quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Quadras saturnianas

- Ainda me lembro quando eu fiz de anjo, era eu e a Maria Silva. Gostava de voltar ao Carregal, para ver a Maria Silva.
- Ó mamã, mas a Maria Silva já não existe!
Admirou-se, presa às suas evocações da festa em que ia vestida de anjinho ao colo do pai. A Maria Silva também ia ao colo do pai dela, mas ela foi a primeira a ser içada para o colo do seu pai, explicou com a satisfação de quem se habituou a reivindicar prioridades e importâncias, o pai tendo herdado a maior parte dos seus bens de morgado de casa abastada, com fartura de terras, juntas de bois, rebanhos, e a égua que o transportava.
E a reza do “Padre-Nosso pequenino” seguiu-se à descrição de quando era muito pequena, mas maior que o filho do Artur, o Sebastião, pois já falava, embora não localizasse a reza nas alturas da procissão:


“Já os galos cantam, cantam
Já os anjos se levantam,
Já Nosso Senhor vai na Cruz
Para sempre ámen, Jesus.”


- Eu fui duas vezes vestida de anjo, os meus irmãos iam comungar. Nós éramos para passar ao pé das velas e das imagens no camarim, era muito lindo.
E as recordações deslumbradas acodem, da vez em que, para imitar os homens que estavam a matar o porco, a prima dela, Gracinda, e o seu irmão Carlos foram buscar uma faca e uma galinha que mataram para treino de vida futura.
Lembra ainda o casamento do irmão Manuel com a Rosinda, no qual se ajustou o noivado do irmão Américo com a Maria José, irmã daquela, os quais depois partiriam para Moçambique, já casados:
- O meu irmão Manuel era um artista muito grande. No casamento dele matou-se uma vitela muito grande, encheram-se várias padelas …
Assim como vive presa ao seu passado no lar paterno, também os sabores lhe vêm, numa revivescência de quem preza ainda a comida saborosa, talvez avivada pelos programas televisivos sobre a cozinha portuguesa.
Mas a consciência das realidades frustrantes ou enganadoras lhe acodem nos cantares seguintes:

Quando eu era rapaz novo
Trazia sapato branco.
Agora que sou velhinho
Nem sapato nem tamanco.

Toda a vida fui pastor
Toda a vida guardei gado
Tenho uma chaga no peito
De me encostar ao cajado.


- Esta é alentejana. Agora já não se ouve ninguém cantar nas terras.
- Como sabes, se não estás lá?
Mas a minha mãe não está completamente alheia às questões da desertificação dos campos, e fala com consciência nas mudanças. E seguiu-se a referência aos cantares ao serão, imagem dos trabalhos finais do dia, ou as cantiguinhas maliciosas sobre os amores no recato da noite escura:

Ai ciranda, ai cirandinha,
Nós vamos a cirandar
Com esta estriguinha e outra
Depois vamo-nos deitar.

Ai ciranda, ai cirandinha
Eu hei-de ir ao teu serão
Fiando uma maçaroca
Do mais fino algodão.

O sete-estrelos vai alto
Mais alto vai o luar
Mais alta vai a ventura
Que deus tem para nos dar.

- Ó luar da meia-noite
Quando hás-de cá voltar?
- Agora não, que faz escuro,
Deixa dormir o luar.


E a minha mãe conclui amplamente, como que apanhada pelos desfalques na sua memória, a caminho dos 105, única que resta já dessas figuras do seu passado familiar, com quem fala diariamente, nos reencontros da sua ternura.
- Havia muitas cantigas, mas estou desactualizada. Eu sabia, mas varreu-se-me da memória.
E hoje que são os 41 anos do Artur e os 6 da Beatriz, tio e sobrinha, meu filho e minha neta, neto e bisneta da minha mãe, lembrei-me de lhes contar estas histórias simples de um viver de outrora agora, histórias de uma vida e de uma saudade, largamente em relevo, para nosso espanto.
Como bênção protectora, um pai-nosso pequenino que se derramasse sobre o filho e a neta hoje aniversariantes, e sucessivamente sobre os meus filhos e cônjuges e netos, na estrada que Saturno vai desenrolando.

3 comentários:

Por AmaisB disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
AJS disse...

Obrigado Mãe e Avó
Pela bênção concedida
De tempos idos vividos
De memórias soltas tecida

Obrigado Avó
Pelas lembranças de outrora
São como sal para minha alma
São a fogueira que arde sem demora

Obrigado Mãe
Pelas histórias de Amor
Pela lembrança sempre presente
Em mais um ano passado sem temor

Anônimo disse...

Obrigada, Artur, pelo esforço
Que te mereceram as tais evocações
Que um furo fizeram provocar
No teu grande rol de ocupações
Que incluem os teus filhos com saber,
Mas que pudeste de momento interromper
Para a bonita expressão do teu discurso.