sexta-feira, 17 de junho de 2011

“Por este mundo acima”, de Patrícia Reis

Um livro que o meu filho Ricardo exigiu que lesse, condenando as minhas inércias, as minhas fixações no leque dos clássicos, com gosto relidos, ao que ele diz ostracizando a modernidade, fechando os olhos ao progresso das técnicas narrativas trazidas pelos novos valores literários, presa ainda a conceitos que valorizam a ficção, a imaginação, os enredos bem concebidos, com o seu quê de suspense, sem mastigarem obsessivamente a psicanálise e os mundos dos conceitos, das vivências, da intelectualidade, da modernidade, com os condimentos necessários condenatórios das monstruosidades sociais, tal a pedofilia incestuosa no livro de Patrícia Reis, ou a liberdade das relações entre os amigos, sem os conceitos moralistas que presidiam, dum modo geral, à ficção tradicional.
Trata-se de uma mistura de realidade e ficção. Ficção imaginada sobre uma realidade hipotética: um cataclismo arrasador, semelhante aos muitos cataclismos que hoje em dia sucedem, quer trazidos pelas mãos dos homens, quer lançados pelas fúrias da natureza, como há milhões de anos já acontecia na Terra, ponto minúsculo na imensidão do universo em movimento. O livro não se fixa em descritivos aterradores, vai-os apontando superficialmente através das necessidades pessoais que se vão impondo, no mundo do caos estabelecido, deixando transparecer o pesadelo das monstruosidades vividas, na ausência quase total das condições para sobreviver.
E, na trama ficcional, o recomeço previsível em desconforto, de carências e memórias, listas de carências, destacadas na dinâmica narrativa, dos primeiros socorros, dos alimentos escassos, das qualidades e defeitos das pessoas mortas, bem ou mal amadas.
E as personagens vão surgindo, em farrapos de frases antigas, em evocações do narrador Eduardo, ligado ao seu universo de amizades anteriores à destruição e o clarear dos comportamentos, através dos escritos encontrados. A busca, pelos escombros, do narrador Eduardo dos seus amigos de outrora, Sofia, Jaime, Lourenço, as relações daquela com Rui, com Duarte, um retomar constante de apelos da memória, de farrapos de frases ou gestos, em técnica circular, que vão caracterizando as várias personagens desse mundo focalizado, no outrora mais ordeiro, ressalvando o relato aterrador na sua simplicidade, da relação de Sofia criança com o pai perverso, justificativa da sua rebeldia, posterior, a preconceitos…
O reaparecimento – numa técnica de estruturação circular – do texto inicial sobre Pedro menino, encontrado vivo nos escombros, morta a mãe, que sempre zelara pela sua educação, texto que indicia a importância deste na ficção, mortos os amigos de Eduardo, que em vão os procura, nos destroços da cidade arrasada.
O número 7, segundo a estrutura externa – A última caixa secreta – é em discurso directo, o diálogo com os amigos mortos, novos traços caracterizando-os de confrontações anteriores, sobre os seus conceitos, os seus trabalhos, as suas relações familiares, Sofia a confidente principal, aquela a quem todos amavam, os fantasmas dos seus mortos que o obsediam, as caminhadas em busca dos lugares passados, dos amigos mortos, as descobertas do segredo do cancro de Sofia nos cartões encontrados na sua casa, a descoberta do livro do miúdo do Lourenço – “a única esperança”, a decisão de ficar com o miúdo Pedro, que diz ter oito anos.
O número 8 da estrutura externa, como segunda parte – A vida de Pedro – inicia-se com a informação, pelo narrador omnisciente, sobre o livro que Pedro começara a escrever, sobre o cadáver de Eduardo que Pedro conduzira ao local das cremações, e, em analepse, sobre a relação de ternura e de cumplicidade entre ambos, sobre as histórias de Eduardo, sobre os gangs a que Pedro poderia ter pertencido, não fora o ter sido salvo por Eduardo, a descoberta do manancial de leitura da biblioteca pública, além da biblioteca da avó de Eduardo, os seus gostos itinerantes, e o seu olhar sobre o novo mundo, o novo apego à vida de Eduardo, pela mão de Pedro, um novo mundo em formação, o recontar de um mundo antigo de ditadura que uma revolução eliminara, a transformação de Eduardo num ser de bondade, porque “as crianças não precisam de maldade”, o pontificado deste com o seu saber, a sua memória, novo Édipo numa nova Colona em formação, que gradualmente se vai povoando com novas personagens, várias personagens, numa técnica quase diria pontilhista. Como as histórias bíblicas do Génesis.
Um livro elegante, com o charme da leveza do seu discurso saltitante, o livro do olhar, um novo olhar sobre as coisas, que vai focalizando, num renascer imperioso para um mundo novo, após o apocalipse, no primitivismo do recomeçar.


O poema do Ricardo que tenho no meu blogue – "Elevador da Glória" – será uma forma de homenagear o livro de que ele gostou, como fruto da sua sensibilidade e ternura por esse velho elevador dos seus passos diários pelos Restauradores, revelador das suas qualidades desde menino indiciadas, e que se desvaneceram (segundo as perspectivas dos que o amam), nos condicionalismos de outras aventuras libertárias, condizentes com as realidades sociais e políticas também bastante caóticas que ele atravessou na sua adolescência.
É que o Ricardo deu vida a uma personagem da vida lisboeta num poema que merece destaque - pelo descritivo sintético e conceituoso, que tanto traduz o dom de captação visualista de um real sonoro e dinâmico, como a interpretação sensível do mundo humano, no deserto das suas solidões, na simpatia das suas afeições, na eficácia da sua missão, no ranger empenhado da sua arrastada velhice. Um símbolo. Sintético.
Elevador da Glória
Sobe, lento, soa, cheio.
Guincha em seus suaves rodados.
Sobe, lento até ao meio
cruza-se, chega ao outro lado.
Une a cidade baixa pelo esforço,
até à alta.
É a glória a subir:
segue, cheio, velho, cansado.
Não esmorece um segundo,
trepa, lento; é ousado.
Sobe e sabe que, do outro lado,
espera tempo de real descanso.
Quando desce até à foz,
bem mais leve, chova ou não,
segue, lento, chama, chia,
reencontra o seu irmão,
cumprimenta, passa, desce,
traz estampada a solidão,
continua em seu rodado.
Pára, ronceiro, de supetão.


Também o livro de Patrícia Reis igualmente parece simbólico de um novo tempo que ela acha imprescindível implementar – o tempo da abertura para a consciência dos valores do intelecto e do amor.

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