domingo, 31 de julho de 2011

Pequena casa lusitana

José Hermano Saraiva é alguém a quem os portugueses devem muito estimar, pela paixão que põe nas suas histórias sobre as terras e as gentes portuguesas, complementadas com um pensamento são e claro que os seus gestos comedidamente oratórios vão pontuando. Um pensamento que não se perde, no seu à-vontade discursivo, enquanto vai revelando os segredos e as maravilhas das terras do seu país, ou chamando a atenção para a incúria a que vão sendo votados tantos marcos históricos que nos deveriam ser sagrados, elogiando iniciativas daqueles que amam o trabalho e reconstroem do que a incúria estragou, ou puramente constroem, apegados ao seu país soalheiro.
Já António José Saraiva, seu irmão, fora outro alguém de quem eu igualmente pensava que a pátria lhe deveria ser especialmente reconhecida, pelos estudos que sobre os seus homens e a sua história sobretudo literária e política praticou, com uma argúcia de interpretação e clareza e riqueza de estilo e de dados que revolucionaram os nossos estudos literários, em novas pistas de uma interpretação corajosamente desassombrada.
Dois homens, dois marcos, que apontam caminhos e nos revelam quanto temos de nos orgulhar do pequeno país que somos, que, tão maltratado tantas vezes, por nós próprios, que gostaríamos de o ver mentalmente superior, não deixamos de nos abismar sempre, perante o descomunal que representou a epopeia marítima portuguesa, que Camões sintetiza nesses maravilhosos versos do Canto VII d’Os Lusíadas:
Não faltarão cristãos atrevimentos
Nesta pequena casa lusitana:
De África tem marítimos assentos,
É na Ásia mais que todas soberana,
Na quarta parte nova os campos ara
E se mais mundo houvera, lá chegara.”



Por isso, quando vamos calcorreando um pouco do nosso país com a RTP e José Hermano Saraiva, em quadros histórico-geográficos e etnográficos, que nos seduzem, revelando-nos facetas de um povo que, apesar de pequeno e tantas vezes troçado, nas suas discrepâncias sociais e culturais, construiu este seu mundo alegre e vistoso, de gente simpática, agora reduzido ao seu rectângulo e às suas ínsulas, lamentamos que a visão, que delas nos dão a RTP e José Hermano Saraiva, não se possa dilatar às terras que os portugueses construíram, "na África, na Ásia, na quarta parte nova”, mau grado as contingências da sua pequenez.
Talvez que esse conhecimento mais amplo do passado nos fizesse reponderar sobre o valor duma pátria, cujo passado temos a obrigação de respeitar, pelo que nos deu, cujo futuro temos a obrigação de precaver. Para os nossos filhos.
Porque o sentimento pátrio não pode nunca ser um valor ultrapassado, mesmo quando não tivesse existido um Camões a lembrar, tão entusiasticamente, desse seu povo, que “se mais mundo houvera, lá chegara.”

sexta-feira, 29 de julho de 2011

No pasarán!

La Fontaine tem lições
Para todas as ocasiões.
Eis um exemplo na berra:

«O Leão, partindo para a guerra»
Rei Leão matutava com discernimento
Num certo empreendimento
Do seu entendimento.
Decretou um conselho de guerra
Lá na terra,
Enviou os seus chefes mores
Para avisar os demais animais
Da sua decisão,
Sem comiseração
Mas com modos sabedores.
E todos foram parte do projecto,
Cada um segundo os seus valores:
O Elefante devia no seu amplo dorso de paquiderme
Os aprestos guerreiros transportar
E ainda, conforme o seu costume,
Sem charme,
Pesadamente combater;
O Urso, os assaltos deveria preparar;
A Raposa, os serviços secretos organizar;
E o Macaco, com as suas macaquices,
O inimigo, sem chatices, distrair.
-“Despedi, disse um dos intervenientes,
Desses mais insinuantes
Na governação,
Que os há sempre,
Queiramos ou não -
Os Burros, que são bem broncos,
E as Lebres, sujeitas a pânicos.”
-“Nada disso, disse o Rei; eu quero-os a todos empregar:
A nossa tropa, sem eles, completa não iria estar.
O Burro assustará as gentes, servindo-nos de trombeta;
E a Lebre servir-nos-á de correio
Como estafeta.”
Um monarca prudente e sensato
Dos seus menores vassalos sabe tirar proveito,
E sabe reconhecer o talento e o jeito.
Não há ninguém inútil
Nem fútil
Para um governante experiente
E envolvente.»

Assim disse La Fontaine,
Assim acha a minha amiga confiante,
E também eu, crente
Na verdadeira democracia,
Ao ouvir nas sessões do Parlamento,
Os novos ministros com muito tento
E galhardia,
Falando e dando
Lições de delicadeza
E de subtileza,
E de comedimento
Sem aquele arreganho
De antanho,
A todos amando
E respeitando,
Embora protelando
Algumas decisões,
Sem precipitações,
Para tratarem de tudo
Com muito estudo
Transmitindo confiança
Na sua promessa
De mudança.
O mal é que a maioria,
Impaciente,
E impertinente,
Sem cortesia,
Sempre com pressa,
Injecta, injecta
O discurso da treta,
Habituada que está
Ao improviso,
À imprevidência
À impaciência
À berraria,
À falta de estudo
Ignorando, afinal,
Que trabalho e estudo
São tudo,
Ou o principal,
Mais a hombridade,
E que é preciso saber esperar
Para poder observar
Resultados de qualidade
E talvez mesmo em quantidade
Como já mais que uma vez nos sucedeu,
Sei eu.
Por isso, talvez que o nosso rei
Mesmo tentando fazer o melhor,
Se fique no degrau inferior,
Porque ele deseja, sim, erguer a Nação,
Mas a sua Grei, não.

terça-feira, 26 de julho de 2011

A esperança possível

- Isto a partir daqui tudo é possível – começou a minha amiga, depois de contar que mal dormiu, de horrorizada que tem andado com a história do norueguês. – A pessoa mais simpática pode ter uma mente criminosa do mais sofisticado.
Falei então em Lúcifer, o condutor de Luz, segundo a etimologia latina, o belo arcanjo que gradualmente se foi tornando a personificação do Mal, até se confundir com o Satanás, Satã, o Diabo, eufemisticamente tratado por dialho, diacho, não vá ele tecê-las, Demónio, Demo, Inimigo, que Deus nos livre…
Indiferente a esses esclarecimentos da minha vetusta embora tímida erudição, a minha amiga continuou com desembaraço:
- Este homem vivia cheio de raiva, toda a gente esperava que ele se matasse, até o pai. É o que fazem todos os fundamentalistas criados na escola do terrorismo. Matam mas morrem pela causa. Este não. Quer explicar, está contente e orgulhoso com o que fez. Já viu o que é viver com um homem destes? Ser pai ou mãe de um homem destes?
Eu achei que era sempre difícil conviver com um criminoso, e citei, entre outros mais ou menos célebres, aqueles exemplos sórdidos de incesto consciente que têm aparecido por esse mundo – de preferência na Europa Central, conquanto também nos possamos gabar de sordidezes parecidas – mas achei que o rapaz, abandonado pelo pai, deve ter acumulado ódios em quantidade comparável à dos fertilizantes que comprou para construir as suas bombas.
E para sacudir o pesadume que um tal acontecimento necessariamente pôs nos nossos espíritos já esmorecidos com os pesadumes diários, lembrei as recentes notícias sobre a possibilidade de descoberta de ouro em Portugal, que constituiria o milagre necessário para a nossa salvação presente e futura e para a redenção do nosso passado mal gerido.
Mas a minha amiga, como sempre, cortou-me a satisfação da primeira mão noticiarística:
- Há anos que estão com as máquinas a trabalhar. Mas depois pára. Pode demorar décadas a encontrar. Se fosse verdade e se houvesse ouro, era bom para o país. Ou mesmo p’rá próxima geração.
- Pois! P’ra substituir as toneladas que o Salazar nos legou e que se devem ter evaporado, mas ninguém fala nisso!
- Eu acho que o petróleo é que era bom!
- O ouro negro!
– suspirei.
O diabo é que nos lembrámos dos nossos hábitos de mândria, além de outros costumes dissidentes facilmente obtidos no fascínio do dinheiro fácil, sobre nós injectado por uma Europa camarada, que desviariam o milagre do ouro achado não para refazer ou criar estruturas nacionais tão precisas, mas para preencher mais uns bolsos pessoais, segundo os usos da nossa condição humana.
E a esperança varreu-se-nos da fantasia momentânea.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Desiludido com a bomba

A minha amiga só falava na beleza do rapaz:
- Já viu? O rapaz é um príncipe. Ouvi um colega dele a dizer que era uma pessoa calma e educada. Ninguém imaginaria tal monstruosidade.
Entretanto, outra amiga nossa concordava com a beleza do príncipe.
Eu lembrei ferozmente os princípios da pureza racial ariana, como estando na origem de um atentado deste género, comparei a atitude do belo rapaz norueguês às de Hitler e seus compères, matando por esse mundo além, a título de preservação da raça (entre outros títulos de motivação para os milhões de mortes perpetradas), e desejei-lhe uma morte a fogo lento.
A outra nossa amiga falou no nosso português também bonito e mais jovem, Renato Seabra, a sofrer horrores na horrorosa prisão americana, por ter livrado o solo terráqueo de um ser imundo, (Carlos Castro, de sua graça) enquanto o príncipe norueguês será tratado provavelmente com comedimento, durante os anunciados 21 anos, pena máxima pela sua prática terrorista, talvez até amortizáveis, defendido democraticamente, com o pretexto de ter sido um acto tresloucado. Embora longamente planeado. Já há mesmo quem lhe chame tendência psicopática, para melhor o desculpabilizar.
A minha amiga lembrou que se tratava de um “lobo com pele de cordeiro”, um indivíduo não conflituoso, que não se deu a conhecer a ninguém, inteligente, bom aluno… E acrescentou suspirando:
- Deve estar desiludido com a sua bomba, que só matou sete pessoas…
- Mas isso foi em Oslo. Na ilha, foram largas dezenas.
- Mas tantos anos a tratar da bomba, dois anos a escrever sobre os seus propósitos, e tanta tonelada de produto químico perdida!
Mas ouvíramos nessa manhã anunciar que Portugal estava entre os países que ele se propunha atacar, ocupando o 17º lugar na sua lista, e que Durão Barroso também era seu alvo. Contava matar uns largos milhares, mesmo no nosso país de sol, que nos torna morenos, à maneira islâmica, além de que aceitamos muitos outros morenos que não são conformes à ideologia defendida pelos da pureza e daí os projectos de extermínio. Falámos nos produtos bioquímicos, muito eficazes no envio de cartas, exemplificámos com o antraz e a minha amiga, que decididamente vai muito atrás do Belo, concluiu, pesarosa e fascinada:
- O que ele é, é muito infeliz.
Eu, então, falei num livro que acabei de ler - “Com os Holandeses” de J. Rentes de Carvalho – muito bem escrito, sobre um povo extraordinário de capacidade técnica e racional, mas pintado com cores sombrias, por quem por ele fora humilhado, povo extremamente xenófobo, apesar dos seus pólderes, das suas tulipas, dos seus tamancos, do seu queijo Gouda, de Erasmo e o seu “Elogio da Loucura”, e van Gogh e Vermeer, e Brueghel, e Rembrandt, e Bosch...
Também Rentes de Carvalho aponta o lado frio de um povo de uma esfera superior, desprezando os tais morenos desmiolados que, se sorriem descontraidamente, são apodados de interesseiros que se insinuam para obter ajuda sem esforço.
O tal príncipe de olhos cortantemente azuis, não queria islâmicos lá na sua terra, e empreendera sozinho – ou talvez acompanhado, ainda não sabemos – a ingente e hábil tarefa de fabricar bombas a partir de toneladas de fertilizantes, sem que ninguém fosse ver nunca o que ele andava a tramar, com tanto esterco.
A minha amiga tem razão. Anders Behring Breivik, 32 anos de um norueguês sem mácula, deve estar muito desiludido.

sexta-feira, 22 de julho de 2011

“O saber não ocupa lugar”. Ditado antigo para uma Escola Nova

Do blogue “A Bem da Nação” de Henrique Salles da Fonseca extraio o texto seguinte que, pela sua actualidade, e pelo desejo de tornar minhas as palavras escritas pelo seu jovem autor – Henrique Raposo – aliado ao forte interesse por que as famílias portuguesas comecem, de facto, a ponderar mais na importância do seu papel como principais obreiras da sua nação, pela imposição aos seus descendentes de regras de conduta e defesa de valores que garantam a estabilidade dessa nação, transcrevo, embora, também, no seguimento de um pensamento pessimista, parafraseando Camões, e tal como ele na sua “Babel e Sião”, eu me veja “a mim que espalho / tristes palavras ao vento”.


