quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Uma página de “O Barbeiro de Sevilha”

O Conde Almaviva está postado numa rua de Sevilha, à espreita de uma rapariga – Rosina - que costuma aparecer não à janela como a nossa carochinha mas atrás da gelosia daqueles discretos tempos de predomínio masculino. Encontra Fígaro, seu antigo criado, e interroga-o sobre a sua vida, ao que Fígaro responde sobre as suas experiências de letrado, num mundo fértil em intriga – Madrid no século XVIII – em nada diferente dos espaços de intriga destes tempos, diz-se que até por cá, entre os nossos, mesmo sem corte:
Fígaro: «- Vendo em Madrid que a república das letras era a dos lobos, sempre armados uns contra os outros, e que, entregues ao desprezo aonde este risível encarniçamento os conduz, todos os insectos, os mosquitos, os primos, os críticos, os “maringouins”, os invejosos, os jornalistas, os livreiros, os censores, e tudo o que se atira à pele dos infelizes homens de letras, acabavam de destroçar e de sugar a pouca substância que lhes restava; cansado de escrever, aborrecido comigo, desgostoso dos homens, cravado de dívidas e com pouco dinheiro; por fim convencido de que o útil provento colhido na barbearia é preferível às honras vãs da caneta, deixei Madrid; e, com a minha bagagem a tiracolo, percorrendo filosoficamente as duas Castelas, a Mancha, a Estremadura, a Serra Morena, a Andaluzia; acolhido numa cidade, prisioneiro noutra, e em toda a parte superior aos acontecimentos; louvado por estes, criticado por aqueles; optimista na maré boa, suportando a maré baixa; troçando dos parvos, arrostando os maus; rindo da minha miséria e fazendo a barba a toda a gente; vedes-me enfim estabelecido em Sevilha, e prestes a servir de novo Vossa Excelência em tudo o que for do seu agrado ordenar-me.
O Conde: Quem te deu uma filosofia tão alegre?
Fígaro: O hábito da desgraça. Apresso-me a rir de tudo, com medo de ser forçado a chorar.»


Vem o texto mal a propósito de um texto de Vasco Graça Moura – “Andrajosamente Sós”, colhido no DN deste Dia dos Mortos, apelidados de Fiéis Defuntos, provavelmente os únicos a guardarem fidelidade nesta época de hipocrisias – como sugestão para um maior optimismo que cubra a visão quase direi obscena que VGM se encarrega de nos transpor, indiferente aos que vão lutando por quebrar tal malefício, aliás, de longa data previsto, até mesmo pela minha amiga e por mim que a vou carinhosamente acompanhando nas discussões sobre as desgraças nacionais, embora ultimamente nos abstenhamos mais disso, por mero derrotismo.
Alguns passos desse decisivo texto de VGM:


«Portugal deixou de ter condições morais, sociais, culturais, económicas e políticas para ser independente. É compelido a ir a reboque, a acatar o que lhe é imposto de fora, a dar o corpo ao manifesto, a arquejar sob a carga fiscal.
A população vai ficar agrupada em magotes de macambúzias criaturas à deriva. É uma gente desgovernada que perdeu toda e qualquer noção dos valores e da sua própria história, cuja ligação à língua que fala e à sua própria tradição cultural se tornou um desconchavo inqualificável, cujas qualificações não prestam para nada, cuja economia está destruída, cuja qualidade de vida, já de si escassa, se foi para não voltar. O Estado sustentava-lhe a maior parte dos vícios e agora deixa de poder fazê-lo.
« … Se as coisas chegarem a um certo extremo, o Governo não terá força para fazer acatar as medidas que anuncia.»



E depois de pontuar a falta de convicção governativa na actuação contra as forças armadas e as policiais, conclui:
«…E se houver muitas fitas nestas áreas, que ninguém tenha dúvidas: A Europa fechará a torneira de vez.»



Aponta seguidamente a pantominice de um PS dividido entre enjeitar as suas responsabilidades na crise e o seu dever de cooperação com o Governo no cumprimento das responsabilidades que partilhou relativamente às imposições da troika.



«… Os partidos radicais vociferam a torto e a direito….»


Não se lhes dá a destruição do país, nunca se lhes deu, por isso propõem greves. Com autoridade e seriedade hipócrita.



«… Entretanto, na Europa prepara-se um escanzelado federalismo financeiro da zona euro, comandado pela Alemanha, sem atender aos outros aspectos estruturantes de um sistema federal…»



Estes têm a ver com as divergências culturais, económicas, sociais, muitas vezes conflituais entre os Estados vizinhos, e, apesar da matriz cristã comum, tal não impedirá o desastre final da zona euro:
«… Será a alavanca alemã a comandar as operações, a ditar a política financeira, a política económica e a política externa, a sobrepor-se às veleidades nacionais dos Estados membros. A França voltará a encolher-se. A Inglaterra assobia para o lado. A Espanha e a Itália ficam a olhar. Até a Grécia dirá que não é… a Grécia. A história repete-se. Ficaremos andrajosamente sós. Quando a Europa puxa o autoclismo, a independência e a soberania de Portugal vão pelo cano abaixo.»



Lembrei-me do texto d’ «O Barbeiro de Sevilha» para aconselhar alegremente a todos os que atravessam crises económicas, como o Fígaro atravessou, a tornarem-se barbeiros como ele, mesmo nas nossas terras portuguesas, para colherem alguns proventos.


Mas como as navalhas de barba já não são tão necessárias hoje, ultrapassadas pelas giletes de uso individual, adopto, todavia, idêntica filosofia do Fígaro, que é talvez, a filosofia da nobre Alemanha, mandando-nos a todos, antes, cavar batatas.

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