domingo, 27 de fevereiro de 2011

O motivo de um projecto

-Vamos agora falar de coisas boas – diz a minha filha, na esplanada do café, sob um sol reparador.
Mostrei o costumado interesse pelos seus entusiasmos docentes. E logo ela explicou que a professora encarregada da educação sexual de uma turma sua de 11º ano já dera seis das doze horas impostas pelo Ministério, a partir deste ano, e esgotara o tema, recusando-se a continuar. Apelara para um sucessor, mas como ninguém se oferecera, provavelmente no receio da superioridade discente humilhante nesse capítulo de sexologia, a minha filha, com a alegria própria dos esforçados, lembrara aos colegas que poderia ser ela a prosseguir, retomando os temas (contidos no seu programa de Português) em algumas das suas anomalias a que a literatura de todos os tempos dera o necessário relevo - o incesto, o adultério - sendo que a homossexualidade e a pedofilia não estavam ainda grandemente registadas nas literaturas clássicas, tirando o Petrónio e o Marquês de Sade do nosso horizonte mais recuado.
Quanto ao tema do adultério, consciente ou inconsciente, pediu aos alunos que o explorassem no Auto da Índia, na própria Inês Pereira que não se eximira a tornar “cuco” o seu Pero Marques das segundas núpcias, n’ “Os Maias” - os arrebatamentos da condessa Gouvarinho - e provavelmente teriam mesmo ouvido sobre os desvarios da Luísa com o seu Primo Basílio… Quanto à pobre Madalena de Vilhena, do “Frei Luís de Sousa” poderiam sempre recordar o papel do destino na condução das tramas humanas e, eventualmente, relacioná-lo com a própria biografia de Garrett. O tema do incesto seria analisado nos irmãos de “Os Maias”, referido o da “Tragédia da Rua das Flores” entre filho e mãe …
O motivo de um projecto
E veio à baila o Rei Seleuco, a Fedra, o Édipo… Contei do meu livro emprestado para sempre – “La Machine Infernale” de Cocteau - que retomava o tema sofocliano, e logo a minha filha sugeriu que seria um bom título para o seu projecto, a máquina infernal significando esse mesmo destino a que os homens estão infalivelmente sujeitos, embora haja quem contrarie esses dizeres, na assunção dos seus actos, como o Orestes, em “As Moscas” de Sartre.
Temas apaixonantes, de facto, e eu logo alinhei, propondo-lhe, como elementos enriquecedores para os seus alunos, breves sínteses e excertos das ditas peças, como textos de apoio, talvez mais ordenados do que os que poderiam encontrar na Internet. Aceitou e propôs-me que os transcrevesse no blogue, onde poderiam ser úteis a quem quisesse pegar nesses temas, para lhes dar forma dramática, mais ou menos jocosa, como contava que os seus alunos fariam, ou para temas de debate ou expositivos…
Como o mundo do estudo pode ajudar a mocidade a ser mais criativa e alegre, como parece que o são os alunos daquela sua turma empenhada!
Eis os textos que ela lhes foi distribuindo, que não pretendem substituir-se a outras consultas, entre as quais, naturalmente, as da Internet. Textos que tive que separar, em postagens sucessivas -O Rei Édipo, Fedra, El-Rei Seleuco.

“Édipo Rei”, tragédia de Sófocles (Síntese, excertos):

(Uma tragédia – com exposição, conflito e desenlace, como estrutura interna - cuja trama se faz em perspectiva temporal de recuo, num suspense contínuo, de indícios ou pistas adensando-se, em flashbacks progressivos, do presente para o passado, gradualmente esclarecedor e incriminatório, mostrando o homem joguete das forças superiores do destino).
Personagens:
Édipo, um Sacerdote, Creonte, Coro dos Velhos Tebanos, Tirésias, o adivinho cego, Jocasta, um Mensageiro, um Servidor de Laios, um Mensageiro do Palácio
Uma praça, em Tebas, diante do palácio dos Labdacis

Exposição:
Prólogo
Édipo
aparece diante da assembleia suplicante dos Tebanos, para perguntar por que motivo estão reunidos com ramos e lamentações e espalhando incenso, diante do seu palácio.
O Sacerdote, ministro de Zeus, responde que a cidade, “sacudida pela tormenta, perece nas sementes da terra, nos gados, nos ventres das mães. Uma chaga caída do céu abrasa a cidade, é a Peste maldita.” Édipo já em tempos livrara Tebas, matando a Esfinge, devoradora de jovens. A assembleia suplicava uma nova intervenção de Édipo, para livrar a cidade da peste.
Édipo responde que, ninguém estando mais preocupado do que ele, já mandara o seu cunhado Creonte (irmão de Jocasta) ao santuário de Pythô (jogos Píticos) para que Apolo informe sobre o que ele deverá fazer.
Creonte chega e informa sobre o motivo da peste:
«Direi pois, a mensagem do deus; é sem equívoco; Febo encarrega-nos de extirpar da nossa terra a nódoa que ela alimenta; se a deixarmos crescer, ela tornar-se-á incurável.
Édipo: Por que purificação? De que espécie é a nódoa?
Creonte: É preciso banir os assassinos, ou resgatar o crime pelo crime, porque é sangue que põe a febre na cidade.
Édipo: De que crime quer o deus falar?
Creonte: Príncipe, Laios governava este país outrora, foi a ele que tu sucedeste.
Édipo: Disseram-mo, com efeito; mas eu não conheci Laios pessoalmente.
Creonte: Ele foi morto, e o deus manda-nos punir hoje sem rodeios os seus assassinos.
Édipo: Mas onde estão eles? E onde encontrar o rasto de um crime antigo? É muito difícil.
Creonte: Na própria terra, declarou o deus. O que se procura, pode-se encontrar; o que se negligencia escapa-nos.
Édipo: Foi na sua casa, no campo, ou fora das fronteiras que Laios encontrou a morte? »
Creonte responde que Laios, que fora consultar o oráculo ao estrangeiro, não voltara e que só um acompanhante regressara, dizendo que os assaltantes eram em quantidade, mas que o problema da Esfinge, “com os seus cantos insidiosos”, impedira os do palácio, na altura, de procurar resolver o enigma. Édipo dispõe-se a encarregar-se da questão:
“Pois bem, este mistério, eu o decifrarei… no meu próprio interesse abolirei esta mancha: quem quer que seja o assassino de Laios, ele já me condenou; prestar assistência ao defunto, é, pois, defender-me a mim mesmo" (ironia trágica).
Canto do Coro, invocando os Deuses, para dissipar o flagelo.

Conflito (quatro episódios seguintes):
Primeiro Episódio:
Édipo
faz ameaças contra o provável assassino de Laios, exortando os Tebanos a jamais lhe dar guarida e censurando-os por não terem resolvido o mistério do assassínio quando este fora perpetrado … “E eu, que sucedo a esse rei, eu que tenho como esposa a sua esposa e que teria os seus filhos como filhos se a sua raça tivesse prosperado – mas a fortuna, até nisso lhe foi adversa – em nome de todos estes laços, combaterei pela sua causa como se ele fosse meu pai; … "
O Corifeu incita-o a procurar Tirésias, o adivinho, e indica-lhe um primeiro indício: “Laios teria sido morto por viajantes”. Tirésias aparece e recusa-se a revelar o seu segredo (2º indício): “Vós sois todos insensatos. Nunca revelarei o que sei, porque não quero desvendar o teu infortúnio”. Édipo irrita-se contra ele: “…. Suspeito-te de ter concebido o crime e de o ter cometido….” Irritado, Tirésias faz-lhe a primeira acusação: “E eu ordeno-te, em virtude do édito que promulgaste, que nunca mais dirijas a palavra nem a estes nem a mim, porque de ti provém a mancha que contamina esta terra”! Zanga de Édipo, Tirésias precisa a acusação: “Declaro que tu estás, sem o saber, ligado a um nó infame com aqueles que mais amas no mundo e que não suspeitas a extensão da tua desgraça”. Discurso indignado e ameaçador de Édipo.
Tirésias:Já que me acusaste por ser cego, dir-te-ei eu isto: tu que tens os teus olhos, não vês nem em que abismo caíste, nem onde moras, nem de quem partilhas a vida. Sabes de quem nasceste? Dos teus, mortos e vivos, tu és inimigo sem o saber. E em breve, aproximando-se pé ante pé, terrível, e ferindo-te alternadamente pelo teu pai e pela tua mãe, a Maldição ligada ao teu sangue expulsar-te-á da tua terra. Então tu que tens tão boa vista, ficarás na noite…..” “Antes da noite receberás o dia e perdê-lo-ás”.
Édipo:Tu abusas dos enigmas e da obscuridade!”
Tirésias:Não és tu excelente a resolver os enigmas?” (….) “Declaro-te isto: o assassino de Laios que procuras desde esta manhã em grande estrondo de proclamações ameaçadoras está aqui; julgam-no estrangeiro, mas em breve descobrir-se-á que ele nasceu em Tebas por sua desgraça; perderá os seus olhos, as suas riquezas; cego, mendigo, guiando os seus passos com um cajado, errará de terra em terra estrangeira; será revelado como irmão e pai dos seus próprios filhos, e da que o gerou, filho e marido, e do seu pai rival incestuoso e assassino. Entra no teu palácio e reflecte em tudo isso…”
Canto do Coro, sofrendo pelas acusações contra Édipo, que já fora o salvador de Tebas.

Segundo Episódio
Diálogo violento entre Creonte e Édipo, aquele acusado por este de ter armado uma intriga contra ele e que é expulso do palácio, apesar da intervenção de Jocasta e do Coro.
«… Jocasta: Infelizes! Porquê esta querela insensata? Quando a pátria está tão doente, não corais, atiçando ódios entre vós? Édipo, volta ao palácio; Creonte, volta para tua casa. E não enveneneis mais miseráveis disputas».
Expulso Creonte, Jocasta, contrariada, embora, pelo Coro, quer saber de Édipo o motivo da sua cólera. Édipo explica-lhe que Creonte o acusara de ter morto Laios, em complot com Tirésias.
Jocasta explica-lhe que deve ficar tranquilo, pois Laios, outrora, fora informado por um oráculo que “ele devia morrer pela mão de um filho que ele teria de mim. E afinal foram salteadores que o assassinaram em país estrangeiro, na junção de dois caminhos (indício). Aliás, três dias após o seu nascimento, Laios tinha-lhe ligado os pés e mandara-o largar sobre uma montanha deserta. É claro que Apolo não cumpriu o seu oráculo: a criança não foi o assassino de seu pai… apesar das profecias que lhe tinham traçado o destino.» E aconselha-o a ficar tranquilo.
“Édipo: É estranho como, ao escutar-te, minha mulher, sinto o espírito perturbado, inquieto.»
Desejando Jocasta conhecer o motivo disso, Édipo prossegue: “Ouvi bem que Laios foi assassinado na junção de duas estradas?» Jocasta confirma e Édipo: «Em que região isso se passou?» Jocasta responde que na Fócida, na junção da estrada de Delfos com a de Daulis,… pouco antes de Édipo ter tomado o poder.
Édipo: “Ó Zeus, que premeditaste fazer sobre mim?». Pergunta o aspecto de Laios, Jocasta responde-lhe: “era alto; começava a embranquecer; não era muito diferente de ti». Exclamações de horror de Édipo, novas perguntas ansiosas a Jocasta, sobre o número de homens e o meio de transporte, o Servidor, único sobrevivente, fizera o relato, segundo Jocasta. E mudara de terra, ao encontrar Édipo reinando em Tebas. Édipo pede a Jocasta que o mande chamar, e, mais tranquilo, conta a sua própria história: Era filho de Políbio e de Mérope, reis de Corinto, um dia, num festim, alguém embriagado tratara-o como filho adoptado; os pais negaram mas, consultado o oráculo, Febo informou-o de “toda a espécie de horrores: eu unir-me-ia à minha mãe… seria o assassino de meu pai! » Assim, Édipo fugiu de Corinto, e, no sítio da junção das duas estradas matara um velho que o agredira e a sua comitiva. Infeliz se chama, se for ele o assassino de Laios, deverá deixar os seus e não poderá voltar a Corinto, sob pena de matar seu pai Políbio e casar com a mãe. Jocasta acalma o seu receio, insistindo na predição do oráculo, de Laios morrer às mãos do próprio filho o que era impossível, já que o filho morrera primeiro. Ambos se retiram para o palácio.
Canto do Coro, sobre a esterilidade dos oráculos.