“Nuno Crato: “O problema das famílias começa … em casa”
«Nos últimos anos, quando a conversa chegava à educação eu tinha sempre a mesma resposta: "o meu ministro da educação é Nuno Crato". Razão? O livro que está aqui à direita, que é uma espécie de sistematização das ideias certeiras de Crato para a educação. Que ideias são essas? De forma clara, Crato defende uma revolução pedagógica e cultural, criticando - sem piedade - o eduquês reinante. Crato quer exigência, e não facilitismo. No fundo, Crato acaba por defender que os desejos do aluno não devem ser o centro da escola. O centro da escola deve ser, isso sim, o conhecimento transmitido pelo professor. Porque a escola não é um recreio, não é um passatempo, e os professores não são babysitters.
Porque os adolescentes não vão ser sempre adolescentes. Porque é preciso preparar esses jovens para a vida adulta, para a cidadania e para o mundo do trabalho.
Portanto, mais do que o - esperado - trabalho técnico de reorganização das escolas e demais blá blá burocrático do ministério, espera-se de Nuno Crato uma mudança cultural de fundo. E esta mudança cultural começa em casa, com os pais.
É por isso que digo que este livro devia ser lido pelos pais antes de ser lido pelos professores. Em Portugal, o problema da escola não se resolve enquanto os pais não forem exigentes com os filhos. Tal como defende Crato, "O que precisamos é de perceber que a autoridade dos pais deve ser exercida não criticando os professores por serem exigentes, mas ajudando os professores a serem exigentes. É raríssimo um pai entrar numa escola por o aluno ter boas notas. Em contrapartida, aparecem muito frequentemente pais a queixar-se das fracas notas dos filhos, sem estarem preocupados com saber se eles de facto sabem ou não sabem o correspondente às notas".
Este é o grande problema da nossa escola. Mas, apesar de ser da escola, este problema começa em casa. Se uma criança é ensinada no facilitismo pelos próprios pais, como é que um estranho - o professor - pode pedir exigência à dita criança? É impossível. Tudo o resto (avaliação dos professores, as direcções regionais, os exames nacionais, etc.) está situado a jusante desta questão central: os pais portugueses querem ser pais exigentes ou amiguinhos complacentes dos filhos? Se conseguir impor esta discussão cultural à sociedade portuguesa, o consulado de Nuno Crato ficará na história da 5 de Outubro.»


Para o texto de Henrique Raposo enviei o comentário seguinte, como apoio aos ditames nele inclusos:

«Em nós, o conceito de liberdade contra a opressão da chamada ditadura, conduziu a todos os excessos libertários, que o Maio de 68 em França ajudara a despoletar, dentro de um conceito de democracia igualitária que em nós, povo pouco esclarecido, assumiu foros de idiotia, pela ofuscação que a palavra liberdade lhe impôs, sem bom senso nem bom gosto. Nada a fazer. Os pais de então que se deixaram ofuscar, por conveniência ou a tal idiotia, foram os educadores de novas gerações... talvez já se esteja em 3ª geração. As políticas educacionais ajudaram à festa, atingindo o seu auge no Governo anterior, com o convite despudorado ao desrespeito pelo professor, de governantes, de pais e de alunos, desde o 25 de Abril, de resto, insinuando-se gradativamente num ensino que começou por desrespeitar o saber. Gostaria que fosse efectiva a proposta da acção da família como principal motor de arranque de um ensino que respeitasse o saber acima de outros considerandos infantilizadores e por isso atrofiadores da nossa juventude. Só um governo forte poderia exercer algum efeito sobre esse status... se a família educada na indisciplina dos últimos anos, o aceitasse, sem as reacções sindicais habituais.»


Muitas vezes, em breves escritos de apelo à sensatez, eu escrevera textos que denunciavam o panorama vivido no nosso ensino pós-revolucionário, muitos dos quais contidos no livro “Anuário. Memórias Soltas”. É dele que transcrevo o texto seguinte, de 1982, em apoio ao tema sobre a necessidade premente da mudança:

“Estratégias de ensino: Não à coisificação do aluno?”
«Todo o ensino, por muito liberal que pretenda ser, centrado no professor, no método ou no aluno, ao encaminhar este num sentido de descoberta, de abertura para o saber, seja qual for o método usado, sejam quais forem as estratégias empregues, tenta modelá-lo, servindo-se dele como objecto, que uma varinha mágica transformará com maior ou menor eficácia.
Qualquer estratégia de ensino exige técnicas de repetição, memorização e outras, necessárias no ensino da matemática como do francês ou da história. Pretender negá-lo é falsear a realidade, para melhor nos inscrevermos no rol dos pedagogos actualizados – na realidade indiferentes à formação dos nossos alunos. E uma das grandes deficiências do nosso ensino foi, creio, o ter-se minimizado, ao nível do ensino básico, a aquisição de automatismos, a pretexto de que eles não só despersonalizam como alienam a criança em atitudes rígidas de psitacismo, de verbalismo reprodutor de chavões, sem originalidade nem espírito crítico.
A verdade é que o desenvolvimento da inteligência passa pelo desenvolvimento da memória, a que a criança recorrerá – como o adulto, afinal – sempre que necessite de esclarecer melhor os seus raciocínios.
As modernas pedagogias, assentes como pilares sobre o mundo da afectividade da criança, privilegiam o que nela há de subjectivo, de espontâneo, de criativo, procurando o lúdico como estratégia constante, sem objectivo nem grandeza, por não terem em conta a sua capacidade intelectual, esquecidas de que os estudos posteriores exigirão um tipo de participação mais racional e mais sério, a que elas não foram habituadas à partida.
Aliás, é extremamente grave o fosso existente entre os programas bastante sobrecarregados que provêm do Ministério e os resultados obtidos, de um insucesso cada vez mais acentuado, entre outros motivos porque, no fundo, pretendemos aplicar a adolescentes princípios pedagógicos feitos para a criança em idade pré-escolar, continuando a pôr a tónica na afectividade e na participação activa da criança, por meio de estratégias tantas vezes rebuscadas, quando uma clarificação a nível racional abre muito mais caminhos à inteligência da criança que, de posse de conhecimentos de gradual exigência conceptual, poderá desabrochar em produção e criatividade, menos espontâneas e mais conscientes.
Penso que, ao desejarmos que as crianças desenvolvam a sua criatividade, tirando do nada ou das nossas manipulações as suas produções mais ou menos originais, escamoteamos o papel formativo da escola, que não deve só valorizar a diversão, o ensinar brincando, mas deve ensinar o aluno a respeitar aquilo que aprende, que outros construíram ou desenvolveram e que, como ser racional que é, deve procurar obter também.
De toda a maneira, como já disse, quer se ensine brincando, quer explicitando noções, quer o aluno aprenda de forma passiva (e sabemos quanta passividade intelectual se esconde sob a camada de pseudo-actividade ruidosa e desorientada da juventude actual), quer o faça de forma activa, julgo que o objectivo do ensino é sempre o mesmo – o de conduzir o aluno para uma meta de desenvolvimento pessoal, ainda quando se siga o não-directivismo e a autonomização que, no fundo, pré-existe em todos os métodos, em prazos de maior ou menor extensão.
Dessa forma, o aluno será sempre matéria moldável – sem que o ensino traduza necessariamente uma “coisificação” da pessoa manipulada. Que ele é, pelo menos à partida, se não quisermos transformar a escola num festival de anarquia, desrespeito e insegurança.
A sua autonomia reforçar-se-á com o desenvolvimento da sua capacidade de resposta, da sua capacidade e espírito crítico, que um ensino não demagógico, de um dirigismo racional e sensato, ajudará a concretizar.
Lançando um olhar sobre o meu passado de estudante num ensino tradicional, devo confessar honestamente que nunca me senti objecto ou “coisa”, mas sujeito participante, e sinto reconhecimento pelos professores que, com maior ou menor capacidade docente, com maior ou menor abertura de comunicação, todos me ajudaram a abrir os meus interesses espirituais, que as leituras naturalmente contribuiriam para alargar.
Por esse motivo, creio que pomos demasiado em causa, um tanto sofisticadamente por ser moda, o nosso papel de pedagogos, o que também contribui para criar instabilidade no ensino.»


Li o texto acima numa reunião de orientação de estágios para formadores, nesse ano de 1982, e recordo a imediata reacção de uma das colegas assistentes, que vomitou impropérios sobre os professores que tão negativamente a marcaram nos seus tempos de estudante, a nenhum reconhecendo competência, a todos acusando de autoritarismo e dirigismo, narcisismo, desumanidade. É pecha antiga. Não vamos mudar.

terça-feira, 19 de julho de 2011

Ainda os velhos “sofistas” dos “maus caminhos por direitos…”

