e fazer emagrecer o farisaísmo na sinagoga”.»
Por mim, defendo democraticamente o viver que cada um entenda para si, desde que não ofenda a integridade alheia.
E também gostaria de peregrinar até àqueles mosteiros dos monges bizantinos da “Santa Montanha do Athos”, e outros sítios, percorridos outrora por gentes e barcos e cujos enredos de fantasia ou de mito assente no real, para sempre permaneceriam no imaginário dos povos ocidentais, por eles enfeitiçados.

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Corvo negro do pecado

Leio o livro “Os Portugueses” de Barry Hatton que, vivendo há 25 anos em Portugal, como jornalista e escritor, traça um retrato, que consegue ser simpático, do povo português, em toda a parte ironizado, ao longo dos tempos, pelos povos mentalmente mais desenvoltos, como povo timorato, fechado na sua timidez de incultura, e que em várias épocas da sua história conseguiu ultrapassar economicamente esses outros, por, mau grado o seu atraso espiritual, ter contribuído para o alargar dos espaços da esfera terrestre, nos altos e baixos da sua condição humana, ora selvagem e brutal, ora no proselitismo da fé que espalhou, ora na ambição do enriquecimento pela conquista e domínio de outros povos.
Hoje em dia, os povos cultos não lembram esses factos passados desse povo hispânico, sorrindo das suas inépcias resultantes, acima de tudo de um índice de analfabetismo superior, resultado da luta constante pela conquista da terra da sua lavra, ou do mar da sua ambição, obtidos na sujeição sempre aos senhores que muito os exploravam, e pouco lhes davam em troca, ao contrário de outros povos europeus mais conscientes, criados numa ideologia que foi igualando servos e senhores, obtida pelos muitos letrados que uma governação mais equilibrada possibilitara, pela criação das estruturas culturais necessárias.
Mais tarde, esses outros povos, já traçados os caminhos marítimos de longínqua escala, lançar-se-iam igualmente na descoberta e ocupação de terras, com mais capacidades técnicas e saberes das gentes superiores donde provinham.
O livro de Barry Hatton vai-nos dando conta, através da História, da Literatura e da Política actual, dessas características de um povo “único, fascinante e contraditório”, no seu dom de simpatia e afabilidade ao estrangeiro e servilismo ao poderoso, no seu esbanjamento do tempo, por um “dolce far niente” na cavaqueira sem consequência, na indisciplina e irracionalidade de adepto, não da ordem mas do improviso, não do esforço metódico mas da preguiça mental, e da anedota e das tiradas revisteiras mais ou menos grosseiras, dum convencionalismo parolo que a imposição dos dogmatismos católicos mais acentuou, povo cuja mediocridade favorece a ostentação, a inveja e o não reconhecimento da competência, tendo Camões como paradigma do génio não reconhecido na sua época, mas povo que simultaneamente é capaz da gargalhada sadia, ao estilo de Eça, do gesto grotesco à Zé Povinho, ou das graças de um Solnado dos bons velhos tempos e de tantos outros bons humoristas antigos e actuais nos seus papéis de humor, onde Victor Espadinha sobressai, contra a tal indiferença da mesquinhez que nos corrói. Um povo “sui generis” que construiu uma nação “sui generis”, com uma história “sui generis”, imortalizada por nomes que mereciam maior atenção universal, tal como o fado e os alegres ranchos folclóricos, que metem velhos e crianças, numa despretensão de gente saloia mas carinhosa, que, por outro lado, é capaz de matar, por um desvio de água das suas terras, e se lança corajosamente aos cornos dos touros nas pegas pelos forcados.
Mostrou Barry Hatton a forma pouco judiciosa de aproveitamento dos dinheiros europeus, dando azo ao desperdício e às extorsões, como já dantes fora, da parte dos que comandam os destinos da nação, contou a nossa história segundo algumas boas leituras, entre as quais Antero e as três “Causas da Decadência dos Povos Peninsulares” – governos absolutos prepotentes e narcisísticos, educação jesuítica obsoleta e desligada da ciência moderna, exploração económica colonialística que habituou o país à mândria – a que se acrescentaria o desastre de 1755, as invasões francesas, a perda temporária da corte portuguesa, mas onde um liberalismo de empréstimo possibilitou a implantação de reformas mais humanas. E tudo o que seguiu de reformas tecnológicas na Regeneração, com o Fontismo e a dívida ao estrangeiro, e uma primeira República desordeira, uma segunda economicamente e socialmente estabilizadora mas mesquinha e amordaçante, seguida das mudanças trazidas pela romântica Revolução dos Cravos, de uma democracia mais fútil do que real.
Um belo livro, que cita aversões e amores de gente estrangeira, que, odiando o povo na sua situação de miséria e atraso, admirou, como Lord Byron, as paisagens naturais, de uma beleza edénica não merecida por seres tais embrutecidos.
Mas ouço as histórias da minha portuguesa mãe, que uns dias canta outros dias chora. Esta tarde cantou fados de Coimbra, cuja letra eu já esquecera. Creio que foi em minha homenagem, que amanhã faço anos e vou fazer doces, e fiquei feliz a ouvi-la, alargando a homenagem, generosamente – característica nossa - a Rui Knopfli e a Jorge Amado, que em igual dia viram a luz:
Do Choupal até à Lapa
Foi Coimbra os meus amores,
A sombra da minha capa
Deu no chão, abriu em flores.