Terceiro Episódio
Jocasta
vai oferecer aos deuses coroas e perfumes, informando os notáveis da terra sobre a loucura dos receios actuais de Édipo. Chega o Mensageiro de Corinto, com novidades: o rei de Corinto, Políbio, morrera e seu filho Édipo era chamado para governar Corinto. Édipo, chamado por Jocasta, é informado e regozija-se por não se ter cumprido o oráculo. Seu pai morrera de velhice e não às suas mãos. Quanto ao incesto, com sua mãe Mérope, diz Jocasta a Édipo: “A ameaça do incesto não deve assustar-te: mais do que um mortal partilhou em sonhos o leito da sua mãe”, embora Édipo continue receoso. Informado do motivo dos receios, o Mensageiro explica que não existe tal perigo, visto que os reis de Corinto não eram os verdadeiros pais de Édipo, que Édipo o recebera ele, Mensageiro, das mãos de um pastor da casa de Laios. Os pés inchados de Édipo eram prova do que dizia, e por isso os reis de Corinto lhe deram esse nome (Édipo = pés inchados), ao recebê-lo das mãos do Mensageiro, para o adoptarem. O Corifeu identifica o pastor que levou Édipo para o monte com o mesmo Servidor da comitiva de Laios, agora procurado.
Jocasta, apercebendo-se do crime cometido - (Anagnórise) - quer dissuadir Édipo de procurar mais esclarecimentos sobre o seu nascimento.
Desgraçado! Possas tu nunca vir a saber quem és!”
«Édipo: O pastor vem ou não? Quanto a ela, deixem-na tirar vaidade da sua rica família!»
«Jocasta: Oh! Desgraçado, desgraçado! É o único nome que me resta para te chamar! O único nome, desde agora!»
O Corifeu avisa Édipo do desespero de Jocasta, ao retirar-se, sintoma de maus presságios, levianamente, Édipo insiste em conhecer as suas origens, impaciente porque o tal pastor não chega.
Canto do Coro tentando adivinhar a origem de Édipo.

Quarto Episódio
Confrontação entre Édipo, o Mensageiro e o Pastor/Servidor sobre a identidade de Édipo. Ameaçado por Édipo, se se calasse, o Pastor decide-se a contar tudo o que sabe sobre Édipo: fora-lhe entregue por Jocasta para ser morto, receosa por um oráculo que vaticinara que aquele mataria o pai e casaria com a mãe; por piedade, entregara-o ao Mensageiro, outrora pastor de Corinto…
«Édipo: Oh!... Oh!... Como tudo é claro, agora!... Ó luz do dia, possa eu, nesta hora, voltar para ti os meus últimos olhares! Assim, eu mesmo me descobri: filho indesejável, esposo contra-natura, assassino contra-natura!»
Canto do Coro, sobre a inanidade da glória humana, e de piedade pelo herói Édipo.

(Desenlace):
Último Episódio
Um Mensageiro do Palácio
vem anunciar que Jocasta está morta
O Coro: "A desditosa! Como é que isso aconteceu?
"O Mensageiro do Palácio: Ela suicidou-se. … Louca de horror, atravessou o vestíbulo e correu para o seu quarto arrancando os cabelos aos punhados. Ela entra, afasta violentamente os batentes da porta atrás dela; chama por Laios, seu defunto esposo, recorda o passado, essa semente de que ele deveria morrer e que a tornaria mãe de uma progenitura maculada. A desgraçada gemia sobre o leito onde tinha concebido sucessivamente um marido do seu marido e filhos do seu filho. Como morreu, não sei com rigor, porque Édipo se precipitava aos uivos e não foi mais ela, desde então, foi ele, cujo desespero prendeu os nossos olhares. Ele corre aqui e além, pede-nos uma espada; quer saber onde encontrará a sua mulher, ou antes, ai de nós! a sua mãe, que o trouxe no ventre e que ele fecundou! No meio do seu furor, algum deus, sem dúvida, descobre-lha, pois nenhum de nós intervém. Soltando gritos aterradores, e como se alguém o guiasse, ele lança-se para a porta, abre os batentes, irrompe no quarto, e nós avistamos a sua mulher enforcada numa écharpe cujo nó lhe estrangulava a garganta. A esta visão, com rugidos horríveis, o desgraçado príncipe desfaz o nó e o cadáver tomba. Era horrível de ver, mas o que se seguiu aterrou-nos. Édipo arranca os alfinetes dourados que adornavam as vestes da morta, leva-os às suas pálpebras, crava os globos dos seus olhos. E grita que os seus olhos não verão mais a sua miséria e não verão mais o seu crime e que a noite lhes furtará aqueles que ele jamais deveria ver, e que eles não reconhecerão mais aqueles que ele não quer mais reconhecer. Enquanto exalava as suas queixas, ele erguia as pálpebras e espetava, espetava sem descanso… O sangue saído das pupilas corria-lhe sobre o queixo, não gota a gota, não, mas jorrava em chuva escura, aos borbotões sanguinolentos. E é a obra de ambos que rebenta, não a desgraça de um só, mas os males enredados dos esposos. A sua antiga prosperidade, autêntica prosperidade, hoje não passava de aflição, desordem, morte, vergonha, de todos os males que têm nome, nem um falta à chamada. "
O Corifeu: "Neste momento o infeliz tem um momento de tréguas?"
O Mensageiro do Palácio: «Ele grita que abram as portas, para mostrarem aos filhos de Cadmos o parricida, o filho que… em suma, horrores que não ouso repetir. Ele diz que ele próprio se vai banir, que ele não quer mais ficar entre estas paredes, amaldiçoado pela sua própria maldição. Mas precisa dum apoio e de um guia, porque a sua desgraça ultrapassa as forças humanas.»
Diálogo de lamentação horrorizada entre o Corifeu e Édipo, apelo de Édipo ao Coro para que o expulsem – «Expulsai para bem longe daqui, expulsai depressa, expulsai, meus amigos, este flagelo, este maldito entre os malditos, e de todos os mortais o mais odiado pelos deuses.»
Diálogo entre Édipo e o ponderado Creonte sobre o destino de Édipo, sobre o futuro dos filhos de Édipo, de enternecimento de Édipo sobre as suas filhas, apelo final do Corifeu aos Tebanos, para que contemplem um homem há pouco tão poderoso, agora o mais infeliz dos mortais.

“Fedra” de Jean Racine

Trata-se de uma tragédia (psicológica) sobre um tema colhido em Eurípedes, (tragediógrafo grego, conjuntamente com Ésquilo e Sófocles) sobre a paixão pecaminosa de Fedra, (casada com Teseu), pelo seu enteado Hipólito, (filho daquele), maltratado sempre por Fedra, como forma capciosa e virtuosa de ocultação do seu sentimento de amor por ele.
Tragédia em 5 actos, com as seguintes personagens:
Teseu, filho de Egeu, rei de Atenas.
Fedra, mulher de Teseu, filha de Minos e de Pasiphaé, irmã de Ariana, abandonada por Teseu depois de lhe ter dado o fio condutor que o libertou do labirinto de Creta, após ter morto o Minotauro).
Hipólito, filho de Teseu e de Antíope, rainha das Amazonas.
Aricia, princesa do sangue real de Atenas, amada por Hipólito.
Enone, ama e confidente de Fedra.
Teramène, aio de Hipólito.
Isménia, confidente de Aricia.
Panope, mulher do séquito de Fedra.
Guardas.
A cena passa-se em Trezena, cidade do Peloponeso.

Acto I:
Cena I
: Hipólito e Teramène dialogam sobre a decisão de Hipólito de partir em busca do pai, há muito em aventuras pelo mundo. Hipólito dispõe-se a despedir-se de Fedra, apesar da severidade desta para com ele.
Cena II: Enone conta que a rainha Fedra tem um desgosto íntimo que a vai destruindo. Hipólito decide não se despedir de Fedra.
Cena III: Diálogo de Fedra e Enone, sobre o sofrimento daquela, e o seu desejo de renunciar à vida, silenciando o motivo, inicialmente - paixão por Hipólito - mas denunciando-o por fim:
………..
Fedra: Céus! Que lhe direi eu, e por onde começar?
Enone: Com esses vãos receios, deixai de me ofender.
Fedra: Ó ódio de Vénus! Ó cólera fatal!
Que lançaste a minha mãe em tal desvario de amor!
(*)
* (Vénus inspirou a Pasiphaé um amor insensato por um touro branco de quem esta teve o Minotauro).
Enone: Esqueçamo-lo, Senhora; e que para sempre
Um eterno silêncio esconda essa lembrança.
Fedra: Ariane, minha irmã, de quanto amor ferido
Vós morrestes nas margens onde abandonada fostes!
(*)
* (Na ilha de Naxos, por Teseu)
Enone: Que fazeis, Senhora? E que dor mortal
Vos anima hoje contra a vossa família?
Fedra: Visto que Vénus o manda, deste sangue deplorável
Sou a última a morrer e a mais miserável.
Enone: Amais alguém?
Fedra: Do amor tenho todo o furor.
Enone: Por quem?
Fedra: Tu vais ouvir o cúmulo do horror.
Amo… Eu tremo, eu estremeço a este nome fatal.
Amo…
Enone: Quem?
Fedra: Conheces esse filho da Amazona,
Esse príncipe tanto tempo por mim rejeitado?
Enone: Hipólito? Deuses grandes!
Fedra: Tu o disseste.
Enone: Justo céu! Todo o meu sangue gela nas minhas veias.
Ó desespero! Ó crime! Ó raça deplorável!.....
Fedra: O meu mal vem de mais longe. Apenas ao filho de Egeu
Sob as leis do himeneu eu me ligara,
A minha felicidade parecia que se firmara;
Atenas mostrou-me o meu soberbo inimigo.
Vi-o, corei, empalideci à vista dele
Na minha alma perdida, uma perturbação se ergueu;
Os meus olhos não viam, eu não podia falar;
Senti todo o meu corpo tremer e arder….
A minha mão sobre os altares em vão queimava incenso:
Quando a minha boca implorava o nome da Deusa
(Vénus)
Era Hipólito que eu adorava…..
Em todo o lugar eu o evitava. Ó cúmulo da miséria!
Os meus olhos nos traços de seu pai o encontravam.
Contra mim própria ousei revoltar-me;
Forcei o meu coração a persegui-lo.
Para banir o inimigo que eu idolatrava
De uma injusta madrasta a severidade afectei …..

Cena IV: Panone vem informar que Teseu morreu.
Cena V: Enone convence Fedra sobre a legitimidade actual dos seus amores, com a morte de Teseu.

Acto II:
Cena I:
Diálogo entre Aricia e Ismena sobre a morte de Teseu e a perspectiva do amor de Hipólito por Aricia.
Cena II: Hipólito confirma o seu amor por Aricia, em inflamada declaração, oferecendo-lhe a liberdade, considerando-a tão possível herdeira do trono, quanto ele próprio e o filho de Fedra.
Cena III: Teramène informa que Fedra procura Hipólito.
Cena IV: Hipólito pressiona Teramène para a partida, que o liberte de um diálogo importuno.
Cena V: Fedra pede a protecção de Hipólito para o seu próprio filho e pouco a pouco revela-lhe os motivos da sua aspereza para com ele, que escondia uma imensa paixão:

“….Hipólito: “Vejo do vosso amor o efeito prodigioso.
Por muito morto que esteja, Teseu vive nos vossos olhos;
Sempre do amor por ele a vossa alma está abrasada.”
Fedra: Sim, Príncipe, eu ardo por Teseu
Amo-o, não como o viram os infernos….
Mas jovem, encantador, arrastando atrás de si todos os corações,
Tal como eu vos vejo a vós.
Ele tinha o vosso porte, os vossos olhos, a vossa fala
Esse nobre pudor coloria o seu rosto….”
Cena VI: Teramène informa Hipólito que o filho de Fedra foi escolhido para rei de Atenas e conta-lhe sobre o boato que dá conta que o seu pai está vivo.