Bastou a minha amiga ler o texto anterior, que, para restabelecer os seus créditos nas mãos alheias e nas próprias, logo se ergueu do marasmo que tem sido o seu, ultimamente, na questão dos comentários provocantes, para lançar com o donaire habitual:
- Olha lá, e aquele que tem sido tão gozado, o Ministro das Finanças?
- Vítor Gaspar, como se chama. Tem muitos estudos e também é ministro de Estado.
- Mas parece o Cavaco a falar. Está a ser gozado com a imagem do “desvio colossal” que não é brincadeira. Parece uma coisinha que está ali e não sabe o que está a fazer, a fazer uma figurinha tão coisinha!
- Naturalmente o desvio é mesmo colossal, pois Passos Coelho confessou isso ao seu grupo político, dizendo que ultrapassa os dois mil milhões de euros. E a justificação que o Ministro das Finanças deu, na reposição da frase do chefe, em tom exteriormente muito soturno, a desmistificar a questão, pareceu-me, antes, muito inteligente e maliciosa: retirados os morfemas, os lexemas e os fonemas respectivos, dos variados sintagmas de permeio, entre os citados sintagmas nominais, sobressaíam apenas os semantemas “desvio financeiro” e “trabalho colossal”. Quem gozou foi ele, em voz dorida, apoiando o extraordinário das asserções, que toda a gente sabe quão verdadeiras são, pois a desvios é que nos temos habituado, além de outros que a gente desconhece.
- Dois mil milhões! E nem um milharzinho veio parar ao nosso bolso! Nossa!
- Se tivesse vindo, não estaríamos nós aqui a falar disto, que o silêncio é imprescindível nesta coisa de fundos.
- Então e aquela frase do Cavaco que vai dar para a semana toda, a dizer que era melhor que o euro fosse fraco!
- Eu também ouvi e estranhei, pois ele larga essas bombazitas fruto do seu pensamento grave, e não as justifica. Explicou-me o meu marido que deve ser para aumentar as exportações em relação ao resto do mundo, que ele quer enfraquecer o euro, mas, sendo as nossas exportações mais voltadas para a Europa, o câmbio deixa de ter significado, e a frase transforma-se em parolice sem sentido, para ele ir merecendo a atenção geral, dentro do seu critério de aparente modéstia. A verdade é que dá sempre que falar.
- Ah! E olhe lá! O país de norte a sul em festa! Os troikos devem estar encantados! Aqueles três dias de espectáculo na praia do Meco… três dias! Sabe quanto custam três dias? 150 euros cada pessoa, eles, os rapazinhos… as famílias pagam. O genro do Cavaco, o marido da Patrícia, que é doutora, é que promoveu. Sabe quantas pessoas estavam lá? Noventa mil. Aquilo é um terreno na praia do Meco… três espectáculos ao mesmo tempo. Muitos são estrangeiros. Mas o genro do Cavaco deve ter dinheiro, pois ele organiza aquilo, que dá muito trabalho. Não conhece? Não está cá! Olhe que ele aparece na televisão!
A minha amiga tem o condão de me deprimir.
- E já viu os motards?
Esses eu tinha visto nessa manhã, e ouvido as pessoas que mostravam a sua muita satisfação a assistir ao espectáculo do roncar das motas, desejando que no próximo ano se repetisse a festa.
- Vem uma barbaridade de gente. As comissões ganham com isso. Aparecem tantos portugueses! ... Não há crise. Porque se a gente dissesse assim: Coitados! Não apareceu ninguém! Mas não cabe mais um! É um espanto! Ainda não ouvi nenhuma crítica! A justificação é de que isso traz dinheiro para a terra. Só não compreendo é como é que há tanto! E vamos ver o que se segue…
Uma bica de facúndia, na manhã de ontem, na expectativa de uma acção governativa eficiente e limpa. E discreta também. Sem os tais velhos sofismas.

domingo, 17 de julho de 2011

Os sorrisos excessivos

Andamos em atritos, a minha amiga e eu. Ela, porque, atribuindo aos fados maléficos os pontapés que leva ou receia levar nas pedras da calçada à portuguesa, que difere bastante da estrada em macadame, porque dá lugar a mais estatelanços, resolveu fechar-se em copas, para equilíbrio pessoal. Eu, porque puxando por ela, para me dizer o que lhe vai na alma, para em seguida explanar o que me vai na minha, levo sempre com negas que me desinspiram e esmorecem.
De almas fechadas aos ventos das notícias, falamos mais nos que morrem ou morreram, nos que adoecem ou adoeceram, e de caminho vamos ouvindo histórias de sofrimento ou zangas familiares das amigas que por nós passam. Tudo gente antiga, antigas colegas, antigas companheiras que o tempo ainda conserva, a comprovar que a população está, de facto, a envelhecer, e a trazer à memória velhas frases de pessoas mais velhas, já desaparecidas, caso do meu amigo juiz Brite Ribas, que lembrava telefonicamente e melancolicamente, há uns vinte anos, isto que estamos sentindo agora: “Sinto-me muito só, porque os colegas da minha idade vão desaparecendo, e estou doente”. Não é bem o nosso caso ainda, mas chego a pensar que, até ao fim da vida, o nosso discurso da bica matinal não se vai erguer deste embrutecimento causado pelos problemas pessoais e alheios, mas causado também pela sensação de um genérico aplicado ao país doente e triste, por muito que – ou talvez por isso – os actuais programas televisivos matutinos ou vespertinos nos levem a conviver com o nosso povo de folguedos e de comidas. Embora às vezes também de arte, ao levarem-nos pelos caminhos do património cultural nacional, sem grande zelo de esclarecimento, é certo.
Por todos esses motivos de recusa em partilhar os meus breves contactos noticiarísticos, exponho sozinha o que me causa engulhos, e tal foi, há dias, o discurso muito amaneirado e dolicodoce de Assunção Esteves referindo-se a Cavaco Silva, desejando-lhe, no final, boa sorte, e falando, como Presidente da Assembleia da República, em trabalho e reuniões frequentes com ele.
Talvez ela não tivesse culpa de ter que justificar esse primeiro encontro, perante uma imprensa ávida de fofocas e de discursos vazios, de desejos vazios. Quando se pretende realmente trabalhar, não é necessário tanto badalar. Afinal, nunca eu tinha dado importância ao segundo lugar da nação, limitando-me a registar um ou outro dito espirituoso de outros Presidentes da Assembleia da República que passei a ouvir nas reuniões parlamentares e que abrangeram apenas Almeida Santos, Mota Amaral ou Jaime Gama, por serem contemporâneos da minha reforma.
Assunção Esteves é ainda jovem, é mulher – a primeira com esse cargo cá – dizem que competente. Não precisa de sorrir tanto, nem de explicitar tanto as suas funções, pois não têm que ser funções de charme, mas apenas de competência. Como os seus colegas ministros, que desejam desenvencilhar-se o melhor possível das suas funções, com seriedade e empenhamento, segundo afirmam.
Nada de extraordinário. Em todas as profissões são necessários a seriedade e o empenhamento. Mas “minister” significa no velho latim, servidor, criado, e embora a palavra tenha evoluído semanticamente, e de que maneira, convém que os actuais servidores da nação se não esqueçam das funções de bem servir, regressando à base etimológica, mau grado a sua permissividade a um Acordo Ortográfico defeituoso.
Se o muito riso é sinal de pouco siso, o sorriso excessivo pode ser sintoma de uma subserviência ao primeiro Presidente, que, dado o carácter untuoso que assumiu, de molusco enfiado na sua concha, fechada a qualquer trepidação, que não seja o seu mundo próprio, não precisa de tanta exteriorização de charme alheio.
Andamos fartos disso, de subserviências e de agressões. Precisamos de seriedade, não de sorrisos, de ocos blá blá blás. Precisamos de trabalho e competência. De honestidade para pagar o que devemos e para corrigir tantos erros que fizemos.
Faltou a graça da minha amiga neste arrazoado. Mas o tempo ameaçador não dá para sorrirmos.
Esperamos.

terça-feira, 12 de julho de 2011

A propósito de uma frase

Uma frase já antiga, da revista Única do Expresso de 10/6, extraída da “Pluma Caprichosa” de Clara Ferreira Alves: “É preciso odiar muito um partido e no que ele se tornou para eleger Passos Coelho”.
Mais de um mês passou sobre as asserções de Clara Ferreira Alves que incluíram as opiniões dos canais reputados de língua inglesa – CNN e BBC – a respeito das escolhas portuguesas do novo leader, o significado do termo socialismo, os concorrentes à liderança do PS que requerem um carisma superior ao de Coelho para de novo se instalarem na banca do poder fazer e, finalmente, o inimigo público número um, Passos Coelho, entre os diversos inimigos públicos referidos por CFA, que incluem os socialistas, concorrentes ou não, cujo ego ofusca os nobres ideais do socialismo de antanho, como fora – certamente que na opinião de Clara - o de Mário Soares, cuja nobreza de ideais ainda hoje o trazem à tona noticiarística para dizer o mesmo que sempre disse, resumido, se bem me lembro, aos conceitos badalados de liberdade e democracia e apimentado com as informações sobre os seus conhecidos e as suas amizades como o fizera sempre. De resto, fazendo o que todos fizeram, no contributo para a redução do Estado e do povo portugueses à situação de mendicidade sem tréguas, e provavelmente sem conserto.
Porque o fazer, com poder, tem uma maleabilidade de superior alcance, que nos levou, de há longa data, mau grado os ideais benfazejos do socialismo, que Clara Ferreira Alves recorda dos seus tempos idealistas da jovem bem-intencionada que fora, a esta situação degradada, materialmente e espiritualmente.
De resto, concordo com ela nas afirmações sobre António José Seguro, que só um partido “tosco” pode apoiar.
Tudo isto vem à baila, apesar do texto “Inimigos Públicos” ser já antigo, porque me chocou a frase referida, das doutorais CNN e na BBC, citadas por Ferreira Alves, de que “os portugueses apearam José Sócrates porque as medidas de austeridade que este tentou impor foram consideradas insuficientes”, e escolheram “Passos Coelho porque este prometeu medidas mais duras”, o que me parece ser desprezível falsidade, aproveitada constantemente ainda, pelos vários opositores, para ocultarem os motivos reais da escolha – o regime de fraude e de dolo permanente instituído por José Sócrates, de contínuo empenhamento ao estrangeiro seguido de falsas promessas de pagamento da dívida, e de insistência em medidas ruinosas, deixando recair sobre o novo governo a responsabilidade e o odioso de medidas ainda mais drásticas, antes que o lixo dos julgamentos fizessem afundar de vez o país.
E assim nos vamos entretendo, neste país de galhofa, onde a superioridade consiste não em ajudar à construção, mas em atirar pedras sobre o moribundo, coveiros que somos, por falta de ideais. Reais.

Que me parecem contudo, existir, no Governo de Passos Coelho.