Ó Coimbra, que mais queres
Que mais podes desejar,
Se tens cá lindas mulheres
E bons corações para amar?

Se Coimbra fosse nossa,
Como são os estudantes,
Mandava-lhe pôr no centro
Uma coroa de brilhantes.



Não sei onde foi buscar tais quadras, pois a letra do Zeca Afonso nem todas essas abrange, mas os 104 anos da minha mãe dão-lhe uma clarividência de memórias que definitivamente admiro.
Hoje de manhã contara as histórias dos seus tempos de doeira, a guardar cabras pelos montes, seguidas dos corvos que no alto iam crocitando em grasnidos ruidosos, e as doeiras, para os afastar, recitavam:
"Corvo negro do pecado / Não me azangues o meu gado, / Nem o branco, nem o negro / Nem o que anda misturado. / Se queres carne vai ao Porto / Que lá está um burro morto. / Come a carne e deixa o osso / P’r’ amanhã p’r´ó teu almoço."
Esta lengalenga me fez elevar o espírito em oração fervorosa contra as ameaças dos corvos negros da nossa perdição.
Será que uma vez mais o povo valente, capaz dos heroísmos marítimos de outrora, vai conseguir arredar o mal que sobre ele paira, tal como ainda hoje fazem os toureiros em faenas dengosas, que faz Barry Hatton escrever, na Introdução do seu livro: “E uma coisa é certa: qualquer país que luta com touros para se divertir nunca poderá desaparecer”?
Oxalá tenha razão. Sigo o meu pai, que não aceitava a barbárie da tourada como espectáculo.
Mas desejo que o novo governo se mantenha firme e criterioso nos seus compromissos com o país. E que, tal como promete, em breve levantemos cabeça, pagando as dívidas, desenvolvendo as produções, aumentando o emprego e a exportação. Sem lengalenga.

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Uma fábula de Florian

Esta fábula de como se pode ser feliz
Vem a propósito
De um livro sobre « Os Portugueses »
De um escritor inglês
Chamado Barry Hatton
Que de um modo geral
Considera os portugueses
Contraditórios -
Na sua simpatia
Na sua imprevidência
Por excelência -
Que o remete para a cauda
Do povo europeu
Seja ou não da União
Sempre troçado
Sempre ignorado,
Vilipendiado,
Apesar de ser capaz,
Apesar de bom rapaz.
Talvez que o nosso futuro,
Como o do grilo,
Seja o de viver obscuro
Mesmo sendo inconformado,
Como a fábula diz:

« Um grilinho pobrezinho
Escondidinho
Na erva florida
Olhava uma borboletinha
Atrevidinha
No prado a volitar.
Via o insecto alado brilhar
Com as mais vivas cores
Das suas asinhas multicores,
A resplandecer
De azul, púrpura e dourado,
Sobre o prado,
Jovem, belo, senhor de si,
A esvoaçar,
Pegando e largando, a curvetear,
As mais belas flores
Das mais frescas cores
E odores.
« Ah ! dizia o grilo, como são diferentes
A sorte da borboleta e a minha !
Dama natura,
Como uma má fada,
Por ela tudo fez e por mim nada.
Não tenho talento, menos ainda figura,
Assim,
Ninguém tem medo de mim,
De todos sou ignorado
Coitado !
Mais me valera não ser,
Ou até morrer! »
Estava ele a carpir-se,
Chega um bando de petizes,
Muito felizes,
Atrás da borboleta a correr.
Chapéus, lenços, e bonés,
Tudo serve para a apanhar
Sem grandes rapapés
Mas também sem pontapés.
Em vão o belo insecto tenta escapar,
Em breve será presa deles.
Um pelas asas, outro pelo corpo,
Um terceiro pela cabeça
Sem pressa
E sem hesitar
A hão-de agarrar.
Nem tanto esforço era preciso
Para despedaçar
O pobre animal, afinal.
« Oh! oh! - disse o grilo espantado
Já não estou nada zangado;
Custa muito caro neste mundo brilhar.
Como o meu viver apagado vou estimar!
Escondidos vivamos
Para felizes vivermos


Infelizmente,
Tal não é verdade.
Porque a nossa obscuridade
Não é sinónima
De felicidade
Mas de insipiência,
De ruindade,
De incompetência
De insolvência,
De um desrespeito
Tão sem jeito,
Pelos princípios
Pelos valores
De um real Direito,
De preguiça mental
Por sinal,
E atropelamento feroz
Do vós
Porque primeiramente
Estamos nós.
Definitivamente.

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Exportamos pedra

Aproveitei o ar prazenteiro da minha amiga para solicitar as referências às derrapagens nacionais e mesmo às internacionais, caso lhe tivessem interessado algumas delas nem que fossem só os buracos nas vendas dos BPNs das nossas liberalidades de rígida urgência e de subserviência à amplidão do poder económico, mesmo que obtido por meios reconhecidamente pouco lícitos:
- Diga lá coisas!
Mas a minha amiga encolheu-se, num “Deus me livre!” de fastio, e então eu referi um dos programas de José Hermano Saraiva, que nos levara às pedreiras das Serras de Aire e Candeeiros, com a informação sobre as nossas exportações de pedra numa quantidade inconcebível, que me deixaram esperançada na solução para a nossa crise, embora o Dr. Hermano Saraiva tivesse achado que a furar tão fundo para a extracção da pedra nacional, qualquer dia o buraco em que nos encontrávamos já em 1997, data do programa, seria alagado numa espécie de Mar Morto da nossa lavra, e eu recuei nas minhas aspirações à solução financeira por meio das pedras, quer estas sejam ornamentais, calcárias, graníticas, de ardósia ou de mármore, estendidas por esse país fora. Temos que poupar a pedra nacional, pelo menos para termos sempre à mão as ancestrais catapultas das nossas tensões bélicas.
Mas também achámos que a nossa acção outrora dilatadora de espaços e conhecimentos das mais variadas dimensões, neste momento em situação de compressão por falta de credibilidade nossa nesses espaços, poderia vir a renovar-se, pelo menos momentaneamente, graças à pedra, cuja exportação, se derrapara para a Espanha, aumentara para a China, embora eu me espante com a falta de pedra neste último enorme país, que até fez ao longo de tempo vário uma muralha que se avista do espaço, ouvi mesmo dizer que da lua, mas considerámos que a nossa pedra pode muito bem servir actualmente para tapar alguns buracos da muralha chinesa, caso ela esteja já a meter água, pois não consta que essa tal pretenda ir abaixo, como a da cortina berlinense, já que passou a ser património da humanidade, que convém acarinhar.
E foi assim que a minha amiga e eu expandimos as nossas ambições de contributo para a construção ou mesmo só reconstrução dos outros países com mais escassez de pedregulho, que é o que sobra neste nosso, segundo vontade de Deus, juntamente com o sol, que, este poderia servir, contrariamente à pedra da nossa exportação, para a importação de turistas ricos, e equilibrarmos a nossa balança económica.
De toda a maneira, mesmo que esgotemos as nossas pedreiras com a excessiva exportação, sempre nos ficarão, como recordação do passado petrífero, alguma pedra no sapato como fidelidade à nossa idiossincrasia saudosista, e até duas pedras na mão de reserva, para as entifadas da nossa valentia.