Acto III:
Cena I:
O remorso de se ter declarado a um indiferente Hipólito, a vergonha e o medo, no diálogo entre Fedra e Enone.
Cena II: Fedra dirige-se a Vénus, horrorizada consigo própria, raivosa contra o indiferente Hipólito.
Cena III: Diálogo entre Fedra e Enone, que avisa Fedra do regresso de Teseu. Fedra decide morrer – de vergonha, de receio de que Hipólito conte ao pai dos seus amores desonrosos:
«… Fedra: O meu esposo está vivo, Enone, isso me basta.
Eu fiz a indigna confissão dum amor que o ultraja;
Ele vive: nada mais quero saber.
Enone: O quê?
Fedra: Eu tinha-te dito; mas não quiseste ouvir.
Sobre os meus justos remorsos as tuas lágrimas foram prevalecer.
Esta manhã eu morria digna de ser chorada;
Segui os teus conselhos, morro desonrada.»
Cena IV: Teseu dirige-se efusivamente para Fedra, mas é repelido por esta.
Cena V: Desgosto e estranheza de Teseu, Hipólito decide partir, sem acusar Fedra, Teseu procura Fedra, para saber a verdade.
Cena VI: Hipólito confidencia a Teramène todos os seus receios, mas considerando-se inocente, vai procurar convencer o pai do seu amor por ele.
Acto IV:
Cena I:
Enganado por Enone que falseou a verdade, atribuindo a Hipólito o amor por Fedra, Teseu ruge ameaças contra seu filho.
Cena II: Hipólito indigna-se contra as acusações do pai e informa-o do seu amor por Aricia.
…«Hipólito: Vós falais-me sempre de incesto e de adultério?
Eu calo-me. Todavia, Fedra sai de uma mãe,
Fedra é dum sangue, Senhor, bem o sabeis,
De todos esses horrores mais cheio do que o meu.
Teseu: O quê? A tua raiva aos meus olhos perde toda a contenção?
Pela última vez, sai da minha vista:
Sai, traidor. Não esperes que um pai furioso
Te faça arrancar com opróbio a estes lugares.»

Cena III: Raiva e desgosto de Teseu contra seu filho que ele sabe que vai morrer, às mãos de Neptuno.
Cena IV: Fedra tenta convencer Teseu a poupar o filho, mas é informada dos amores deste por Aricia.
Cena V: Dor, raiva e ciúme no monólogo de Fedra, contra Hipólito, que ama outra.
Cena VI: Diálogo com Enone, a quem expulsa, porque a orientou mal:
Fedra: «Os teus pedidos fizeram-me esquecer o meu dever.
Eu evitava Hipólito e tu fizeste-mo ver.
Com que direito te encarregaste disso?
Porque é que a tua boca ímpia
Acusando-o, ousou denegrir a sua vida?
Ele morrerá, talvez, e o voto sacrílego
Dum pai exaltado, será realizado.
Eu não te escuto mais. Vai-te, monstro execrável:
Vai, deixa-me o cuidado do meu destino deplorável….»

Acto V
Cena I:
Aricia aconselha Hipólito a defender-se das acusações do pai, Hipólito, nobremente, recusa levar o opróbio ao leito do pai, acusando Fedra. Incita Aricia a fugir com ele, esta responde que não é fácil deixar a tutela de Teseu, mas promete ir ter com ele.
Cena II: Teseu pede aos deuses o esclarecimento da verdade, Aricia pede a Isménia que prepare tudo para partirem.
Cena III: Diálogo entre Teseu e Aricia sobre Hipólito, Aricia defende Hipólito, deixa a dúvida no espírito de Teseu.
Cena IV: Teseu lamenta-se pela sorte do filho, que ele condenou, pede para ver Enone, para ser esclarecido sobre a verdade.
Cena V: Panope esclarece o Rei de que Enone se lançou ao mar, conta-lhe das marcas de sofrimento e insensatez de Fedra, querendo matar-se, e pede-lhe socorro.
Cena VI: Teramène informa da morte de Hipólito por um monstro marinho. Exclamações de dor de Teseu. Téramène conta a chegada e morte de Aricia, junto do amado.
Cena VII: Teseu dirige ironias raivosas contra Fedra, esta explica como tudo se passou, antes de morrer com o veneno que tomara. Teseu dispõe-se a chorar e a honrar o seu filho amado.
…«Fedra: Os momentos são-me preciosos, escutai, Teseu.
Fui eu que sobre esse filho casto e respeitoso
Ousei lançar um olhar profano, incestuoso.
O céu pôs em meu peito um amor funesto;
A detestável Enone conduziu tudo o resto….»

El-Rei Seleuco

Tema do incesto:
Excertos (principais) do Auto de “El-Rei Seleuco” de Luís de Camões:
(Essencialmente de expressão lírica)


Entra El-Rei Seleuco, com a Rainha Estratónica.

Rei: Senhora, desde que a ventura
Me quis dar-vos por mulher
Sinto-me rejuvenescer;
Porque em vossa formosura
Perde a velhice o seu ser.
Um homem velho, cansado,
Não tem força nem vigor,
Para em si sentir amor,
Se não é que estou mudado,
Com vosso ser, noutra cor.
Muito grande dita tem
A mulher que é formosa.
Rainha: Senhor, grande; mas porém
Se a tal é virtuosa,
Quer-lhe a Ventura mor bem.
(…….)

Rainha: Senhor, há dias que sinto
No Príncipe Antioco
Certo descontentamento.
Dera alguma coisa a troco
De saber seu sentimento.
Vejo-lhe amarelo o rosto,
Ou de triste ou de doente;
Ou ele anda mal disposto,
Ou lá tem certo desgosto
Que o não deixa ser contente.
Mande, Senhor, Vossa Alteza
A chamá-lo por alguém;
Saberemos que mal tem,
Se é doença de tristeza
De que nasce, ou de que vem.
Rei: Certo que eu me maravilho
Do que vos ouço dizer.
Que mal pode nele haver?
Ide dizer a meu filho
Que me venha logo ver.
………..

Entra o Príncipe Antioco, com seu pajem por nome Leocádio
Príncipe: Leocádio, se és avisado,
E não te falta saber,
Saberás dar-me a entender:
Quem ama desesperado,
Que fim espera haver?
Pajem: Senhor, não,
Mas porém por que razão
Lhe convém sabê-lo ou de quê?
Príncipe: Pergunto-te a conclusão;
Não me perguntes porquê.
Porque é minha pena tal
E de tão estranho ser
Que me hei-de deixar morrer;
E por não cuidar no mal,
Não ouso de o dizer.
Que maneira de tormento
Tão estranho e evidente,
Que nem cuidar se consente!
Porque o mesmo pensamento
Há medo do mal que sente.
Pajem: Não entendo a Vossa Alteza.
Príncipe: Assim importa à minha dor.
Pajem: E por que razão, Senhor?
Príncipe: Para que seja a tristeza
Castigo do meu temor.
Porque ordena
O Amor que me condena,
Que se haja de sentir
E sem dizer nem ouvir.
Bem-aventurada a pena
Que se pode descobrir!
Oh! Caso grande e medonho
Oh! Duro tormento fero!
Verdade é isto que eu quero?
Não é verdade mas sonho
De que acordar não espero.
…………………………
Rei: Filho, como andais assim?
Que tanto desgosto tomo
De vos ver como vos vi!
Príncipe: Não sei eu tanto de mim
Que possa saber o como.
Dias há já, Senhor, que ando
Mal disposto, sem saber
Este mal que possa ser;
Que se nele estou cuidando,
Quase me vejo morrer.
Rei: Pois, filho, será razão
Que meus físicos vos vejam.
Príncipe: Os físicos, Senhor, não;
Que os males que em mim estão,
São curas (=cuidados) que me sobejam.
Rainha: Deitai-vos; que na verdade
Um corpo, deitado e manso,
Descansa à sua vontade.
Príncipe: Senhora, esta enfermidade
Não se cura com descanso.
…………………………………………………..

Entra a Rainha com uma criada por nome Frolalta e diz
Rainha: Frolalta, como ficava
Antioco em tu te vindo?
Frolalta: Ficava-se despedindo
Da vida que então levava,
E assim seus dias cumprindo.
Rainha: Frolalta, pois que és discreta,
Nada te posso encobrir;
Porque, se queres sentir,
A uma mulher discreta
Tudo se há-de descobrir.
O dia que entrei aqui,
Que a Seleuco recebi,
Logo nesse mesmo dia
No Príncipe, filho, vi
Os olhos com que me via.
Este princípio sofri-lho,
Para ver se se mudava;
Antes, mais se acrescentava.
Eu amava-o como filho,
E ele doutr’ arte me amava.
Agora vejo-o no fim
Por se me não declarar.
E pois já a isso vim,
A morte que o levar,
Me leve também a mim.
Porque já que a minha sorte
Foi tão crua e desabrida,
Que me não quer dar saída,
Sejamos juntos na morte
Pois o não somos na vida.
Oh! Quem me mandou casar,
Para ver tal crueldade!
Ninguém venda a liberdade,
Pois não pode resgatar
Onde não tem a vontade.
Que não há mor desvario,
Que o forçado casamento
Por alcançar alto assento;
Que enfim, todo o senhorio
Está no contentamento.
……………………………………..

Rei: Neste mal, que não compreendo,
Que meio dais de conselho?
Físico: Senhor, nada dele entendo.
E supondo que o entenda
Quisera não entendê-lo.
Rei: Porquê?
Físico: Porque tenho entendido
O pior de entender,
Para o que possa ser:
Porque anda, Senhor, perdido
De amores por minha mulher.
Rei: Santo Deus! Quê? Tal amor
Lhe dá doença tão fera?!
Que remédio achais melhor?
Físico: Forçado será que morra,
Para que minha honra não morra.
Rei: Pois como? A um só herdeiro
Deste Reino não dareis
Vossa mulher, pois podeis,
Que tudo faz o dinheiro?!
Pois este , não o enjeiteis;
Dai-lha, porque eu espero
Dar-vos dinheiro e honra,
Quanto eu para ele quero.
Físico: Não tira o muito dinheiro
A mácula da desonra.
Rei: Ora bem pouco defeito
É pequice conhecida,
Quando deixa de ser feito,
Porque com ele dais vida
A quem vos dará proveito.
Físico: Quão facilmente porfia
Quem em nunca tal se viu!
Do conselho que me deu
Vossa Alteza que faria
Se agora fosse eu?
Rei: A mulher que eu tivesse
Dar-lha-ia. Oxalá
Que ele a Rainha quisesse!
Físico: Pois dai-lha, se vos parece,
Que por ela morto está.
Rei: Que me dizeis?
Físico: A verdade.
Rei: Sem dúvida tal sentistes?
Físico: Sem dúvida, sem falsidade.
Pois, Senhor, agora tomai
Os conselhos que me destes.
Rei: Certamente eu o veria
Em tudo quanto falava.
Como o vistes? Por que via?
Físico: No pulso, que se alterava,
Se a via ou a ouvia.
Rei: Que maneira há-de haver?
Que eu decerto me maravilho
Possa mais o amor do filho
Do que pode o da mulher!
Finalmente hei-de lha dar,
Que a ambos conheço o centro (=o íntimo)
Quero-o ir levantar
E iremos para dentro
Neste caso praticar.
……………………………………………….
Entra El-Rei e Antioco com a Rainha pela mão, e diz
Rei: Que mais há i que esperar?
Olhai que estranheza vai
O muito amor ordenar:
Ir-se o filho enamorar
De uma mulher de seu Pai!
Querer bem foi sua dor,
Negar-lha será crueldade;
Assim que já foi bondade
Usar eu de tal amor,
E de tal humanidade.
Ela deixou de reinar
Como fazia primeiro,
Para com ele se casar;
E por amor verdadeiro
Tudo se pode deixar.
Eu que nela tinha posto
Todo o bem de meu cuidado,
Deixei mais que ela há deixado;
Que mais se deixa no gosto,
Que no poderoso estado.
Mas já que tudo isto vemos,
Haja festas de prazer,
As que melhor possam ser,
Porque em tão grandes extremos,
Extremos se hão-de fazer.
Haja cantos para ouvir,
Jogos, prazeres sem fundo;
Porque se quereis sentir,
Deste modo entrou o mundo
E assim há-de sair.
(…)