domingo, 10 de julho de 2011

O corno do Custódio

Ambas comentámos a notícia, ouvida neste domingo, de que Portugal estava entre os cinco primeiros países europeus que mais maltrata os seus velhos. Os números assustam.
Há muito que lemos sobre as mortes solitárias, olhamos os velhos dos bancos dos jardins, silenciosos ou jogando cartas, conhecemos casos, entre a nossa população idosa, de pessoas doentes, que se arrastam entre o café e a farmácia, contando dos seus achaques, provavelmente no susto da casa solitária, para o enfarte ou a dor súbita, embora vão gabando a filha que, coitadinha, tem muito trabalho e pouco pode aparecer… E lemos sobre a violência doméstica, e sobre os velhos que a família abandonou nos hospitais… Tudo confrangedor. Coroado pelo conceito chocante da eutanásia libertadora.
E, por antecipação, vemo-nos daqui a uns anos, talvez em situação idêntica, forçadas a deixar o nosso mundo familiar, tudo o que preencheu as nossas vidas de alegrias e tristezas, atiradas para um lar de idosos, se tivermos essa sorte, onde teremos que iniciar uma existência desligada de tudo o que teve significado para nós, esperando a visita da família amante, não o duvidamos, mas com os seus próprios condicionalismos de limitação de espaços e de tempo.
O envelhecimento da população, concomitante com a diminuição da natalidade, torna-nos mais sensíveis ao problema, cujo tema já Simone de Beauvoir, no seu livro “La Vieillesse”, de 1970, focara, destacando a condição dos velhos como párias que a sociedade marginalizava, retirando-lhes não só os direitos mas a própria condição humana, que a fragilização gradual das faculdades mentais e físicas propiciava.
Ficámos chocadas com o que se passa no nosso país, mas eu lembrei um livro da actriz norueguesa Liv Ullmann, “Mutações”, onde, entre as suas evocações autobiográficas, conta a relação de amor com a avó, que acabou num centro para idosos, bonito, acolhedor, com empregadas pacientes, mas obedecendo aos toques das regras do convívio e onde nenhuma empatia se apercebia entre as cinquenta criaturas fêmeas que o habitavam. “Lá como cá”, pensei eu na altura, com a estranheza da convicção de que a superioridade cultural dos povos impediria equiparações connosco.
É Alçada Baptista quem igualmente foca o problema, na sua “Peregrinação Interior”, como algo que a sociedade despersonalizou, indecorosamente, retirando o idoso doente do seio da família, que se socorre da casa de saúde ou do hospital para não atravessar o horror do sofrimento e do passamento do seu familiar, querido ou não, despegando-o de si, talvez por egoísmo, talvez por amor, no apelo à salvação ou a uma provável recusa do sofrimento próprio.
Mas, porque somos dos mais favorecidos nas equiparações negativas com os outros povos, não significa que todos nós tratemos mal os nossos velhos, e por vezes a televisão leva-nos a centros de diversão para idosos que nos encantam, embora quisesse que entre as diversões houvesse espaço para leituras e convívios mais do foro intelectual.
E uma vez mais, lembro a minha mãe como pessoa de sorte, a sorte que não teve o meu pai, sujeito a um final de muito sofrimento, com um passamento longe da família, no hospital.
A minha mãe beneficia da presença das duas filhas, a mais velha rodeando-a de cuidados e companhia, trazendo-lhe revistas baladeiras, com direito a explicação sobre as personagens desse mundo real que consola e faz sonhar, passando, junto da mãe, horas da sua vida diária, conversando sobre os temas repetidos. Ao domingo, traz o almoço feito em sua casa, e a minha mãe, no seu trono real que é a cadeira de rodas, goza da nossa presença e recorda uma vez mais, o seu passado mais recuado ou mais recente, com que consegue ainda surpreender-nos, por vezes.
Foi o caso de hoje. Contou a história do seu tio Custódio, um dos seis ou sete irmãos da sua mãe, que um dia recebeu um corno enviado por um dos seus irmãos que fora para o Brasil. Era um corno competente, que comportava uns vinte litros do bom vinho que ele ia buscar à sua quinta do Casal Bom, junto do Vouga, para o levar para Ribeiradio, a pé, pois naquele tempo andava-se muito a pé. E à chegada apregoava, generosamente: “Quem quiser beber vinho do bom, venha ao corno do Custódio!” E a minha mãe ria-se, a contar, pela primeira vez, essa história, que nos divertiu também.
A minha mãe vive um presente de mimo, mas exige sempre mais. Nos espaços de mais solidão – ela sabe que eu estou perto – reza, chora, chama os seus queridos do passado, conversa com eles.
Nunca um lar lhe poderia servir. Felizmente que estamos disponíveis.
Que o corno do tio Custódio, lembrado hoje, verta sobre nós umas gotas de vinho benfazejo que abençoe o percurso final de uma mãe centenária, com a presença, constante e capaz, das filhas, nos anos que seguem, também a caminho.

sábado, 9 de julho de 2011

O poço

A fábula seguinte
Da Raposa e o Bode
É de La Fontaine
Que, sempre actual,
Põe o dedo na ferida
Na questão nacional
Sem saída:
A do nosso endividamento estridente
Resultante
Do mergulho no poço
Em busca do caroço
Para satisfazermos
A sede de termos
Recursos, riquezas,
Poderes, vilezas,
E as muitas lérias
Das nossas misérias.
É assim a fábula:

«A raposa e o bode»

«Comadre Raposa ia de companhia
Com um seu amigo Bode dos mais encornados:
Este não via, pobre infeliz,
Mais que dois palmos à frente do nariz,
E dos mais diminutos;
O outro, em enganos e velhacaria,
Era mestre, dos mais esclarecidos.
A sede obrigou-os a descer a um poço:
Ali, cada um deles bebe até fartar.
Depois que ambos se dessedentaram
Diz a Raposa ao Bode
Como quem lhe acode:
“Compadre, que vamos fazer agora?
Não basta beber, é preciso
Sairmos daqui para fora.
Levanta os pés pelas paredes acima
E os cornos também, para que eu suba
Pela tua espinha primeiro, pelos teus cornos depois.
Com uma tal máquina, deste lugar sairei,
Depois por ti puxarei,
E sairemos os dois.
-“Pela minha barba, disse o outro, acho bem;
Eu sempre louvarei
Gentes espertas como tu
Que não enganam ninguém.
Eu por mim jamais teria
Achado tal solução.”
A Raposa sai do poço,
Num alvoroço,
E abandona o companheiro
Não sem primeiro
Lhe pregar belo sermão,
Exortando-o a ter paciência
Em abundância:
“Se te tivesse um Céu propício
Dado em benefício
Tanta inteligência
Como barba no queixo
Tu jamais terias ousado
Tão levianamente,
Descer ao poço. Aqui te deixo
Prudentemente.
Estou fora.
Adeus, que me vou embora
Urgentemente.
Trata de sair daí, como puderes.
Quanto a mim, tenho um assunto a tratar
Que me não permite parar.”
Em qualquer empreendimento que tomemos,
Antes de nos precipitarmos,
É preciso ter em atenção o fim,
Com discernimento.
Só assim
Nos safamos.»

Aqui está a fábula atrevida
Que põe o dedo na nossa ferida.
Nós somos o carneiro ramalhudo
E peco
Que mal aconselhado pela raposa ditosa
Semelhante a outra qualquer raposa manhosa
De dentro ou de fora,
Salta para o poço com rapidez
No seu deslumbramento e avidez,
Sem pensar nas consequências
De tais extravagâncias.
Lixou-se o carneiro,
No lixo do poço.
De lá não saiu,
Atolado
Até ao pescoço.

quinta-feira, 7 de julho de 2011

A pata

Se antes nos sentíramos felizes com um Governo que parecia iniciar uma nova era de actuação, na promessa de um rigor e transparência que faltara antes, e na seriedade e educação de um discurso inteligente, a notícia que ouvíramos ontem sobre a redução a lixo na classificação económica de Portugal pela Moody’s, deixara-nos indignadas, apanhadas na surpresa do que nos parecia um golpe baixo, que não dera a oportunidade de verificação das anunciadas reformas, atribuindo a nota antes das provas prestadas.
É certo que há muito que pairava entre nós, como véu soturno de vergonha e preocupação, esse conceito negativo de sermos lixo, resultante da indignidade com que fôramos convivendo durante décadas da redução da consciência nacional, concomitante com a redução do território nacional, e transformada gradativamente em consciência de classe, pela elevação a novos estatutos sociais dos que se souberam insinuar nas malhas tecidas pelo dinheiro fácil que sobre nós choveu, dos empréstimos não da nossa integração mas da nossa dependência preguiçosa de que grande parte de nós se aproveitou, sofregamente, obscenamente.
Sim, fizeram-se obras, bastantes obras, excessivas e inúteis por vezes, na megalomania de povo que fora sempre mísero e que, no desejo de se equiparar àqueles povos mentalmente e socialmente defendidos, se locupletava no esbanjamento consumista, num fartote materialista sem prevenção, nem receio de consequências, indiferente ao futuro, desprezador do passado.
E os Governos foram-se sucedendo, no deslumbramento do dinheiro fácil que levaria à corrupção, à defesa do interesse próprio, ao descalabro económico pela omissão de obras propícias à criação de riqueza, ao trabalho, ao emprego. Que levaria às discrepâncias sociais cada vez mais gritantes.
Lixo. Foi a classificação da Moody’s.
Mas o meu filho João explicou que, além de uma infâmia, se tratava de uma manobra americana desestabilizadora, para destruir o euro, começando pelos países da periferia… Porque também os Estados Unidos estão grandemente empenhados, embora com recursos para colmatar o défice. Não lhes convém a coesão europeia.
Poderá ser. Eu vejo-a como um acto desprezivelmente traiçoeiro. Porque reduziu antes de analisar, classificou sem ter em conta as promessas de um novo Governo que parece empenhado. E sério, talvez pela primeira vez.
Mas a Moody’s não deve saber desses dados ínfimos de um novo Governo de um país sem préstimo.


Uma agência pondo a pata, indiferente à miséria que cria.
Um dia apoiará canções beneméritas do estilo “We are the world”. Ou apoiará o envio de agasalhos e géneros alimentícios para sobrevivermos.
Porque os Estados Unidos são cimeiros na caridade.

terça-feira, 5 de julho de 2011

As línguas. A Língua.

Éramos quatro no café a comentar com satisfação sobre a boa ordem, correcção, educação, serenidade, elegância, com que decorrera o primeiro dia do Parlamento, sob a égide do novo Governo. Todas ficáramos seduzidas com a clareza de Passos Coelho, com a lucidez e ponderação dos demais ministros, que se apresentavam como pessoas empenhadas e dispostas a dar no duro para tentar resolver aquilo que muitos consideram insolúvel.
Todas estávamos fartas das touradas parlamentares anteriores, com um Primeiro-Ministro useiro e vezeiro no contra-ataque, na omissão de respostas, nas desculpabilizações por conta da conjuntura internacional, e nacional devida ao governo anterior que Jorge Sampaio demitira – o de Santana Lopes – feito de muitas trapalhices, é certo, mas menos do que o de Sócrates que Sampaio apadrinhou, sem que ninguém o responsabilize hoje por este caos que o seu neófito criou. Fartas do discurso de Sócrates, simultaneamente enfático de realizações e promessas, em artimanhas linguísticas de que se verificava posteriormente a falsidade. Fartas da ocultação da verdade, da falta de resposta às acusações sobre as diversas fraudes, da oratória de convicção, semeando, sem pudor, falsa esperança, mesmo após a constatação progressiva do estado calamitoso das finanças nacionais.
As eleições provaram, contra as minhas expectativas, que a maioria dos portugueses se não deixara iludir. Apesar da rede socialista bem montada, com empregos e espórtulas para os familiares e amigos, com os poderosos impunes nos seus desmandos, que tanto contribuíram para o desabar do país.
Realmente, eu não contava que um povo, educado no servilismo e na grosseria do à-vontade familiar com que se dirigia ao leader ministerial, escolhesse outro, pessoa mais sóbria, ainda sem a rede poderosa que os continuadores de Sócrates, sérios e ameaçadores, prometem implicitamente manter, assim que os actuais percam o poiso. Porque o vão perder – os novos profetas da desgraça, que são os da rede poderosa, bem se esforçam por os fazer cair, em chufas e previsões sérias, que lhes dão as suas muitas leituras dos jornais e estudos estrangeiros, sobre os europeus periféricos, em vias de sair do euro.
Não, os novos profetas da desgraça não vão em dizeres como estes sensatos de um singrar por caminhos mais responsáveis, de escolhas por concurso e por mérito, independentemente de partidos, de mudanças num sentido de uma ponderação mais honrada, de promessas de trabalho e empenhamento.


Mas os outros, os que ainda acreditam na possibilidade de emenda, continuam a confiar, e a lembrar erros passados, no empenhamento do seu amor pátrio.
Vem isto a propósito do Acordo Ortográfico que deveria ser banido, como prioridade primeira, entre as muitas medidas primeiras de salvação nacional:

De um artigo do sociólogo Alberto Gonçalves, saído no Diário de Notícias, em 3 de Julho, extraio o seguinte passo:

«Ainda por cima, às vezes sai mais caro, em esforço e em dinheiro, aceitar as desgraças ditas inevitáveis do que impedi-las. Na questão do AO, por exemplo, parece-me menos complicado deixar as coisas como estão do que proceder à inutilização de toneladas de papel e à revisão de gigabytes de informação “virtual” em nome de um compromisso pateta e de enigmática serventia. Vasco Graça Moura, aqui no DN, já aludiu ao prejuízo material que o AO implica, ao tornar obsoletos manuais escolares, dicionários e livros em geral. Se o objectivo do Governo eleito fosse torrar fortunas em disparates a “implementação” do AO viria a calhar. Sucede que o momento é, ou assim nos garantem, de austeridade, por isso dói ver aumentos de impostos contrabalançados por desperdícios quantitativamente e simbolicamente desmesurados. Pior que tudo, além de tonto nos princípios e dispendioso nos meios, o AO é horroroso nos fins.”


Lembrei-me de um texto de Pedro Passos Coelho, publicado há pouco tempo, no blogue de Henrique Salles da Fonseca – “A Bem da Nação” – com a opinião de Passos Coelho sobre o mesmo AO, que julguei recente, e que por isso comentei com entusiasmo:

“Já tenho afirmado, em resposta a essa questão colocada por jornalistas, que o acordo que Portugal assinou há vários anos atrás (porque tal acordo já foi assinado) não representa nenhum benefício para a língua e cultura portuguesa, pelo que não traria qualquer prejuízo que não entrasse em vigor. De resto, não vejo qualquer problema em que o português escrito possa ter grafias um pouco diferentes conforme seja de origem portuguesa ou brasileira. Antes pelo contrário, ajuda a mostrar a diversidade das expressões e acentua os factores de diferenciação que nos distinguem realmente e que reforçam a nossa identidade. Aliás, considero míope a visão de que o mercado brasileiro de cultura passará a estar aberto aos autores portugueses em razão da homogeneidade da grafia, pois que o interesse desse mercado pela nossa produção só pode depender do real interesse pelas nossas especificidades e aí a suposta barreira do grafismo não chega a ser uma barreira, pode ser um factor de distinção que acentua o interesse pela diferença.
Pedro Passos Coelho”
Eis o meu comentário: (De Henrique Salles da Fonseca a 25 de Junho de 2011 às 16:48. Recebido por e-mail.):
Deus abençoe este homem que, com estes dizeres, semeou esperança nos corações daqueles que pensam exactamente o mesmo. Será que podemos manter a ilusão de que é possível o recuo num processo transformacional da nossa língua segundo um documento que muitos provaram que provém de idiotas para idiotas?
Berta Brás”

É de 2008, o texto de Passos Coelho. Será que pode manter as suas convicções? Será que pode fazer inverter um processo de esbulhamento primário à própria alma de um povo que tem uma língua antiga, língua mãe de outras línguas e que se deixa afundar na vileza de um AO subserviente e inútil, por imposição de factores económicos que aparentemente servem apenas para rebaixar, desprezando nexos ideológicos de parentescos antigos que os outros países de origem clássica altivamente mantêm?
Mas, sim, Deus abençoe estes novos governantes, num caminho iluminado.

sexta-feira, 1 de julho de 2011

Joanna: “Memória do «Livro do Desassossego»”

Joanna tem 24 anos, 80 menos do que a sua bisavó materna, nascida no mesmo dia, há 104 anos, minha ilustre mãe, da qual a minha sobrinha (segunda) parece ter herdado traços de coragem e vivacidade mental, como já eu o notara na sua mãe, minha sobrinha (primeira), ao compará-la com uma foto de moçoila decidida, que tenho da sua avó.
Joanna foi uma bonita criança, nascida nos Estados Unidos, excelente aluna sempre, transformou-se numa figura esbelta e brilhante, olhos claros e cabelos compridos e louros a condizer, duma suavidade de fala escondendo muito da ironia que ela encontrou naquele escritor sobre o qual fez o seu “Mémoire de Master I”, numa Escola Superior em Paris – Fernando Pessoa e o seu “Livro do Desassossego” – “La mise en scène, l’Ironie, Le Jeu dans Le Livre de l’Intranqullité de Fernando Pessoa”.
Um livro que se lê e se relê devagar, saboreando a clareza e elegância do seu discurso e simultaneamente a expressividade de uma organização interna que se distribui por vários núcleos temáticos:
Introduction.
Intranquillité: Um Livre Iconoclaste – Le Livre – Le Personnage: Bernardo Soares – Le Livre inachevé: un lieu de liberté.
L’Ironie: L’ironie ou le chemin du dédoublement de la conscience: un programme esthétique. À qui s’adresse-t-il? Mise en scène du soi, de la constellation hétéronymique et des autres.
L’écriture – une mise à distance?
L’Empire du Rêve – Les effets d’humour. Renversement de la conscience tragique. L’art de rêver.
Conclusion.
Pelo conjunto dos tópicos de análise, detectamos uma orientação segundo parâmetros que todos eles convergem em dados de clivagens do mundo pessoano que já observáramos nos vários “Pessoas” – ortónimo e heterónimos – e que este “Livro do Desassossego”, de uma composição prolongada ao longo dos 22 anos da sua vida literária – de 1913 a 1935 – escrita em variados papéis guardados na arca pela família, acentua, nas suas frases soltas que, partindo das inspirações do momento, se dispersa por núcleos de mundos do eu e do não eu, como refracções de luz que se multiplicam ao sabor do instante, em risos de mutabilidade. Daí que sejam a ironia, o humor, as características que mais se põem em evidência, no desassossego do seu jogo de escrita, mau grado o sentimento também acentuado de um profundo sofrimento que resulta das suas lutas íntimas de uma personalidade pessoana que, ele próprio, a cada passo se desdobra, se constrói e desconstrói, sempre desafiante, numa exacerbada provocação, fruto de uma inteligência que se reconhece orgulhosamente superior, numa época de niilismo nietzshiano, de não reconhecimento de Deus, ele próprio, Pessoa, se assumindo como criador, ou, pelo menos como mediador (cf. Pessoa, “Emissário de um rei desconhecido / Eu cumpro informes instruções de além… Já viram Deus as minhas sensações”).
Assim, a Introduction que se inicia por uma citação: O começo das “Viagens na minha Terra” de Garrett, no qual este faz a apologia d’ “este clima, este ar que Deus nos deu” apelativo de um passeio, ao menos até ao quintal, do próprio Xavier de Maistre que se limitou, no seu livro, a uma viagem à volta do seu quarto. (Garrett, contrariamente, alargaria o seu trajecto até Santarém e de passagem narrando, entre variadíssimos assuntos do seu muito saber, uma romanesca história cujo protagonista Carlos, alter ego de Garrett, desempenhará um papel de destroçador de corações, entre os quais o da frágil Joaninha, sua prima reencontrada).
Mas não se trata de qualquer paralelo caracterológico daquele com um Bernardo Soares incapaz de sentir sem racionalizar – (cf. Pessoa “O que em mim sente está pensando”) - (o que Joanna apontará no momento próprio da sua tese), que pretende esta escolha do excerto garrettiano introdutório. Ele serve, de facto, para fazer contrastar um clima português visto através de duas sensibilidades dimensionadas segundo vectores de oposição: uma mais realista e extrovertida que aprecia objectivamente cores e cheiros e sabores, “este ar que Deus nos deu, onde a laranjeira cresce na horta, e o mato é de murta”; outra dentro da sua percepção fragmentada de uma realidade simultaneamente física e psicológica, de um discurso de “impressões sem nexo, nem desejo de nexo”, que, por consequência traça de Lisboa uma imagem cinzenta e fria, à maneira de Baudelaire:
Le ciel couvert, qui difracte la lumière, place Pessoa près de Baudelaire, qui, lui aussi, décrit dans son Paris en mutation, un ciel laiteux le jour et dépourvu d’étoiles la nuit. Les deux poètes préfèrent, chacun dans leur ville respective, le moment du crépuscule, celui auquel s’identifient le plus leurs réalités intérieures – le desassossego et le spleen.” (“Mémoire”)
Uma estética, em ambos, governada pela imaginação, pelo sonho em Pessoa:
“L’univers de Bernardo Soares est fait d’images réduites et de signes parfois microscopiques, car son contact avec l’extérieur est restreint. Mais dans chaque infime détail il peut voir l’infini, grâce à l’intense analyse des sensations et à un grand pouvoir d’imagination.” (“Mémoire”)
Daí que o próprio título – “Livro do Desassossego” – seja também ele marcado pela ironia – um “desassossego” (neologismo de Pessoa), que levando à descontinuidade, à dispersão, ao inacabado, dificilmente poderá caber na denominação geralmente adoptada de “livro”, como obra ordenada e encadernada com fins precisos.
Todavia, no seu próprio contra-senso, esse título contém todo um programa de escola – a escola do primeiro modernismo, marcada pela ruptura, pela contestação dos valores literários e plásticos tradicionais dos inícios do século XX, pela subversão – “le livre de l’Intranquillité est un concept qui parvient à capter et à concentrer les forces de la modernité esthétique du XXème siècle naissant: l’inachevé, l’insignifiant, le fragmentaire.” (“Mémoire”)
E é na consciência de uma “grandeza infinita” e de uma “miséria infinita”, como contingências da condição humana, que nasce o sentimento do Absurdo e o sentido do humor na perspectiva do escritor, que criará o seu estilo “immense et multiple, propre à quelqu’un qui entrevoit l’infini de sa fenêtre sur la rue”. (“Mémoire”)

Segue-se o capítulo “L’Intranquillité: Um Livre Iconoclaste” iniciado por excerto do poema de Pessoa “Liberdade”:Ai que prazer / não cumprir um dever. / Ter um livro para ler / E não o fazer! … O sol doira sem literatura”.