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Salero megalómano

A minha amiga anda num rebuliço de excitação, lembrando as suas qualidades de profetisa de há muitos anos a esta parte. E assim nos pegámos, que eu também sempre que posso, profetizo, não sei como é que ela achou que só ela é que profetizava. Só pode ser pela sua elegância salerosa, descendente das raças que lêem a sina. Mas expliquei-lhe que, por ser mais baixa e gorda, não me eximo a dizer coisas, que aliás muitos outros disseram e continuam dizendo, que é o que sabemos mais: dizer. E por muito que se diga, por muito que fique dito, não passa disso, de ditos.
Disse. “Dixi”, se quiser dizer com mais pose, e assim revelar que se pode mergulhar no mundo dos antigos, que tanto se fartaram de dizer. Foi o próprio Cícero que lançou para a posteridade o “O tempora! O mores!” que ainda hoje há muitos que repetem, até mesmo a brasileira Cidinha Campos, que, absolutamente sem papas na língua, a propósito do tema do leite para os pobrezinhos, se alargou em considerandos sobre os que mamam e mais ainda todos os habituais da corrupção.
Desta vez, o que provocou o discurso inflamado da minha amiga foi a respeito da violência dos filmes para a infância, como um bom ponto de partida para os desvios morais juvenis. Sempre culpara a sociedade por isso, pela indiferença e a apatia com que se aceitam tais programas nas televisões, que se prolongam em telenovelas de exibição de atitudes marcadas por irracional deselegância juvenil, para com os mais velhos apáticos ante a grosseria inútil de uma juventude que mais não tem para dar a não ser isso.
Disse a minha amiga que há vinte e mais anos já preconizava a torpeza da agressividade actual, que vem em notícias diárias, de gente nova matando, estropeando os próprios pais, e eu voltei a lembrar – coisa que faço há largos anos também – a responsabilidade das doutrinas dinamizadas há muito, de bondade para com as crianças, que chamam mais a atenção para os seus direitos do que para os seus deveres e que invertem totalmente os papéis, tanto dos pedagogos como dos discípulos, com o sentido da liberdade proporcionando o dilatar desregrado – as mais das vezes desbragado - de experiências e de auto-suficiências de aprendizes de feiticeiro, sem passarem pelo cadinho do conhecimento, muitas vezes travão da irracionalidade. Muitos filmes mesmo - como “O Clube dos Poetas Mortos” - traduzem essa amplitude de liberdade, coroada por uma aura de encanto em sátira contra a burguesia nos seus anquilosamentos preconceituosos e dirigistas.
Muitas outras causas há - entre as quais o esbatimento do significado de família - de chegarmos ao actual estado de decadência social quase se diria selvática, se não tivéssemos confiança, apesar de tudo, nas competências das várias instituições, que poderão contribuir sempre para limar as arestas das convulsões que tanto encolerizaram hoje a minha amiga.
Mas a minha amiga também descrê das competências institucionais, "dixit".

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Um dia na vida de…

É vulgar para muitos o lançamento de um livro, do seu livro. Para mim, embora não inédito, constitui acontecimento vivido em pânico. Ou, pelo menos, stress.
Habituada que estou à minha “prisão” diária, de espaço limitado a um circular próximo, é em casa que tenho o meu mundo, de que não abstraio os prazeres viageiros concedidos pela televisão ou pela Internet, é no café que, por momentos, me liberto da casa, quer em breves paragens de diálogo apressado, com a família e os amigos – quase diariamente com a minha amiga, embora em tempo cada vez mais condicionado pelas contingências dos respectivos mundos caseiros - quer em cada vez mais efémeras paragens solitárias de convívio com os autores, nas leituras do meu agrado. Tudo muito breve, tudo muito belo também, como música que nos acompanha na vida, em notas várias de amor ou escapes de humor, a que se não dá atenção, no ferrete de outras ambições, e que são, afinal, os alicerces de uma felicidade real, que só reconheceremos, ingratos que somos, quando por vezes eles se desmoronam.
Os poetas e demais escritores mais sensíveis ao absurdo que é a vida de toda a gente, condenada irremediavelmente por uma drástica lei exterior aos desígnios humanos, criarão obras de mais ou menos fundas reflexões, ironias ou enredos trágicos ou monstruosos, em torno desse efémero sem sentido, ou de experiências vividas de crueldades ou torturas, engendradas por mentes humanas. Obras muitas vezes compostas no intuito de inverter situações repugnantes, de apelo às consciências políticas. Tais os livros de Soljenitsin, de Kafka, de Sartre, de Pessoa… E hoje, mais do que nunca, mas menos do que amanhã, hélas, somos bombardeados com uma realidade alucinante, nas injúrias sociais em que vivemos, sem tréguas, e que é descodificado diariamente pelos encarregados mediáticos dessa descodificação.
À medida que envelhecemos, vamos abrindo mais os olhos sobre o mundo que vai ruindo, o mundo que nos traz a morte de gente com saúde há pouco, de gente envelhecendo na solidão, de gente maltratada, de gente que, vivendo melhor, não escapará também à sentença da vida. E temos pena, pelos filhos, pelos netos, embora admirando todos os que lutam corajosamente ou na inércia contra o irremediável.
Foi um dia diferente o que vivi ontem, no stress da expectativa, no alimentar de esperanças de vender muitos livros, na consciência do fracasso económico - eterno gulag nas minhas desditas existenciais - na aceitação dele pela sobreposição de outros valores que preencheram plenamente os meus afectos: a presença da família, o apoio de alguns amigos, como eco fantástico de tempos vividos em comum, uma sessão de encantamento, nos textos produzidos, no à-vontade e graça da minha filha Paula, na mordacidade e elegância expositiva de Salles da Fonseca, no discurso preciso da apresentadora da Chiado Editora – Marisa – no apoio logístico do meu filho Ricardo e do meu genro Joaquim - o sempre eficiente Quim, que com pertinente razão me chama de santa - no próprio comportamento sossegado dos meus quatro netitos pequeninos, o último, o Sebastião, dormindo, na obrigação dos seus três mesinhos, e na presença atenta das minhas duas netas maiores. Foi isso que valeu para mim.
O resto… fica no silêncio das expectativas, apesar de tudo nunca perdidas. Porque foi de apreço e reconhecimento pelo valor da obra publicada, o que se disse então.
Eis os textos da sessão, com pena de não ter gravado o da apresentadora da Chiado Editora, pelo menos no referente ao meu “Maravilhoso Mundo…”:
O primeiro a ler o seu texto foi o Dr. Salles da Fonseca, após a breve exposição da representante da Chiado Editora:

LANÇAMENTO
O MARAVILHOSO MUNDO DAS
“LENDAS DE SANTOS”
DE
EÇA DE QUEIROZ

APRESENTAÇÃO – 19FEV11

«AUDÁCIA – eis o melhor substantivo para definir a atitude da Autora, a muito Prezada Professora Berta Brás, ao convidar para apresentador do seu estudo literário um economista mais afoito nas estatísticas, gráficos e modelos de desenvolvimento do que nas subtilezas da arte literária.
LOUCURA – eis o melhor substantivo para definir a aceitação desse convite.
Mas como é com audácia e loucura que se constroem as Nações, eis-nos a cumprir o nosso desígnio de patriotas canónicos ungidos pelo sal e pela pimenta que dão sabor à vida pós-moderna em que hoje sobrevivemos.
E se tais condimentos podem fazer a diferença entre uma rotina tristemente cumpridora das obrigações necessárias ao ganho do sustento e uma vida geradora de obras que alimentem o espírito alheio, então convenhamos que na escrita também há que distinguir uma lista telefónica dum romance de Tolstoi ou de Dostoievsky. É que em todos esses resultados do prelo abundam as personagens mas é o enredo e o estilo da escrita que os distingue.
É, pois, a estas diferenças que me vou dedicar. E se o enredo também existe numa telenovela, resta a pergunta: o que é o estilo?
Neto e sobrinho de escritores, tive muitas oportunidades de os ouvir falar sobre essas questões e se todos nós sabemos distinguir perfeitamente o estilo dos diferentes Autores, confessemos a nossa incapacidade para os definir sinteticamente. É que o estilo não é axiomático; carece de demonstração.
Numa pequena ilustração de cena familiar, conto a história que se passou com o meu Avô e comigo. Já definitivamente acamado em casa dos meus Pais (onde eu ainda vivia), chegava a ter o quarto atafulhado com os livros que lhe íamos buscar a pedido à sua grande biblioteca. Uns lia, outros consultava e com a gentileza que o caracterizava, pedia para os irmos devolvendo às estantes a que os tínhamos ido buscar. Mas uns havia que iam ficando sem devolução e ele relia-os, relia-os... até que um dia, a propósito de um livro de Camilo e outro do Eça já mais do que manuseados e quase a desfazerem-se aos bocados, lhe disse:
- Oh Avô! Não sabe esses livros já de cor? Não conhece já as histórias de trás para a frente e da frente para trás? Não quer outros, para variar?
E ele, com a simpatia que era o seu timbre e manteve até final, respondeu-me:
- Sim, sei tudo de cor e salteado mas eu não me interesso pelo enredo; do que eu gosto mesmo é do estilo.
É claro que eu já sabia o que era o estilo mas também é claro que já nessa altura sentia grandes dificuldades na definição do de cada um desses Autores. Eu já andava pelas matemáticas e economias mas sempre gostei muito de conversar com o meu Avô. Não só porque gostava muito dele como Avô mas também porque ele falava de «coisas» muito diferentes das que eu aprendera na minha vida académica. E não deixei fugir a oportunidade de lhe perguntar o que é o estilo:
- É um ponto que está aqui em vez de estar ali; são umas reticências que prolongam o raciocínio até ao infinito; é a composição da frase; é o discurso directo; é a erudição ou a expressão vernácula... Só lendo se percebe. Esse é o grande prazer da leitura dos livros bem escritos; os mal escritos são pesadelos.
Eis o prazer sublime que dá a boa literatura: o do estilo.
E Eça tem um estilo muito característico, nomeadamente pelo recheio de discursos directos e indirectos mas totalmente plausíveis, pelas expressões sarcásticas, pela ironia, pela caricatura, enfim, o inconfundível estilo queiroziano que todos conhecemos da crítica a uma decadência que ele via como originária da vacuidade da mensagem política da Casa reinante e da ilusão em que vivia a classe dominante papagaia de imitação da dita vacuidade. É dessa sociedade fútil que Eça nos traça um perfil dramático no seu pequeníssimo conto JOSÉ MATIAS, é dos «preciosos ridículos» que em quase toda a sua obra nos dá exemplos magistrais.
Mas há outro Eça! O das LENDAS DE SANTOS, o de O CRIME DO PADRE AMARO. E que têm estas obras em comum? Eis o cerne de grande polémica e do livro que agora apresento: o que foram os escritos anteriores sobre os mesmos temas? Fonte bibliográfica, de inspiração, tradução, alvo de plágio,... Copy-paste?
Terá LA FAUTE DE L’ABBE MOURET, de Zola, sido a fonte inspiradora de Eça para o seu romance de Leiria? Foi uma tradução adaptada à portugalidade? Foi quê?
Numa época como a nossa em que não se pode apresentar um trabalho académico sem lauta bibliografia, fácil se torna compreender Eça quando repesca temas alheios, estrangeiros, com vista a levar os portugueses a enfiar carapuças. E ai está ele no seu melhor: a dizer que o rei vai nu; ele, ilustre mundano, a denunciar uma sociedade que considera tacanha, mesquinha, saloia, oca, vaidosa e... cheia de brasões mas iletrada. E porque quer fazer da portuguesa uma sociedade moderna, mundana, erudita, traz para a nossa língua os temas que lhe parecem melhor servir essa causa de modernização cosmopolita e de erradicação da saloiada.
Creio que é nesta perspectiva que devemos ler Eça de Queiroz: como um aguilhão que espevita a sociedade portuguesa no sentido da modernidade, da erudição, duma prática útil e não mais fútil.
Eça sabia por certo que no ano de inauguração do Observatório de Greenwich e da descoberta do espermatozóide, na Universidade de Coimbra ainda era proibido dissecar cadáveres para se ter a certeza de que se não esquartejava a alma... Essa mesma Universidade em que os Lentes eram obrigatoriamente recrutados entre os seus próprios doutorados com rejeição de quaisquer candidatos provenientes de outras Universidades. Sempre (e só) mais do mesmo. Estratificação do conhecimento não deveria ter sido anquilosamento. Mas foi!
Eça quis abanar uma sociedade liderada por licenciados anquilosados; Eça sabia que o tempo urgia pois ou abanava a sociedade para que ela reagisse ou a sociedade portuguesa se afundaria num estertor que poria em causa a Nação.
Recordemos o humor com que Eça saudou a modernização do ensino em Portugal quando o liberalismo laicizou os curricula e introduziu a educação física referindo que «se substituiu o Crucifixo pelo espaldar» …
Tenho para mim que este abanão social foi a sua grande missão – desenhando mesmo reflexos de cariz político. Em terminologia moderna, Eça de Queiroz abdicou do hard power tipicamente militar que fazia (e faz) revoluções empunhando fuzis e usou o soft power, a escrita, para cabalmente exercer o smart power. E uma revolução de mentalidades é muito mais profunda do que a conseguida com fuzis. Então, malgré tout et pour cause, considero que Eça foi um revolucionário.
Então, o que dizer do outro Eça, o das LENDAS DE SANTOS e de outros escritos não socialmente críticos? A resposta encontra-a o leitor logo no início do livro da Professora Berta Brás quando cita uma carta de Eça a Oliveira Martins em que afirma: “... por probidade de artista, eu tenho uma ideia de me limitar a escrever contos para crianças e vidas dos grandes Santos”. Aqui está a revelação do enigma: o nosso revolucionário era, afinal, um artista. Quod erat demonstrandum. Por outras palavras, eis-nos chegados ao que já todos sabíamos: Eça era um artista.
É, portanto, de arte que trata o livro da Professora Berta Brás – arte explicada, teorizada, uma verdadeira tese académica transformada em documento acessível aos não-académicos. E é precisamente aqui que reside um dos grandes méritos deste livro: traz a cultura para a rua, desmantela a sacro-santidade da Academia, (aquele tipo de instituição que pela voz de Carlos Drummond de Andrade «coroa com igual zelo o talento e a ausência dele»). Sim, esta é uma obra que democratiza a erudição. Faz com que o simples Contribuinte não tenha que se indumentar de borla e capelo para aceder ao que habitualmente lhe está vedado na trivialidade da vida comum. Mais: presta um inestimável serviço à língua portuguesa publicando uma tese cujo original está escrito na nossa língua e não – como agora exige Bolonha – em inglês, esse Esperanto da era actual.
Sim, porque uma língua só tem possibilidades de sobreviver e de se desenvolver se nela se expressar o pensamento inovador. E o pensamento inovador mais parametrizado é o que consta dos estudos científicos, das teses académicas, da literatura.
Também por isso se torna imprescindível que desçam à rua os estudos dos pensadores e artistas portugueses e que isso se faça na nossa língua e não noutra.
Nacionalismo? Sim, pois claro, com toda a certeza! Mas um nacionalismo de base linguística e não propriamente em função de cada Estado. Mais do que a actual lusofonia, imaginemos o mundo lusíada no qual venham a caber todos aqueles cujos antepassados se exprimiam em português mas que a História conduziu a outros idiomas; relançando um mundo lusíada cosmopolita, não nos quedemos pelo folclórico «galo de Barcelos», enveredemos pelas tecnologias de ponta, levemos a Ciência por diante, publicitemos novos escritores, poetas, pintores, músicos e cantores mas sobretudo façamo-lo em português!
Por tudo isto, faço votos para que o exemplo da professora Berta Brás frutifique de modo a que os escaparates sejam pequenos para cada vez mais obras originais em língua portuguesa de cada vez mais autores.
É que será com o pensamento e não com porta-aviões que havemos de exercer o poder inteligente, o tal smart power que há pouco referi. Essa será a diferença entre uma Nação que se debate num estertor de pessimismo induzido pelos trágicos telejornais que se saciam na má governança como piranha em boi passante e aquela Nação pensadora que tem muito mais que fazer do que dar crédito a quem a pretende arrastar pelas ruas da amargura.
Ler o Eça de Queiroz crítico social é certamente muito mais agradável e útil do que ouvir as diatribes parlamentares dos jogos do «tira-te tu para me pôr eu»; ler o Eça artista das LENDAS DE SANTOS é um acto de cultura de grande sentido estético, literário e, quase diria, histórico; ler as LENDAS DE SANTOS explicadas pela Professora Berta Brás é tudo isso e muito mais pois fica-se a saber o que Eça não escreveu e apenas deixou nas entrelinhas. É como termos alguém a contar-nos uma história mas não ao estilo das avós a tricotar e sim uma história explicada, com a arte do autor exuberantemente exposta de um modo que nunca pensáramos ser possível. E dando por nós a pensar: - Ah, pois é! Como é que eu nunca tinha reparado nisso?
O S. Julião Hospitaleiro de Flaubert comparado com o nosso gigantesco «routier» S. Cristóvão de Eça de Queiroz…
… e por aqui estaria eu a seguir com muitos dos exemplos que a Professora Berta Brás apresenta neste seu belo trabalho. Mas não o faço pois isso seria cortar o prazer da leitura recatada, descrever o paladar do molho, aspergir o aroma que vos espera…
O que vos espera é uma peça de arte descrevendo outra peça de arte; o que vos espera é uma leitura de prazer, sem militância, sem outro objectivo que não isso mesmo: o prazer.
E de tudo isto me fui lembrando ao longo da leitura deste tão interessante livro. Desejo que enxerguem outras perspectivas – quiçá mais interessantes – durante a leitura que certamente vão iniciar ainda hoje.
Mas, praticamente no final, não resisto a uma transcrição que me parece inultrapassável: «à simplicidade e linearidade da lenda flaubertiana, opõe-se a prolixidade, a repetição, o emaranhado de uma intriga fantástica da lenda queirosiana, que tão depressa remete para o maravilhoso cristão e popular, como para a ficção cavaleiresca, para a narrativa histórica, como ainda para os tratados de ideologias humanitárias, deixando entrever a sensibilidade e a subjectividade do narrador».
Ou seja, a escrita enxuta de Flaubert em contraste com a teia narrativa do nosso revolucionário de pena em riste aqui auto-transposto para a sua mais sublime missão, aquela que a todos delicia, a de inquestionável artista.
Antes de concluir, uma pequena informação para os ungidos, os que já leram o livro: que pena eu não conseguir identificar algum Mendes natural de Mortágua. A bon entendeur…
Finalmente – e agora, sim, estou a chegar ao fim – proponho que encerremos esta dissertação queirosiana orando a Santo Onofre, patrono do que tanto nos falta:
Ó meu glorioso Santo Onofre,
Que ao monte Tabor subiste,
De hera verde te vestiste,
Pela Santíssima Trindade bradaste
E Jesus Cristo vos apareceu e vos disse:
- Que quereis, amado servo meu?
-Peço-Vos pão para comer,
Casa para habitar
E dinheiro para dar
A todo o infeliz
Que de mim se lembrar…
(200 dias de indulgências por cada vez que se recite esta oração seguida de um Padre Nosso e de uma Avé Maria).
E com este rebuçado a todos deixo por certo de apetite aguçado.
Obrigado pela atenção e boa leitura! »
Henrique Salles da Fonseca
…………………………..

A minha filha Paula Lacerda expôs a seguir:

Apresentação de Paula Lacerda:

«Apeteceu-me fazer um plano do meu texto, tal como tento ensiná-lo aos meus alunos, sobretudo no Secundário, para que vão interiorizando regras e algum rigor na estruturação do pensamento e do discurso, até que toda esta organização lhes saia espontânea e naturalmente.
Foi o próprio subtítulo do livro aqui em causa que me inspirou (“ficção, intertextualidade, imagística”), para além do trabalho nele apresentado de divisão em partes, com planificação em tópicos da lenda de S. Cristóvão, e do “esboço de um plano” não só desta como da Lenda de S. Frei Gil, elaborados pelo próprio Eça de Queirós.
Começarei então por indicar a matéria de que vou falar e o tom escolhido para o fazer:
a) como a autora é a “Mã” (abreviatura vulgarmente usada entre o bando dos cinco), a casa de que nascemos, e a minha experiência familiar me vai, seguramente, condicionar, pareceu-me lógico deixar-me ir por esse caminho;
b) como, no entanto, também a vida profissional nos conduz (e a minha se prende com a tentativa diária de motivação para a leitura literária), é natural seguir alguns outros;
c) e porque é de um livro que se trata e as histórias se enredam como teias de Penélope (imagem contida no Prefácio da autora, citada de um outro estudioso da literatura), sinto-me no direito de entrelaçar, “ao sabor das cerejas”, memórias, comentários ao quotidiano e considerações mais objectivas de análise ao livro sobre este “Maravilhoso Mundo…”.
Finda a Introdução, vamos então ao Desenvolvimento, centrando-nos, sobretudo, como disse no início, no subtítulo da obra.
Anuncia o Prefácio ser natural, em qualquer obra literária, que se misturem vozes de outros autores, criando um espaço onde confluem ideias, países e épocas, ao qual os leitores não permanecem insensíveis. Na evolução literária reconhece-se, constante, este processo de osmose: nas regras mais ou menos definidas pelos movimentos, nos mitos e temas inspiradores, nas preocupações que se repetem, sempre ditos, contudo, de outra maneira.
Imitar não constitui descrédito; apenas a literatura satírica aproveita para se rir, mais uma vez, sobretudo dos exageros e artificialismos. Mesmo as escolas literárias que preconizavam a liberdade e a originalidade foram criando modelos e estereótipos. O leitor, ao absorver cada real literário, obriga-se, necessariamente, a descodificar-lhe os respectivos referentes culturais e influências. A título de exemplo, é, então, feito, no Prefácio, todo um percurso por autores vários, pelos temas, sentidos e objectivos dos seus textos, pela relação entre a palavra escrita e outras formas de arte, pela possibilidade de construção de outras artes, a partir da palavra literária, pelas múltiplas funções da literatura.
Assim se chega a Eça, às suas tendências literárias e à influência francesa que sofreu. O facto de a sua obra reflectir algo da de Flaubert não lhe retira, no entanto, o valor, como o prova este prefácio.
Depois, mergulhamos no “Mundo Maravilhoso”… É analisada com minúcia e rigor cada lenda, nos seus aspectos estruturais narrativos e estilísticos: dá-se a conhecer acção, personagens, espaços, simbologias; recolhem-se e interpretam-se os inúmeros recursos expressivos que constroem a teia do discurso de Eça; somos ainda presenteados com outros textos – fontes que lhes ecoam na voz, com figuras que para sempre registam a imagem de cada protagonista, quadros, vitrais, e, até, a tradução da lenda de S. Julião Hospitaleiro, de Flaubert.
No “Fecho” do “Mundo…”, retoma-se a questão da imitação em Eça e, mesmo nos três últimos parágrafos, é lançado, ao leitor-criador, um repto verdadeiramente original (não conto).
Saiamos agora deste “Mundo Maravilhoso” e de lenda, deixemos o livro e o seu autor, voltando-nos para a “mã” do nosso quotidiano.
Sempre a conhecemos a trabalhar, em casa e fora. Teve sorte, no seu tempo a mulher ficava, normalmente, só em casa.
Do que estudou fez a profissão que adorava e a que se entregou dedicadamente.
Quando se reformou (ainda jovem, nos bons velhos tempos em que tal era possível!), nós pensámos: “E agora? Se nem sequer quer fazer ginástica?” Mas não tínhamos razão – a sua ginástica continuou a ser intelectual, para além de que a “Mã” assegurava que o trabalho doméstico constituía ginástica mais do que suficiente.
E, afinal, foram bons tempos! De manhã, compras, café com leitura e escrita… À tarde, “Questions pour un Champion”, acompanhamento escolar das netas e tudo o mais que lhe apetecesse. Deu explicações em casa, mas nunca a ouvimos confessar ter saudades da profissão, apesar de guardar inesquecíveis recordações dos seus tempos de docência e de alunos ou formandos que a marcaram.
Mais tarde, iniciou-se no computador – o Word apenas interrompido por telefonemas de SOS para lhe recuperarmos documentos perdidos ao tentar gravar. Normalmente estavam lá, ou então, recomeçava, maldizendo a máquina. Depois do Word, e mais tarde ainda, viajou pelo mundo maravilhoso da Net: pesquisa (já vai menos directamente aos livros e dicionários ou enciclopédias, usa o Google, seu motor de busca preferido); criou um blogue que mantém com devoção, seguindo os seus interesses e ficcionando a figura das duas amigas e das suas tertúlias constantes, na meia hora do café da manhã (o Por AmaisB que, com a sua ironia e humor, já faz parte das nossas leituras e também de algumas das nossas polémicas); intervém e publica em Fóruns e Clubes de comentários e textos sobre a actualidade; aprendeu os mecanismos do e-mail, construiu uma relação dinâmica e interactiva com outros cibernautas, os seus “amigos virtuais”, que passaram a fazer parte também dos motivos das nossas conversas em família; enfim, aceitou todo um mundo desconhecido, com novas gentes e possibilidades que nos fazem às vezes esquecer as limitações e os perigos nele existentes.
Desta forma foi escrito, corrigido e publicado este “Mundo Maravilhoso das Lendas de Santos “, ainda por cima por uma editora on-line (para mim, novidade absoluta).
Partilhemos, então, estes santos antigos, cujo estudo recente nos transportará, com certeza, a um real menos deprimente do que o nosso, hoje em dia.
Através de um discurso claro e rico, dotado de uma capacidade de análise superior, capacidade que se afirmou com estilo, um dia, nos anos cinquenta, sobre o estilo de Cesário Verde (poeta realista, maravilhoso observador e pintor do real breve que viveu), este livro segue a viagem que outros seus iniciaram.
Convido todos a esta desafiante leitura que estuda uma obra de Eça, revelando os dons de ambos – do autor antigo e da autora actual (um bocadinho antiga também). A sua acção (a dos dois), que terras longínquas jamais desviaram do conhecimento, revela-nos vidas preenchidas por múltiplas facetas. E sem nunca desistir!
Acabo, agradecendo:
a) à “Mã” que publicou este livro e me sugeriu que escrevesse um texto para o dia da apresentação;
b) a todos os que vieram e a todos os que o lerem, pelo orgulho que sinto desta mãe criadora, alternativa e persistente, e pelo orgulho em o partilhar;
c) ao meu fiel amigo, o Dicionário de Sinónimos da Porto Editora, que me acompanha nestas lides;
d) ao Sr. Armindo, com o seu café e restaurante “Caipirinha” (o meu preferido na minha terra), às suas mesas, onde escrevi, dentro, ou no passeio, indiferente ao tráfego e saboreando, ao mesmo tempo, o Elixir irónico da minha vida…
(não posso descodificar esta metáfora, pois é expressamente proibido fazer publicidade comercial a ambrósias).
E agora, mesmo finalmente, porque somos pouco “cotas” de espírito, quero dedicar a todos, este excerto da canção “Marcha dos Desalinhados”, interpretada pelo Delfim Miguel Ângelo, o seu autor:
“Eu não quero estar parado,
fico velho…
Vou marchar até ao fim,
isolado…
Esta marcha solitária,
com o corpo a avançar
neste campo aberto
ao Céu…
Ninguém sabe p’ra onde eu vou,
ninguém manda em quem eu sou.
Sem cor, nem Deus, nem Fado,
Eu estou desalinhado…
Por tudo o que eu lutei:
ser sincero;
por tanto que arrisquei
ainda espero…
Esta marcha imaginária
quantas baixas vai deixar
neste sonho desperto?