E, sobre o “Livro” se apontam o estado depressivo, a melancolia, a tristeza, como sentimentos expressos pelo narrador Bernardo Soares e que são fruto da sua natureza hipersensível, “dont les regards lucides sur lui-même se multiplient par des effets de miroir” ("Mémoire"). E do sentimento do absurdo, comum a outros heterónimos, com especial relevo para Ricardo Reis no sentido do efémero, absurdo resultante também do sentimento da banalidade quotidiana, surgem o cansaço, o tédio que levam ao sonho e à inacção e à convicção do falhanço, como em Pessoa, em Álvaro de Campos (p. ex. “Tabacaria”), em Caeiro (“Quem me dera que eu fosse o pó da estrada”), ou o próprio poema “Liberdade”, encimando estes conceitos de cansaço perante a inutilidade da acção.
Um livro cujo conteúdo remete muitas vezes para a sua própria correspondência (“Correspondência”) onde se define como vivendo em estado depressivo:
O meu estado de espírito actual é de uma depressão profunda e calma. Estou há dias, ao nível do Livro do Desassossego” Carta de 14/10/1914), O meu estado de espírito obriga-me agora a trabalhar bastante, sem querer, no Livro do Desassossego. Mas tudo fragmentos, fragmentos, fragmentos.” (Carta de 19/11/1914 )”… (“Mémoire”)
Sendo, pois, em parte, um livro autobiográfico, embora sem uma sucessão temporal linear visto que se trata de uma autobiografia sem acontecimentos, ele está centrado no jogo de uma escrita de paradoxo acompanhando o jogo de um pensamento de ironia.
“Como há quem trabalhe de tédio, escrevo, por vezes, de não ter que dizer”. (L. D.)
E o confronto com textos do mundo pessoano, facilmente detectáveis, provoca a seguinte conclusão, sobre este livro de “bastidores” justificativo das suas diferentes “máscaras”:
Le Livre de l’Intranquillité serait ainsi une sorte de coulisse de toute la dramaturgie pessoenne, retranscrite en prose. Cela nous amène à formuler deux hypothèses, non totalement contradictoires: ou bien ce texte se situe à un degré moins élevé de fiction, (aproximando-se das "Confissões" de Rousseau) ou bien il est issu d’un dédoublement du sujet qui va encore plus loin”, numa prosa verdadeiramente irónica, alimentada pela “ironie amère de Pessoa, qui nous livrerait des confessions totalement fictives.” (“Mémoire”)

“Au contraire de Rousseau, Soares n’a aucun ideal de sincérité, bien au contraire, il nous entretient dans son goût (ou peut-être une fatalité à laquelle il ne peut pas échapper) du paradoxe, de l’illogique, du trompeur. De plus, il n’a rien à avouer de sa vie, banale comme celle de n’importe qui. Ce qu’il nous raconte enfin, c’est l’histoire de sa propre écriture, cette création qui, finalement, est la seule expression, la seule concrétisation de sa vie personnelle. (“Mémoire”)

Le Personnage – Bernardo Soares
A publicação do Livro do Desassossego, numa primeira edição de 1982, veio desestabilizar conceitos já conclusivos sobre a interpretação do universo pessoano na sua multiplicidade, com a criação de uma obra em prosa como “une découverte posthume de sa modernité, et une des plus vives manifestations de son génie”, o seu narrador Bernardo Soares ocupando o estatuto de semi-heterónimo, segundo Pessoa, na Carta a Adolfo Casais Monteiro de 13 de Janeiro de 1935 sobre, entre outros motivos, a génese dos seus heterónimos: “É um semi-heterónimo porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela”:
“Cet aide-comptable qui vit et travaille dans la seule rue de la Baixa, au centre de Lisbonne – rua dos Douradores – est un individu anonyme, banal, effacé … ayant un nom assez commun, Bernardo Soares, qui exerce le modeste métier d’aide-comptable à Lisbonne…”
(“Mémoire”)

E prossegue uma longa análise entremeada de excertos do Livro sobre esta personalidade banal, solitária e apagada, que um retrato conjunto com os empregados da firma mais contribui para se anular, fisicamente: “A minha cara é inexpressiva nem tem inteligência, nem intensidade, nem qualquer outra coisa, seja o que for, que a alce da maré morta das outras caras.” ("L. D.")
Bernardo Soares est un des personnages qui ont opéré le basculement du modèle du héros tragique dans la modernité: il traverse la vie plus ou moins indifféremment, son existence au-delà de l’entreprise dans laquelle il travaille n’est qu’intérieure, et même plongé dans son intériorité la plupart du temps, il s’échappe à lui-même. Il se place hors de la vie parce qu’il est toujours en train de s’analyser minutieusement, en devenant étranger à tout ce qui l’entoure. Il est un spectateur de lui-même, et, par analogie et généralisation de sa démarche, de la vie intérieure des hommes: (“Mémoire”)

«A vida prejudica a expressão da vida. Se eu vivesse um grande amor nunca o poderia contar.»
(L. D.)
Uma identidade flácida, mutável, contraditória, que reivindica uma alteridade absoluta, o poder ser outro, num mundo de evasão, de fuga à prisão do ser que lhe permitem a recusa do acabado, da finitude, justificando o seu estilo fragmentário.
E assim, oscilando entre a consciência da sua nulidade como pertencendo aos anónimos que povoam o seu Livro – a costureira, o barbeiro, o homem da tabacaria, os passantes - e o orgulho de pertencer aos génios da humanidade – Milton, Shakespeare, Dante – torna-se uma personagem “intervalar”:
C’est un personnage intervallaire, un homme-crépuscule: il se situe entre le quotidien et le rêve, la conscience et l’inconscience, entre le corps et l’esprit, entre la sensation et la pensée, entre un “narcissisme démésuré” (Françoise Laye) et la dépersonnalisation, entre l’éternité de l’écriture et la hantise de se voir disparaître dans le passage du temps, entre l’immanence et la contingence”. (“Mémoire”)

Daí que seja o humor que, permitindo-lhe assumir uma tal multiplicidade de facetas, constitua a característica fundamental neste seu jogo de máscaras, que simultaneamente o situam no vanguardismo iconoclasta do primeiro modernismo português, para além da sua integração no universo nietzshiano, abolidor de Deus, que lhe permite assumir um papel de livre criador:
“Il ne cesse de se dissoudre, dans les autres, dans le temps, dans la pensée et le rêve, dans les possibles. Après “la misère infinie” d’un monde sans Dieu tel que l’éprouvé par Soares dès le début du Livre, vient le triomphe du génie individuel sur les règles de grammaire et de syntaxe (les anciennes divinités de la littérature…): (“Mémoire”)
Os Deuses são uma função do estilo”.("L. D.")

Le livre inachevé: un lieu de liberté
“Cette oeuvre manifestement incomplète n’est jamais limitée par sa finitude. Elle reste un lieu de liberté pour son auteur, un lieu où il peut trouver une place pour chaque nouveau texte, chaque nouvelle idée, le lieu où il pouvait recommencer lécriture sans jamais l’achever.”…
“D’une certaine manière nous pouvons dire que “Le Livre de l’Intranquillité” est une polyphonie, concept opposé à celui de monologue – non à travers plusieurs voix mais une seule qui adopte plusieurs points de vue, qui dialoguent entre eux.”
(“Mémoire”)

E é este ajudante de guarda-livros que, na sua alternância de estados psíquicos, elege Lisboa como o espaço vital do seu mundo de escrita sensacionista, de diversão lúdica da linguagem, no seu jogo humorístico já citado:
«Se houvesse de inscrever, no lugar sem letras de resposta a um questionário, a que influências literárias estava grata a formação do meu espírito, abriria o espaço ponteado com o nome de Cesário Verde, mas não o fecharia nele sem inscrever os nomes do patrão Vasques, do guarda-livros Moreira, do Vieira caixeiro de praça e do António moço do escritório. E a todos poria, em letras magnas, o endereço chave LISBOA.» ("L. D.")

L’IRONIE
L’ironie ou le chemin du dédoublement de la conscience:
Un programme esthétique
Tão intensa e labiríntica é a rede de vias de um percurso a cada passo interrompido em todos os sentidos, no seu jogo de desdobramento da consciência e pondo em causa as noções de realidade e de verdade, que dir-se-ia ela consiste numa constante busca do absoluto.
E o desdobramento da consciência – a que escreve e a que se vê escrever – é, juntamente com a ironia, a capacidade que distingue o homem superior do homem vulgar, que, este, não se questiona:
«Da nascença à morte, o homem vive servo da mesma exterioridade de si mesmo que têm os animais. Toda a vida não vive, mas vegeta em maior grau e com mais complexidade. Guia-se por normas que não sabe que existem, nem que por elas se guia, e as suas ideias, os seus sentimentos, os seus actos são todos inconscientes – não porque neles falte a consciência, mas porque neles não há duas consciências.» ("L. D.")
L’intranquillité est la critique des certitudes, ou le constat de la fin des croyances, en Dieu, dans l’humanité, dans les idéaux enfin, laisse un espace vide de manque ou d’incertitude”: (“Mémoire”)

«Tenho as opiniões mais desencontradas, as crenças mais diversas… Vou a falar e falo eu-outro. De meus só sinto uma incapacidade enorme, um vácuo imenso, uma incompetência ante tudo quanto é a vida. (L.D.)
Comment trouver une unité, et donc une identité, dans des consciences éparpillées parmi plusieurs, souvent contradictoires, parfois incompatibles? Où il n’y a plus de distinction entre vérité et mensonge, le sens des concepts et des termes est secoué par cette tempête qui brise le príncipe de l’identité, qui finit par sombrer dans l’angoisse existentielle éprouvée et exprimée par Soares.” (“Mémoire”)

A ironia é a sua tábua de salvação, ao fazer vacilar as certezas da verdade pelo efeito de uma contradição entre o sentido implícito e o sentido explícito dum enunciado, fazendo compreender ao interlocutor o contrário do que se afirma.
“C’est le contraire de la littéralité, et en ce sens elle s’approche de la littérature.” ("Mémoire")
Mas a ironia resulta igualmente da cumplicidade criada entre o narrador Soares e os seus interlocutores; ou do afastamento entre a dimensão do sonho – infinitamente grande – e o infinitamente medíocre do quotidiano.
C’est la sensation de l’échec, très présente dans ses écrits, qui dans le caractère pluriel de notre personnage, est associée à la gloire de pouvoir tout rêver”.
“Néanmoins, la conscience de l’écart entre les mots et les choses constitue pour Bernardo Soares un véritable champ de possibles esthétiques, imprégné qu’il est à la fois d’une sensibilité moderne et d’une vision critique de la modernité.”
(“Mémoire”)
Critica uma concepção da arte – da escrita – como cópia da realidade interior ou exterior. Adepto da arte aristocrática, e no seguimento da filosofia de Nietzsche, condenatória da democracia, condena a democratização da arte trazida pela escola romântica, no seu sentimentalismo sincero mas inferior, fechado no casulo de uma só consciência.
«A ruína dos ideais clássicos fez de todos os artistas possíveis, e portanto maus artistas. Quando o critério da arte era a construção sólida, a observância cuidada de regras – poucos podiam tentar ser artistas, e grande parte desses são muito bons. Mas quando a arte passou de ser tida como criação, para passar a ser tida como expressão de sentimentos, cada qual podia ser artista, porque todos têm sentimentos.» ("L. D.")
Condena, assim, a imagem do espelho no seu significado de meio visual de definição da realidade, abolindo a imaginação, e defende a dualidade ou mesmo a multiplicidade da verdade, segundo os ideais clássicos gregos, na sua arte de fingir com que Bernardo Soares se identifica.
«A mais vil de todas as necessidades – a da confidência, a da confissão. É a necessidade da alma de ser exterior. Confessa, sim; mas confessa o que não sentes. Livra a tua alma, sim, do peso dos seus segredos, dizendo-os; mas ainda bem que os segredos que digas nunca os tenhas tido. Mente a ti próprio antes de dizeres essa verdade. Exprimir é sempre errar. Sê consciente: exprimir seja, para ti, mentir.» ("L. D.").
(O poema de Pessoa “Autopsicografia” - “O poeta é um fingidor….”, enquadra-se, naturalmente, nestes conceitos de fingimento subjacentes à criação artística, expressos no “Livro do Desconcerto”).
Ao destruir constantemente os seus postulados, novos postulados cria, toda a expressão comportando sempre a mentira, até mesmo a que constata a verdade:
Nous nous confrontons donc à une multiplication de dédoublements qui nous conduit à une aporie insoluble, et nous laisse finalement face au vide.” ("Mémoire")



À qui s’adresse-t-il?
Mise en scène de soi, de la constellation hétéronymique et des autres
As suas ideias sendo múltiplas, como o é ele próprio, a sua escrita cria uma cumplicidade com os seus leitores, com os seus heterónimos, em diálogo permanente, consigo próprio também que constantemente pretende ser outro, e num jogo de ironia “qui ne pourrait subsister dans la pure solitude”. Daí que utilize a interrogação, o imperativo, escrevendo muitas vezes como se respondesse a perguntas:
«Que é viajar, e para que serve viajar? Qualquer poente é o poente; não é mister ir vê-lo a Constantinopla. A sensação de libertação que nasce das viagens? Posso tê-la saindo de Lisboa até Benfica, e tê-la mais intensamente do que quem vá de Lisboa à China, porque se a libertação não está em mim, não está para mim, em parte alguma.» ("L.D.")
E o paralelo com o poema de Álvaro de Campos ilustra a análise feita em prosa por Soares: "Afinal a melhor maneira de viajar é sentir. / Sentir tudo de todas as maneiras” que, embora preceito de escola – o sensacionismo – é bem expressão de uma personalidade absurdamente dividida, numa hiperestesia de extraordinária dimensão.
La forme dialectique adoptée par Pessoa représente une sensibilité qui tient compte des autres sensibilités. La mise en scène permise par un langage souvent “emphatique” inclue aussi le lecteur, le public, qu’il met à l’épreuve par la mise en question du sens commun, de la bonne pensée, et même, pourrait-t-on dire, de la Vie (telle qu’il l’écrit avec majuscule) qui n’est que la Réalité regardée par chaque individu avec les yeux de sa propre expérience. Ces idées sont clairement dirigées vers quelqu’un, comme un personnage du théâtre qui s’adresse et s’affirme devant un public: il parle de manière exclamative, ou en soufflant, ou avec réticence, ou plein de certitude… Ce jeu théâtral se déroule dans l’univers de Pessoa, traversé par l’opposition de la pensée et de l’écriture, représentées chacune par un ou plusieurs hétéronymes, qui sont subtilement utilisés dans le Livre. Sa démarche faite de questions et de réponses séparées par des passages n’ayant rien à voir constitue une intelligente provocation.” (“Mémoire”)
Um público, pois, constituído pelos próprios heterónimos (V. carta a Adolfo Casais Monteiro sobre a génese dos seus heterónimos: «Se algum dia eu puder publicar a discussão estética entre R. Reis e Á. De Campos, verá como eles são diferentes, e como eu não sou nada na matéria).»
Público constituído também pela sua ideia de leitor, onde ele situa as convenções e os preconceitos, - o “vulgo” – que poderia identificar-se com as personagens quotidianas do Livro: o empregado da tabacaria, a lavadeira, o barbeiro, o criado do café, a costureira, na ambiguidade da sua descrição, partilhando humildemente a sua condição, idêntica à do gato e do cão, na satisfação inconsciente que rege as suas vidas, mas por vezes irmanados aos grandes génios: «do outro lado estamos nós – o moço de fretes da esquina, o dramaturgo atabalhoado William Shakespeare, o barbeiro das anedotas, o mestre-escola John Milton, o marçano da tenda, o vadio Dante Alighieri (…)» (L. D.). Uma fraternidade que inclui as pessoas com quem trabalha, “patrão Vasques”, ou “o Moreira”, talvez como ironia ou como provocação.



“Provocation élargie par l’ironie mise au service d’un renversement du sens commun, des idées reçues, de l’orthodoxie comme manière unique de bien penser, donc forcément limitée et incomplète, vu qu’elle se fonde sur l’unicité de l’être et de la pensée. La déconstruction de la bonne pensée est partie integrante, sur le fond comme sur la forme, de son écriture qui adopte le paradoxe, la contradiction, l’antithèse, et tous ces outils de l’intellect étrangers à la pensée orthodoxe.” (“Mémoire”)
A ironia como marca de superioridade de homem de cultura, detentor de duas consciências e de um complexo de inferioridade, pois que, ao contrário destes seres felizes, ele não o é.
“Dans un autre passage, très parlant et drôle, qui évoque ces hommes “inconscients”, l’ironie révèle un humour moqueur, mais fraternel, presque teinté d’admiration (puisqu’il compare ses semblables aux dieux), à la fois:” (“Mémoire”)
«Mas como a sua verdadeira vida é vegetativa, o que sofrem passa por eles sem lhes tocar na alma, e vivem uma vida que se pode comparar somente à de um homem com dor de dentes que houvesse recebido uma fortuna – a fortuna autêntica de estar vivendo sem dar por isso, o maior dom que os deuses concedem, porque é o dom de lhes ser semelhante, superior como eles (ainda que de outro modo) à alegria e à dor.
Por isto, contudo, os amo a todos. Meus queridos vegetais!»
("L. D.")
Mas, como a “ceifeira” de Pessoa, estes seres, desprovidos duma verdadeira sensibilidade, não podem tomar consciência da sua infelicidade, ao contrário de Soares, de Pessoa, limitando-se a ser simplesmente felizes, como os deuses.
Na sua “estética do fingimento”, os sentimentos mais poderosos como a dor e o sofrimento sofrem uma metamorfose através de uma recriação dramática que espera a análise do leitor:
«Em mim todas as afeições se passam à superfície, mas sinceramente. Tenho sido actor sempre e a valer. Sempre que amei, fingi que amei, e para mim mesmo o finjo.» ("L. D.")
Um eu estilhaçado, dramaticamente, teatralmente, na origem dos seus heterónimos.
“C’est pour ça que nous retrouvons la dramaturgie chez Soares, bien qu’elle ait une place un peu à part dans la constellatin pessoenne, étant plus subtile et profonde: on y entrevoit les causes, les processus, comme dans des coulisses où courent les acteurs, les auteurs et les maquilleuses, mais où chaque élément n’est compréhensible qu’à la vision du tout, du spectacle qui a lieu devant le public, devant les lecteurs de l’oeuvre complète.” (“Mémoire”)

L’écriture – une mise à distance?
Numa alternância de estados psíquicos, que vão da inacção epicurista à inquietação, para concluir no vazio, no non-sens de tudo, vazio é também o lugar dos afectos, concluindo Soares na sua “incapacidade de amar” na sua “secura de coração”: «Vale mais para mim um adjectivo do que um pranto real da alma». ("L. D.")
L’amour comme comblement de la distance par la contemplation de l’objet aimé est inconcevable pour Bernardo Soares. Et c’est peut-être le mouvement par excellence de la prose de Bernardo Soares: revenir à une distance qu’il maintient toujours vis-à-vis de la vie. La distance imposée par son fameux dédoublement de la conscience. Il ne peut pas s’arrêter d’analyser le moindre événement, la plus petite sensation, vivant comme un étranger ethnographe dans la rue même où il habite - «Estou só no mundo. Ver é estar distante. Ver claro é parar. Analisar é ser estrangeiro» ("L. D."). La nature de Soares lui fait analyser la vie à la place de la vivre. Sa vie, c’est la distance créée par l’analyse de la myriade d’impressions que son esprit sensible recueille du monde: (“Mémoire”)

«Em mim foi sempre menor a intensidade das sensações que a intensidade da consciência delas. Sofri sempre mais com a consciência de estar sofrendo que com o sofrimento de que tinha consciência.» ("L. D.")
O distanciamento efectua-se por intermédio do humor, contrário a uma relação trágica com a vida. A sua capacidade de despersonalização dramática permite-lhe transformar o absurdo em obra de arte, dar uma forma ao caos, através da escrita, que para ele substitui a vida.
Il vit dans la discontinuité: être autre et écrire autrement à chaque jour. Dans un monde de personnalités changeantes, les concepts changent aussi, sans cesse, selon les points de vue et les postures. L’ironie correspond à une position épistémologique basée plus que dans le scepticisme, dans la relativité de la connaissance. L’ironie dissout les significations des concepts et de leus correspondances dans le langage”. (“Mémoire”)
A ironia, como essência da literatura, no seu distanciamento, funcionando como definição de literatura, com autores e leitores como personagens de ideologias diversas povoando o seu universo de ficção.