Ninguém sabe... »
………………
Finalmente o meu texto, antes das palavras finais da representante da Chiado Editora:

Apresentação das “Lendas de Santos” :

«Sempre estranhei, nas consultas que fiz sobre Eça de Queirós, as poucas referências literárias às suas “Lendas de Santos”.
Já aposentada, resolvi ler essas lendas – de S. Cristóvão, de S. Frei Gil, de Santo Onofre - leitura preterida até então, na necessidade de explorar antes as tendências naturalistas, em outras obras dos programas de Literatura Portuguesa, para mais apta integração no ideário realista de intenção interventiva modernizadora, e assim cumprir as exigências da leccionação no Ensino Secundário.
Aproximava-se o centenário da morte de Eça, ocorrida em 16 de Agosto de 1900, lembrei-me de traduzir o encantamento que vivi com a sua leitura, num estudo que abarcasse facetas várias desse deslumbramento: o narrado, os referentes culturais, o estilo como invólucro de distinção.
E assim fui vibrando, com a aventura ímpar de um extraordinário gigante – São Cristóvão – no longo percurso acidentado da sua vida, fixada numa época medieval, de plebeus e nobres, de bruxedos e aspirações a santidades, de violências guerreiras e de revoltas dos pobres, de pestes e sofrimentos, que o bom gigante acompanharia na sua humildade, na sua bondade e na sua abertura gradual para Deus; com a aventura parcial de S. Frei Gil, mancebo fidalgo e esclarecido; com a vida ascética de Santo Onofre, e o seu reconhecimento final de que o seu ascetismo de tão extraordinária dimensão no capítulo da autoflagelação, se tratava antes de uma marca de profunda vaidade, pela ambição de com ele alcançar a santidade – que, aliás, lhe seria reconhecida por Deus, com o milagre de salvação de uma criança, que ele se recusava a realizar, por escrúpulo de arrependimento e penitência.
E o estudo foi-se fazendo, à tentativa de simplificação da ficção, como meio apelativo da leitura integral, sucedendo-se o pasmo dos levantamentos formais a revelarem a magia e a criatividade de um trabalhado surpreendente, traduzindo igualmente uma ampla capacidade cultural queirosiana, em que cada dado relançaria outros dados de consulta, para uma investigação arrastada, que me levaria a tantos escritores e escritas dos tempos passados, com saliência para Flaubert e as suas lendas – a de “S. Julião Hospitaleiro” e “As tentações de Santo Antão”. Levar-me-ia igualmente à ficção de animação dos tempos presentes, sobretudo a de Walt Disney, que em idênticas fontes terá colhido tanto do seu mundo de magia.
Datei o estudo do ano 2000, mas na realidade eu tinha-o acabado antes, iniciando uma nova etapa de envio a editoras que o publicassem, como homenagem ao escritor, no centenário da sua morte, e, dentro da sugestão de criação cinematográfica, as Lendas de Santos queirosianas merecendo, em meu entender, o interesse dos realizadores dos nossos estúdios cinematográficos, dos filmes de animação.
Não teve êxito a tentativa de publicação, e a obra foi mantida na gaveta do esquecimento. A Internet proporcionou-me outros meios de envolvimento, pela escrita, na marcha dos acontecimentos que vão marcando os novos tempos.
E um dia encontrei o anúncio da Chiado Editora como editora de obras, dentro de certas condições. Três obras enviei à Chiado Editora, foi esta a escolhida para uma possível edição, cujo aturado trabalho de revisão, em equipa com a pessoa que mais dele se ocupou - Susanne Engel - juntamente com as outras figuras intervenientes - Vanda, Rosa, Camila – todas elas eficientes e despidas de formalidades no formulário comunicativo - a quem manifesto a minha gratidão - seria feito pelos meios mediáticos - uma inovação para mim, que nunca conhecera outros meios correctores senão o papel e a caneta.
Eis a razão desta publicação, dez anos após o centenário da morte de Eça de Queirós, que a minha admiração pelo escritor desejaria tivesse sido feita então.
Nas contingências económicas que o nosso País atravessa, não é provável que a proposta do filme de animação surta qualquer efeito, mas do seu túmulo Eça de Queirós saberá quanta ânsia desse milagre me vai na alma, que um dos seus santos poderia favorecer – talvez S. Cristóvão, mais de acordo com ingenuidades que ele próprio protagonizou, ser disforme em tamanho e compreensão que gradualmente ganharia em beleza humana e espiritual, ou mesmo o asceta Santo Onofre, mais adaptável a registos de sátira, na sua ambição de santidade feita de renúncia aos implacáveis prazeres da carne, na esteira de Santo Antão.
S. Frei Gil, futuro grande sábio, de facto, ficaria uma obra inacabada. Como afirmou Eça, espirituosamente, em carta a Silva Pinto, “o moço D. Gil, indo a caminho de Toledo, ficou parado, estendido na relva, a conversar com o senhor de Astorga, que (aqui entre nós) é o Diabo… E dois anos vão passados e ainda o iludido cavaleiro se não levantou da relva…”
Agradeço ao Dr Salles da Fonseca a sua disponibilidade em aceder a apresentar uma obra de alguém de que os meios informáticos apenas tinham possibilitado o conhecimento e a respectiva afinidade de conceito.
Agradeço igualmente à minha filha Paula Lacerda, que veio aqui trazer uma notícia sobre o seu próprio pensamento, de entusiasta inveterada das coisas literárias, numa sensibilidade agudizada pela sua própria vivência, de um espírito de luta aberto e generoso.
O meu obrigada a todos os que interromperam os seus afazeres para virem assistir ao lançamento de uma obra que, se tiverem gosto em ler, poderão pensar que, contrariamente ao moço D. Gil, ela não se ficou na relva e partiu mesmo para Toledo, algumas achegas propondo para o aprofundamento da literatura queirosiana.
Pelo menos, era o que pensava o escritor João Reis, autor, entre várias obras, do expressivo romance “Kufemba”, escrito em África e que sempre afirmou, não só a sua paixão por Eça, como a sua crença na validade dos meus escritos, apoiando este com o empréstimo precioso da sua obra em seis volumes -“Polémicas de Eça de Queirós”. O meu reconhecimento e homenagem, pois, prestados em sua memória, na incompreensão do inesperado fim.
Memória saudosa também a de meu pai, na viagem fisicamente interrompida. Aqui presente.»

……………..………..
P.S.: Enviou-me o Dr. Salles da Fonseca, hoje, dia 20, ao meu agradecimento e pedido para que me remetesse o seu texto, para efeitos “logísticos” ou mais propriamente bloguísticos, o seguinte email, que transcrevo, como remate apreciativo do momento vivido:
«Muito Prezada Senhora Professora:
Foi com o maior gosto que finalmente a conheci pessoalmente. Apreciei muitissimo o ambiente de carinho familiar em seu redor e gostei de ver a sala cheia. As palavras da sua Filha foram enternecedoras e achei-as mesmo comoventes. Resultado: gostei!
Assim como gostei mesmo de ler o seu livro. Achei graça ao facto de o pai de S. Frei Gil ser Senhor de Mortágua, terra da naturalidade dos meus avós paternos e do meu tio escritor; só o meu Pai é que foi nascer a Viseu. Daí aquela referência jocosa de ser uma pena eu não conhecer ninguém em Mortágua que dê pelo nome de Mendes, descendente de D. Mendo, padrinho de baptismo de S. Frei Gil.
Junto a versão final do texto que li.
À saída da reunião fui muito simpaticamente abordado por uma Neta sua já crescidinha com quem troquei breves palavras mas não percebi o nome dela nem o do blog que me referiu "Contos...". Gostaria de visitar o blog dela pelo que peço o favor de me dar os nomes tanto do blog como da simpática Neta.
Será com o maior prazer que colaborarei no lançamento dos seus próximos livros.
Grato por todas as gentilezas que tiverem para comigo, continuemos...
Atenciosamente,
Henrique Salles da Fonseca

…………………………

E com o meu agradecimento pelas suas gentis palavras, o blogue da minha neta mais velhinha - Ana Margarida Aleixo de Lacerda – que com a sua graça leve e espírito sensível e crítico, já merecedor de um recente prémio literário, me parece encaminhar-se para um futuro saliente no campo da escrita: novelasdelisboa.blogspot.com/


Foi assim o dia 19/2/11, diferente dia, na minha vida de rotina e amor e com cóleras pelo meio, nos gulags comuns à humanidade, no meu gulag.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Vanitas vanitatum

Foi La Fontaine um artista
Fabulista
Que por meio de uma fábula
Sobre díspares grandezas
Pretendeu demonstrar
Que os Franceses
Em vaidade são superiores
Aos outros povos.
Fala nos Espanhóis,
Esquece os Ingleses
Ignora os Portugueses
Que me parece,
Nem sequer conhece,
Mas não é por mal.
E, afinal,
É mais que sabido,
As vaidades
São comuns ao mundo
Desde o tempo antigo,
Não há que estranhar.
Vejamos, então,
A demonstração:

«O Rato e o Elefante»
“É extremamente comum em França
Julgar-se a gente
Personagem proeminente.
Lá se faz, frequentemente,
O homem de importância
Que, muita vez,
Não passa de um burguês.
É isto, especificamente,
Um mal francês:
A tola vaidade é-nos peculiar.
Vãos são os Espanhóis também,
Doutra maneira, porém.
O seu orgulho parece-me, em particular,
Muito mais louco, mas não tão tolo.
Demos, do nosso, um parecer
Que sem dúvida vale
Um outro qualquer:

“Um Rato dos mais pequenos via
Um elefante dos maiores e reproduzia
O andar lento do animal de alto porte,
Que marchava em grande estadão.
Sobre o animal de três andares
Uma sultana de posição,
Com o seu cão,
O seu gato, a sua macaca, o papagaio,
A sua velha, todo o palacete,
Iam em peregrinação,
Causando reverente admiração.
O Rato estranhava que o mundo
Ficasse tão sensibilizado ao ver
Esta massa pesada e imponente:
“Como se, o facto de nesta vida se ocupar
Maior ou menor lugar
Nos tornasse, repetia,
Mais ou menos importantes!
Mas que admirais tanto nele,
Vós, homens pedantes?
Por acaso seria
Este corpo grande, como penedo
Que às crianças mete medo?
Não nos consideremos,
Por muito pequenos que sejamos,
Sequer um grãozinho menos
Que os Elefantes farsantes.”
Poderia ter falado mais.
Mas o gato da sultana,
Descendo da gaiola,
Sub-repticiamente,
Fez-lhe ver, num breve instante,
Que um Rato não é um Elefante."