L’Empire du Rêve
Les effets d’humour
Entre os dois títulos acima, precedendo a análise que segue, a transcrição de um passo do “Livro do Desassossego”, que, no seu discurso de alegoria retrata um ser repartido entre o sentido das suas misérias e da sua genialidade:
«Afinal quem sou eu quando não brinco? Um pobre órfão abandonado nas ruas das Sensações, tiritando de frio às esquinas da Realidade, tendo que dormir nos degraus da Tristeza e comer o pão dado da Fantasia»
E é novamente do humor que trata este capítulo, como marca relevante da personalidade múltipla pessoana, resultante do facto de nenhuma das suas criações levar a sério nem a vida nem a obra, sendo que a vida é a obra.
C’est pourquoi nous nous prenons si souvent à sourire devant son ironie, et à rire parfois de l’absurdité de ses propos, ou même d’un franc humour noir. Plus nous passons de temps avec Pessoa, plus nous devenons sensibles aux composantes humoristiques de son “monde imaginaire”… “Faire dissoner, et ainsi dissoudre les certitudes d’une pensée unique, en survolant tous les points de vue à la hauteur d’un sourire ou d’un éclat de rire. La mise en scène comme dédoublement perpétuel, le théâtre dans le théâtre, dégage de vrais effets du comique.” (“Mémoire”)
Seguem-se exemplos:
- De humor absurdo: «Querer ir morrer a Pequim e não poder é das coisas que pesam sobre mim como a ideia dum cataclismo próximo» ("L. D."): “Cette déclaration semble absurde, mais nous pouvons aussi la comprendre comme une moquerie supplémentaire de Pessoa à l’encontre de la croissante société de consommation qui crée des envies et des frustations insensées. Mais sitôt après, nous voyons, non sans une certaine ironie, qu’acheter des choses inutiles a aussi l’avantage d’être une manière d’acquérir des petits rêves et de revenir ainsi à l’enfance.” (“Mémoire”)
E o efeito cómico resulta, pois, não só do exagero da afirmação feita, mas também do contraste entre o sensato e o absurdo conjuntos, dos seus postulados.
A linguagem torna-se, assim, a verdadeira manifestação não só do génio inventivo como da existência de Bernardo Soares, única distracção da sua vida, mesmo sentindo-se em estado depressivo ou melancólico, defendendo uma estética do fingimento, da ficção, jogando com os vários efeitos do discurso, ao nível do significante, dos sons, ou do significado, como jogo metafórico, como jogo humorístico.
Na sequência da afirmação tão brutalmente pessimista de Nietzsche “L’homme souffre si profondément qu’il a dû inventer le rire”…l’ “humour dans cette oeuvre est surtout négatif, même s’il n’est pas partout de l’humour “noir”. Ainsi, il déclare vouloir tout subordonner à l’art, qui est ce qui demeure dans le temps, alors que la vie matérielle finit très vite:” (“Mémoire”)
«O ter tocado nos pés de Cristo não é desculpa para defeitos de pontuação. Se um homem escreve bem só quando está bêbado, dir-lhe-ei: embebede-se” ("L. D.")»
Avesso à ideia de metafísica, na sequência do Mestre Caeiro, (ou, como Álvaro de Campos em “Tabacaria”: (“A metafísica é uma consequência de estar mal disposto”), dentro da doutrina Nietzshiana de abolição de Deus, Soares erigiu o poder da escrita como ditadura a que é necessário submeter-se:
Le dire instaure une Vérité (qui, en termes pessoens, est paradoxalement une “vérité fictionnelle”). En quelques mots, nous passons du sacré, les pieds du Christ, au profane, l’enivrement, si nécessaire pour bien écrire.” (“Mémoire”)
Uma escrita assente, por vezes, na valorização do significante, como um discurso humoristicamente construído em jogo de sons, destituídas as palavras de um nexo significativo (de que o poema de Pessoa “Saudade Dada” é exemplo expressivo: “Em horas inda louras, lindas / Clorindas e Belindas, brandas, / Brincam no tempo das berlindas, / As vindas vendo das varandas, / De onde ouvem vir a rir as vindas / Fitam a frio as frias bandas….”)
Por outro lado, segundo o conceito freudiano da dissemelhança, como técnica do cómico, surge, por vezes, a justaposição de dois universos diferentes numa só percepção:
Escrevo como quem dorme, e toda a minha vida é um recibo por assinar.” ("L. D.")
Escrita - acção - associada ao sono – inacção: a escrita de Soares, próxima do sonho, da inacção; e a vida não moedável, comparada a um papel que confirma uma compra, embora sem valor por falta de assinatura: eis a sua vida sem sentido - quase sem identidade.
Ces contrastes extrêmes entre matérialité et abstraction, entre vide et infini, entre le plus grand et le plus mesquin, sont encore une facette de la volonté de Pessoa de renverser les postulats de certitude, de voir toujours au-delà. Parfois dans l’invraisemblance totale, donc comique”. (“Mémoire”)
É exemplo disso o passo do Livro de atribuição de uma alma às figuras artificiais – caso de uma chávena de porcelana que uma criada quebrou – para ele tão dotadas de existência e de vida como as figuras com quem se cruza na rua.
Un sens invraisemblable et plein d’absurdité, mais qui enrichit la vie d’un nouveau territoire: la nouvelle science de la psychologie des porcelaines. À nouveau deux univers dans une seule perception – il confond délibérément la vie avec la littérature. Si la vie est quotidiennement banale, la littérature est universelle et elle a de place pour l’infini. Pourquoi pas le contraire, si la vie réelle est la littérature? Cet infini est concrétisé par les dédoublements de fictions en série dans lesquels nous entraîne Soares: sa collection de tasses japonaises est imaginaire, ainsi que la domestique, ainsi que le salon où il converse avec des interlocuteurs imaginaires lorsque ce petit événement a lieu. Ce n’est pas seulement le sens et l’absurdité qui dégagent un effet humoristique, c’est aussi l’élévation de l’imagination à des degrés extraordinaires que n’atteignent d’habitude que les jeux des enfants, qui se perdent souvent dans le déploiement de l’imagination et de la feinte." (“Mémoire”)
Eis o passo de Soares: «Quando se quebrou uma chávena da minha colecção japonesa, eu soube que mais que um descuido das mãos de uma criada tinha sido a causa. Eu tinha estudado os anseios das figuras que habitam as curvas daquele serviço de louça; a resolução tenebrosa de suicídio que as tomou não me causou espanto. Serviram-se da criada, como um de nós de um revólver. Saber isto é estar além da ciência hodierna, e com que precisão eu sei isto!»
E nestes jogos de absurdo e de contradição, em que vive, Bernardo Soares se afasta da Realidade que exige, ao contrário, a ponderação, o sensato o pragmático:
«O absurdo salva de chegar apesar do tédio, àquele estado de alma que começa por se sentir a doce fúria de sonhar. (…) Absurdemos a vida.» ("L.D.")
E neste afastamento da moral comum, troça dos valores por ela aceites:
«Mas os termos “dever cívico”, “solidariedade”, “humanitarismo”, e outros da mesma estirpe, repugnam-me como porcarias que despejassem sobre mim das janelas. (…) Não posso considerar a humanidade senão como uma das últimas escolas na pintura decorativa da natureza.» ("L. D.")
(Compare-se com idêntica ironia, sem tanto desprezo implícito, todavia, no poema de Caeiro “Ontem à tarde o homem das cidades…”:Todo o mal do mundo vem de nos importarmos uns com os outros, /Quer para fazer bem, quer para fazer mal.”)
É a secura de coração (de Soares / Pessoa), pela incapacidade de amar com o sentimento, que dá lugar à via satânica do riso, no rastro da filosofia de Henri Bergson: “A insensibilidade acompanha geralmente o riso. O riso não tem maior inimigo que a emoção” tornando aquele que ri um “espectador indiferente” de “dramas que se tornam em comédia”… “O cómico exige uma anestesia momentânea do coração. Dirige-se à inteligência pura”.(“Le Rire”).
Baudelaire o dissera: “Le rire humain est intimement lié à l’accident d’une chute ancienne, d’une dégradation physique et morale” (“De l’essence du rire”).
Esta tomada de consciência da indiferença entre os homens, que em Pessoa é sempre uma dupla consciência, revela-nos um dos melhores exemplos de humor negro no Livro do Desassossego:
«Quando ontem me disseram que o empregado da tabacaria se tinha suicidado, tive uma impressão de mentira. Coitado, também existia! Tínhamos esquecido isso, nós todos, nós todos que o conhecíamos do mesmo modo que todos os que o não conheceram. Amanhã esquecê-lo-emos melhor. Mas que havia alma, havia, para que se matasse. Paixões? Angústias? Sem dúvida… Mas a mim, como à humanidade inteira, há só a memória de um sorriso parvo por cima de um casaco de mescla, sujo, e desigual nos ombros (…) Pensei uma vez, ao comprar-lhe cigarros, que encalveceria cedo. Afinal não teve tempo para encalvecer. É uma das memórias que me restam dele. Que outra me haveria de restar se esta, afinal, não é dele mas de um pensamento meu?» ("L. D.")
A tragédia convertida em riso, de um suicídio de alguém de quem se não suspeitara que tinha alma e cuja recordação ficara circunscrita, para o narrador, a um casaco sujo e mal talhado ou a um pensamento irrisório sobre uma calvície precoce que não chegaria a verificar-se, pontua bem o exemplo da via satânica na escrita do narrador Soares, na junção obscena do trágico com o grotesco.

Renversement de la conscience tragique



Desta forma, pela ironia, Bernardo Soares vai demonstrando a sua ausência de empatia e a sua incomunicabilidade com os outros, espectador dos gestos e destruidor dos mitos que poderiam dignificar o homem, como o humanitarismo, que não é senão uma embriaguez enganadora:
«Vi ali grandes movimentos de ternura, que me pareceram revelar o fundo de pobres almas tristes; descobri que esses movimentos não duravam mais que a hora em que eram palavras, e que tinham raiz – quantas vezes o notei com a sagacidade dos silenciosos – na analogia de qualquer coisa com o piedoso, perdida com a rapidez da novidade da notação, e, outras vezes, no vinho do jantar do enternecido. Havia sempre uma relação sistematizada entre os humanitarismos e a aguardente de bagaço, e foram muitos os grandes gestos que sofreram do copo supérfluo ou do pleonasmo da sede.» ("L. D.")
«Achei sempre fútil considerar a vida como um vale de lágrimas: é um vale de lágrimas sim, mas onde raras vezes se chora. Disse Heine que, depois das grandes tragédias, acabamos sempre por nos assoar. Como judeu, e portanto universal, viu com clareza a natureza universal da humanidade.» ("L.D.")
Encarando a vida como um espectáculo, ele próprio também em palco, à distância de todos, na secura dos seus sentimentos, na insensibilidade perante o sofrimento, tudo desconstrói até chegar ao nada, pela constatação de que “tudo é absurdo”.
Le vide intérieur du personnage est preuve d’un vide infiniment plus grand: l’absence de Dieu et la conscience intime de l’absence de sens. Un Cosmos renversé.
Que nous reste-t-il alors?”
(“Mémoire”)


L’art de rêver
O vazio dos afectos, a ausência de toda a divindade, a ausência de si, a irrealidade dos outros, o sentimento da solidão e de ser diferente, a abolição do mistério com o desenvolvimento da ciência e da técnica, tudo isso que o situa no modernismo e se traduz em descrença e desencanto, justifica uma arte fragmentada, cujo inacabado lhe dá perspectivas para um sentimento de infinitude, que a janela de Soares, aberta no seu quarto da Rua dos Douradores simboliza, funcionando como alavanca entre a exterioridade do mundo e a interioridade das suas várias consciências, nas contradições que capta, numa imaginação que se desdobra.
«Sim, esta Rua dos Douradores compreende para mim todo o sentido das coisas, a solução de todos os enigmas, salvo o existirem enigmas, que é o que não pode ter solução. (…) Se eu tivesse o mundo nas mãos, trocava-o, estou certo, por um bilhete para a Rua dos Douradores. (…) O Ganges passa também pela Rua dos Douradores. (…) Do meu quarto andar sobre o infinito, no plausível íntimo da tarde que acontece, à janela para o começo das estrelas, meus sonhos vão, por acordo de ritmo com a distância exposta, para as viagens aos países incógnitos, ou supostos, ou somente impossíveis. Mas enfim, também há um universo na Rua dos Douradores. Também aqui Deus concede que não falte o enigma de viver.» ("L. D.")
L’imagination, qui dans le sens littéral désigne la capacité à former des images, permet d’affronter le temps, elle atténue et adoucit l’angoisse du passage du temps. C’est l’imagination qui ouvre la pensée vers les innombrables possibilités de création de quelque chose qui, au premier regard, peut paraître n’être qu’un rien.” ("Mémoire)"
«Qualquer coisa, conforme se considera, é um assombro ou um estorvo, um tudo ou um nada, um caminho ou uma preocupação. Considerá-la cada vez de um modo diferente é renová-la, multiplicá-la por si mesma. É por isso que o espírito contemplativo que nunca saiu da sua aldeia tem contudo à sua ordem o universo inteiro. Numa cela ou num deserto está o infinito
» ("L. D.")
“C’est dans le passage à l’écrit qui s’effectue cette alchimie: la transformation des miettes du vécu en absolu.” ("
Mémoire")
De uma vida real apagada, é pelo sonho, pela imaginação que ele se engrandece, partindo da desconstrução para uma reconstrução, que, jamais acabada, no seu todo fragmentado, mostra as infinitas possibilidades de um universo situado entre a consciência e a inconsciência do sujeito.

Conclusion
Um livro em movimento: uma obra aberta, de leituras diferentes, conforme as sensibilidades dos leitores.
C’est un livre fascinant pour la jeunesse, presque un livre initiatique. Par sa forme, proche du journal intime si souvent rédigé par les adolescents, et par sa démarche de mise en question généralisée à travers paradoxes et contradictions, il nous apprend à penser, à être critique et savoir aller au-delà de l’orthodoxie, il nous apprend ce qu’est l’ironie, et comment nous pouvons l’utiliser pour garder parfois la distance vis-à-vis de la vie.” (“Mémoire”)

Um livro que Joanna considera das mais belas prosas que alguma vez se escreveram em língua portuguesa.
…………………

Um trabalho cuidado, esta “Memória” sobre o livro de Bernardo Soares, que vai semeando autores e referências, e conclui, naturalmente, com bibliografia adequada – as obras de Pessoa (bibliografia primária), estudos sobre Pessoa (bibliografia secundária), entre os quais os de Eduardo Lourenço e a tradução por Françoise Laye, de “Le Livre de l’Intranquillité” seguida por Joana, na tradução dos excertos de Bernardo Soares, outros autores complementares, como bibliografia terciária.
Um livro – mais um, mas quão diferente! – este “Livro do Desassossego”, que tão rebuscadamente se apoia no velho conceito socrático do autoconhecimento como forma de alargamento do saber: “conhece-te a ti mesmo e conhecerás o Universo e os Deuses”.