Isto disse La Fontaine,
Conservador encartado,
- Ou antes, penalizado -
Antes da Revolução,
Que veio provar
Que a igualdade
Era um valor a prezar
Em fraterna liberdade
Como, aliás, já pretendia
O Rato sem cortesia.
E nós, Portugueses,
Grevistas esforçados,
Bem nos podemos gabar
De já ter conquistado
Esse estado.
Coitados!

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Manobras da história, dos históricos

Recebi hoje via e-mail um texto que me parece muito certeiro, e, pedindo licença a quem mo enviou, resolvi transcrevê-lo, pois que se trata de uma lição que já vivemos todos, pelo menos aquando da deposição do pobre do Xá da Pérsia, e que poderemos reconstituir como um retrato do que fomos, do que somos ainda, pelo menos tantos de nós, seres oportunistas, desejosos de alardear sentimentos de solidariedade universal, dentro dos preceitos defendidos por activistas célebres e adoptados pelos diversos cultores das novas bondades que atribuem a terra a quem a trabalha, e concedem direitos a quem não se podia deles gabar, o que era, na realidade, muito mal feito.
À conta desses direitos aparentemente concedidos (e digo aparentemente porque nunca, como hoje, se chegou tão baixo na vileza das disparidades sociais e das destituições de direitos, como seja o direito ao trabalho, atirado às malvas), vários solavancos os povos foram sofrendo, os ódios fertilizaram as terras por conta do amor pelos desamparados, mas subentendendo, na sua maior parte, da parte dos semeadores da nova virtude - ou seja, dos que comandam os destinos, por eleição democrática, pelos pobres crédulos nas patranhas por aqueles semeadas - o amor por si próprios, dirigentes escolhidos, o zelo pelo bem-estar pessoal de si mesmos, indiferentes ao coro de misérias em crescendo, na África mergulhando os próprios nativos em lutas selváticas sem quartel, na Ásia abrindo caminho aos extremismos e fundamentalismos religiosos, com o terrorismo proliferando pelo mundo inteiro, na inveja do poder das nações com poder.
O texto é bem explícito da cobardia dos dirigentes máximos americanos – Carter / Obama – que, em diferentes épocas, resolveram apoiar os movimentos da modernidade, os tais “idiotas úteis”, que vão cada vez mais semeando o caos nas sociedades, e abrindo brechas para infiltração das hordas de populações aterrorizadas, fugidas dos seus terrenos, entregues a novos tiranos ambiciosos, absorvendo alarvemente a doutrina que tão lucrativa se lhes revelou.
Vale a pena lê-lo e meditá-lo, como aviso, pelo menos. Embora inútil, porque ultrapassado. Pelos ventos da história. As consequências saber-se-ão, os novos comilões no Egipto ditarão as regras do seu banquete.
Nós cá vamos assistindo, curiosos, ao banquete dos nossos, que não tem, naturalmente, relevância internacional, neste nosso deserto sem pirâmides. Mas que já teve padrões de Descobrimentos.

«A Pérsia e o Egipto»

“Carter e Obama, 1979 e 2011”
«Em 1979 Jimmy Carter reagiu a um massivo levantamento popular no Irão, com o abandono do Xá, então um aliado chave dos EUA na região. O Xá era uma espécie de déspota esclarecido, com uma agenda de modernização que afrontava as mais arcaicas tradições religiosas muçulmanas e que, à força, como Kemal Ataturk, procurava ocidentalizar o país, por ver nisso uma boa via para trazer a Pérsia para o século XX.
Era um ditador num mundo de ditadores, mas era "o nosso ditador".
Contra o Xá alinhava-se uma estranha aliança de idiotas úteis (socialistas, comunistas e toda a galáxia antiamericana e antisemita) e islamistas. Estiveram juntos nas ruas, a festa era bonita, falava-se de democracia e liberdade.
Como não estar com eles? Como não estar do lado certo da História? Como não comungar do entusiasmo que as narrativas mediáticas veiculam?
E na verdade foram vários os especialistas que convenceram Carter de que se tratava de gente moderada, moderna, amante da liberdade, com a qual se podia estabelecer uma relação civilizada e que salvaguardasse os interesses dos povos.
Khomeini foi descrito como um pragmático no qual se podia confiar. O notório Richard Falk, hoje em dia mais conhecido pelo seu ódio a Israel, escreveu mesmo um artigo de opinião no New York Times, intitulado "Confiar em Khomeini".Khomeini explorou sabiamente essa imagem, tendo avançado com nomes como Barzagan e outros, vistos como pessoas moderadas e racionais.
E Carter alienou prontamente o seu aliado, em troca de um prato de lentilhas de boas esperanças, tendo Khomeini chegado ao poder.
Uma vez instalado, rapidamente fez rolar as cabeças dos "moderados", instalando um regime islâmico que é hoje um dos piores inimigos do Ocidente, e do próprio povo iraniano, promotor de terrorismo e exportador de instabilidade.
Em 2011, Obama enfrenta uma situação arrepiantemente análoga e parece estar a repetir, ponto por ponto , a estratégia desastrosa de Carter.
Mubarak é um ditador, mas é o "nosso ditador". Nem sequer é o pior, no alfobre de ditaduras que é o mundo muçulmano. Na verdade é o principal aliado americano no mundo árabe, tal como era o Irão.
E o que faz Obama quando o seu maior aliado está encostado à parede?
Faz como Carter: aliena-o, e ameaça-o.
Na rua uma coligação de gente bem intencionada, idiotas úteis e islamistas, prepara-se para tomar o poder. Alguns especialistas explicam a Obama que se trata de gente moderada com a qual é possível estabelecer diálogo.
A Irmandade Muçulmana, um movimento tenebroso, que produziu o ideólogo da Al-Qaeda, Al-Zawarii, e centenas de terroristas encartad0s, versão sunita da ideologia revolucionária iraniana, avança a coberto de El Baradei, um "moderado" que, todavia, passou os últimos 10 anos a proteger o programa nuclear iraniano.
Se Mubarak cair e o regime implodir, não é provável que sejam as forças liberalizantes a assenhorear-se do poder, mas sim a bem organizada e poderosa Irmandade Muçulmana que, em surdina, vai chamando a El Baradei e aos "laicos", "burros da revolução", isto é, montadas nas quais se anda para atingir o poder.
Tal como em 1979, uma revoada de "especialistas" assegura que esta Irmandade Muçulmana é moderada e pragmática.
Face à atitude naive da Administração Obama, tudo se conjuga para um desastre em dois acordes: ou Mubarak resiste e não voltará a ver nos americanos um aliado fiável, ou a Irmandade chega ao poder, com consequências dramáticas para o Ocidente.
Em ambos os cenários, a América (e a Europa, by the way, cujos dirigentes têm sido de um espantoso histerismo na "exigência" de que Mubarak caia), deixarão de contar o Egipto como aliado.
E os aliados americanos por esse mundo fora, serão também recordados de que essa aliança de nada lhes serve quando as coisas aquecem.
Obama, tal como Carter, parece sobretudo especialista em escavacar as alianças da América, atacando os que estão do seu lado e apaziguando os inimigos.
Alguém se lembra do modo cauteloso como Obama reagiu às manifestações no Irão, há pouco tempo?»
“POR O-LIDADOR”



domingo, 13 de fevereiro de 2011

Coisas gramaticais e mais

- Isto agora não é para levar a sério, disse a minha amiga à minha sugestão de atirar palavras de sons parecidos, embora não propriamente parónimas, como forma de não atribuirmos importância, blasées que estamos, a nada do que se passa nas nossas paragens terráqueas, sejam elas moções, sejam menções, missões, os próprios mações - mas sem garantia - só mesmo as monções podendo causar, por vezes, prejuízos graves. E apesar das reivindicações do latino Terêncio de não se mostrar indiferente a nada do que seja humano, em resposta, podemos lembrar outras frases das celebridades, como esta do Hamlet às estranhezas do companheiro Horácio, de que há mais coisas na terra e no céu do que as que sonha a filosofia deste, que era descrente de prodígios – no caso concernente, o espectro subterrâneo do pai do príncipe dinamarquês, incitando o filho à vingança contra o cunhado, que lhe roubara o trono, a mulher e a vida.
Por isso, por vezes, a minha amiga e eu tomamos a tal atitude blasée, muito elegante, expressiva de saturação – há dias assim - mostrando-nos contrárias a mergulhar nos ruídos tantas vezes vazios, ou demasiado perfurantes das nossas sensibilidades, que já têm trabalho que chegue com os problemas e dores próprios, mesmo sem espectros a sobrecarregar-nos com esquisitas imposições detectivescas. Além disso, também aprendemos com o Ricardo Reis que, como o rio, passamos, e que mais vale passar tranquilamente, sem amores, nem ódios, etc., etc., embora essa asserção me pareça de atitude muito egoísta, que também nos transforma em seres amorfos, mas pode isso ser por pura ambição de auto-valorização, é certo que sem consequências mutacionais pessoais, com infinita melancolia minha, que sou da raça dos nossos dirigentes, pelo menos na ambição de riquezas, sempre goradas, no meu triste fado. E concordei:
- Tem razão, nada é para levar a sério. Veja a moção de censura que o Louçã, na sua missão revolucionária, embora eu cuide que não de mação, faz menção de executar para o governo PS e que tanta celeuma provocou, quase diria própria da monção lá dos trópicos, mesmo distante, o PSD muito enfiado, sem responder se aderiria, o nosso Primeiro Ministro muito exaltado, a lembrar ao mundo, com imenso estridor, as ambições de Passos Coelho ao posto dele, que também já as tivera mas não precisava mais de se lembrar, limitando-se a chamar a atenção do mundo para esse facto, no seu opositor, notório pela reticência na resposta imediata do PSD à menção da moção do Louçã, na sua missão dura, de monção desvairada, se não de mação secreto, pelo menos de mação pesado.
Mesmo assim, apesar do ar blasé, a minha amiga frisou sobre o turismo em extinção no Algarve, a falta de soluções para o desemprego, para sair da crise, a sociedade portuguesa envelhecida, a falta de condições para o acréscimo da natalidade…
- Portugal tem tanto velho, tanto velho, tanto velho… Já está desproporcionado… Portugal vai subsistir já só com emigrantes, as escolas enchem-se com os filhos dos emigrantes.
Esqueci o ar blasé:
- Pobre da língua portuguesa! Pobres daqueles escritores que fizeram o nosso orgulho! Espectros serão um dia, a gritar, das suas sombras, que foram traídos, tal o ex-rei da Dinamarca...
Mas, afinal, o Ricardo Reis disse bem: “ Quer gozemos, quer não gozemos, passamos, como o rio…”

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Quem dera!

O medo é uma característica
Da humana natureza
E mesmo do resto da fauna.
Mas não sei bem
Se não tem medo também
O pó da estrada pisado
Pelos pobres e até
Pelo burro do moleiro
Do nosso Alberto Caeiro
Que em tudo via
Sinais de quem sentia
Quer ele fosse um ser
Animado ou inanimado.
Mas medo sentia a lebre
Na fábula de La Fontaine
Das Rãs e da Lebre:

«Na sua toca uma lebre pensava
(Porque, numa toca,
Que outra coisa
Se pode fazer
A não ser pensar?),
Em profundo aborrecimento ela se amarfanhava:
Este animal é triste e o medo o roía.
“As gentes de natural poltrão
Como eu,
São,
- Ela dizia -
Bem infelizes.
Nunca poderão
Comer comida que lhes preste;
Nunca um prazer puro as faz gozar,
Com medo de sofrer
Assaltos diversos
Dos outros seres.
Eis como eu vivo: este maldito medo
Impede-me de dormir,
E, ainda assim,
Só de olhos abertos
Pobre de mim!
“Corrija-se”, dir-me-á
Alguma sábia cabeça
Mesmo sem que eu lho peça.
“E o medo corrige-se assim?
Julgo mesmo que, à fé de sandeu,
Os homens têm tanto medo como eu.”
Assim a nossa lebre ponderava
E simultaneamente estava
De atalaia,
Sempre em sobressalto, inquieta:
Um sopro, uma sombra, um nada
Tudo a atarantava.
O melancólico animal
Cogitando em matéria
Tão transcendental,
Ouve um ligeiro ruído: vá de correr
Para o seu covil.
Por um charco passou,
E as rãs logo sobre as profundas grutas
Do canal
Se precipitaram
Que se desunharam.
“Oh! – estranhou a lebre - afinal
Eu posso causar tanto mal
E provocar tanto medo
Como outros a mim me provocaram!
A minha presença
Faz medo a muita gente!
Eu causo alarme igualmente
Por esse acampamento descontente.
E donde me vem tal valentia?
Como?! Há animais que me receiam?
Sou então um valentão
Assustador?
Já vejo que não há na Terra,
Ainda hoje,
Nenhum poltrão que não ache
Outro, ainda mais poltrão do que ele.”

As fanfarradas da lebre
Poderão ter actualidade.
Mas, na verdade,
Tal conclusão
Aplica-se a outros males
E mesmo bens
Da humana geração.
Não acredito, evidentemente,
Que o pó da estrada
Pelos pobres pisado
Seja sensível
Como os vivos seres.
Mas não é só a cobardia
Que existe em toda a gente.
Há sempre quem
Nos seja superior
Ou inferior
Em virtudes ou defeitos
Variados.
Todavia,
As notícias de hoje em dia,
Na questão da cobardia,
Dão-nos razão para a termos,
Por temermos
Os males que podem surgir.
Porque eles caem,
Sem mais,
De todos os pontos cardeais,
Intermédios e colaterais,
Na esfera em que vivemos,
Sem que tenhamos
Possibilidade de os afastarmos,
De nos escondermos
Mesmo que nos apliquemos
Em procurar
Para a nossa vida vazia
Uma mais-valia.
E os que a acham ganham
Rapidamente
As brancas cãs da preocupação,
Do medo de que não tenha duração
A mais-valia que alcançou
A sua ambição.
Mas depende isso muito do povo
Que deseja mesmo um mundo novo.
Porque há sempre quem seja mais poltrão,
Há sempre os mais corajosos
Entre o povo.
Entre os povos.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Memória, tem-se

Embora Inês Pedrosa entenda que se precisa. Que os portugueses são uns esquecidos, segundo a sua crónica “Memória, precisa-se” da Revista Única de 28 de Janeiro, e que “Pior, antes do 25 de Abril, só os mortos”, donde se deduz que os vivos dessas épocas não passavam de zombies à guarda proteccionista do Estado, pois só menos que eles, os de carnes apodrecendo em jazigos ou debaixo da terra, já que então ainda os fornos crematórios não estavam na berra, a não ser para os cães vadios, em poderosas evocações nazistas. Felizmente que não usou a estafada expressão virgiliana “sub tegmine fagi”, que a prática da exploração colonialista dos menos zombies trocistas traduziu por “à sombra da bananeira”, embora outras árvores de cá – e mesmo de lá – me parecessem mais frondosas para dar cobertura aos ardores solares e às paralisias acomodadas desses tempos, na crítica oportunista de Inês Pedrosa.
Pedrosa faz no seu artigo a apologia dos tempos sucedâneos ao 25 de Abril, mais estruturados os serviços de Educação, de Saúde, de betão armado, etc., graças à chuva dos dinheiros europeus e mesmo aos créditos provindos das tendências paternalistas salazarentas não zombianas. Simultaneamente renega o que se construiu antes, feito apenas em função dos privilégios burgueses da altura, que condenavam ao ostracismo os socialmente desfavorecidos.
Este discurso inflamado de oratória quase direi evocativa daqueles tempos revolucionários de Abril e que se mantém, é certo, ainda, nos ataques entre os partidários dos clubes rivais, para não falar na vivacidade digladiadora das nossas mesas redondas muito críticas, poderá ter origem quer na família democrática que lhe transmitiu a magia das palavras liberdade, igualdade, fraternidade, caso tenha pertencido aos não privilegiados rancorosos, ou aos letrados esclarecidos, ou, caso tenha pertencido à burguesia favorecida, esse facto terá antes provocado nela, rebeldias e revoltas juvenis, à semelhança dos James Deans desvalidos ou dos hippies transportando as flores do amor, por conta da solidariedade universal e desprezando a família que os sustentava e lhes fornecia os bons carros das suas diversões. Por conta também da promiscuidade, dirão os velhos atrabiliários. Que não contam, para uma Inês Pedrosa embalada nos bons princípios de uma visão confiante e sorridente, apoiando com afinco o presente, e menosprezando o passado, com o apelo astucioso à memória. Mas não à sua.
É uma mulher de luta, que se sente bem a participar na luta, não sei se apenas pela pena, ignorando, é certo, todos os molengões de agora a começar pelos sem abrigo, e a abranger todos os que são obrigados a desistir da luta, rebotalhos de vidas lançadas para os caixotes do lixo, por ordem dos que para aí os mandaram, tirando-lhes o tapete, ao fomentarem o desemprego e a miséria social, o abandono dos campos e dos mares, substituindo a recta via do trabalho pelas tortuosidades da corrupção, da violência, do descalabro, da indignidade.
Eram zombies os de antes da revolução? Mas trabalhavam, estudavam com mais seriedade, as crianças brincavam na rua sem medo dos raptos, das pedofilias, se havia trabalhadores menos zelosos, a maioria, julgo, fazia por cumprir, as falcatruas de então bem menos perceptíveis, talvez, do que as falcatruas de agora. Em que a vergonha foi eliminada dos costumes.
Não censuro a Inês Pedrosa por defender a sua musa, mas por o fazer com “parti pris”. Como se também ela precisasse de reavivar a sua memória. Sem “parti pris”.


domingo, 6 de fevereiro de 2011

“Come, irmão”

Esta ouvi eu ontem à minha mãe, pela primeira vez, estávamos – a minha irmã e eu – sentadas em final de tarde, junto dela, comodamente instalada na sua cama e recordando, o que faz com cada vez mais pormenor, à medida que avança para os 104, e que desdenha de outros interesses que não se relacionem com os espaços das suas vivências, mais presentes e ternos, os da sua infância.
“Antigamente estes ricos enriqueciam à custa dos pobres, que trabalhavam quase de graça para eles. Em Cambarinho, em Paredes Velhas, em Oliveira de Frades… Ganhavam mais os que levavam farnel de casa, ganhavam muito menos os que comiam do magro tacho que ia de casa do patrão, e era comido no campo.
Contava-se que havia um homem rico em Cambarinho, para quem trabalhavam uns tantos da aldeia e o ricaço, à hora do almoço, que então se chamava jantar, costumava levantar-se após emborcar rapidamente o alimento, para induzir os comensais a fazer o mesmo, erguendo as mãos e os olhos gratos: -“Graças a Deus para sempre. Já estou farto, e toda a minha gente”. Mas um esperto, de barriga vazia e com idêntica devoção, voltando-se para os demais trabalhadores, exclamava arrebatadamente: “- Come, irmão, se eles estão fartos, nós ainda não.”
E este povo finório da história da minha mãe leva-me a Fernão Lopes, ao povo dos nossos primórdios, que ajudou a construir uma nação e manifestava democrático à-vontade junto do seu mestre de Avis, cuja pusilanimidade na questão com Leonor Teles o incitava a fugir para Londres – no que o povo não consentiu: “Bom Londres é Portugal”, foi o seu grito de incitamento atrevido, embora amistoso.
Ouço e vejo as notícias e imagens do povo egípcio, na sua revolta de explorado milenário, e admiro-o nas suas manifestações revolucionárias, embora não deixe de admirar também a coragem de Mubaraque em se manter no que considera o seu posto, sujeito, assim, a violências e crueldades imprevisíveis.
Não vejo que entre nós possa acontecer nada semelhante, apesar do sofrimento que por aqui grassa, de despedimentos sucessivos, de gente passando fome, de jovens sem esperança, num governo onde se promete e se mente, onde se enriquece pela fraude, onde o povo perdeu a vitalidade dos tempos do início, e das rebeldias finórias de maltratado da história da minha mãe.
Não, o povo de agora não é solidário. Se tiver possibilidade, come sozinho, à semelhança do que vê. E dará a seguir graças a Deus, com idêntico arroto.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Convite

Lançamento do Livro

“O Maravilhoso Mundo das Lendas de Santos de Eça de Queirós»
= Ficção, intertextualidade, imagística =

Sábado, 19 de Fevereiro na Livraria-Bar “Les Enfants Terribles” no Cinema King, pelas 17 horas
Apresentadores:
Henrique Salles da Fonseca, Licenciado em Economia no Instituto Superior Económico e Social de Évora, ex-Director Geral do Forum para a Competitividade.
Paula Lacerda, Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas, Estudos Portugueses e Franceses, em 1982, pela F.L.L., professora no AEIM.
Av. Frei Miguel Contreiras, nº 52-A (Ao lado do Teatro Maria de Matos, junto da Av. de Roma
info@Chiado Editora.com
WWW.Chiado Editora.com

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Foi o Menino que disse, quando comia com os pais à ceia. “Sei um ninho”. E foi contando da sua maravilha, quando avistara o pintassilgo a disparar do ninho entre a folhagem, quando trepara ao cedro para espreitar o ninho, os últimos momentos sem se apoiar nos pés, quando, suspenso pelas mãos, pegara no ovo, que estalara ao beijá-lo, e dele saíra um passarinho… “Sei um ninho”, repetiu, ante a preocupação silenciosa e atenta de Maria e de José, acompanhando a escalada milagrosa de Jesus, inocente e amparado. Pelo Padre Eterno, pelos pais bíblicos. Um pequeno milagre de Jesus, pela pena de Torga, do conto extraído da sua obra-prima “Os Bichos”.
Eu não sei um ninho. “Sei um livro”. Um livro que é para mim maravilhoso, que foi para mim um encanto o fazê-lo, gradualmente, o corrigi-lo, muitas vezes, o acrescentá-lo, a cada leitura. É sobre um livro – “Lendas de Santos” - de um autor que é para mim também um milagre: Eça de Queirós. Chama-se “O maravilhoso mundo das “Lendas de Santos” de Eça de Queirós”.
Em meu entender, dei vida a Lendas que Eça escrevera, e que pouca análise haviam merecido ainda.
“Lendas de Santos”: “Lenda de S. Cristóvão”, “Lenda de Santo Onofre”, “Lenda de S. Frei Gil”, os santos em que Eça pegou. Também a de “S. Julião Hospitaleiro”, a de “Santo Antão”, da autoria de Flaubert, estas servindo de bordão àquelas, juntamente com outras obras do engenho humano – Fausto, a Bíblia, as literaturas do Medievo… E com isso, toda a arte queirosiana, fruto do seu extraordinário engenho, do seu saber, da sua experiência, do seu génio ímpar.
É este o livro – não o ninho – que eu sei. Um livro de estudo. Talvez maçudo.
Para mim, um canto de homenagem.