quinta-feira, 3 de março de 2011

A riqueza da ciência / A ciência da riqueza

A vantagem da ciência” é o título
Que La Fontaine dá a uma sua história
Não dos costumeiros animais,
Mas de seres racionais,
Que são sempre os mais funcionais
Nas coisas fundamentais da existência
Quais sejam as da sobrevivência,
E a complementar subserviência.
Vejamos então esta “Vantagem da Ciência
Que prova com muita pertinência
Que o estudo resolve tudo,
Embora muita gente creia
Que se trata de inútil panaceia
Para enganar os simples:

“Entre dois Burgueses duma cidade
De muita qualidade,
Um diferendo se desencadeou que potenciou
Sobretudo a ironia
Do mais bem dotado
Em riquezas materiais,
- Embora mais desprovido
De dotes espirituais -
Pois que o mais letrado não podia
Fazer alarde
Da sua sabedoria,
- Já por modéstia, já por cortesia -
E bens materiais não possuía.
Mas o ricaço pretendia
Que todo o homem sábio deveria
Homenagem prestar ao poder
Material.
Bem parvo era, por sinal ;
Porque, porquê prestar culto
A bens desprovidos de mérito?
A razão parece-me ínfima.
“Meu amigo - muitas vezes ele dizia
Ao homem culto -
Vós achais-vos pessoa de vulto,
Mas dizei-me, tendes farta mesa
Com franqueza?!
De que serve aos vossos congéneres
Ler sem cessar
Se eles vivem num terceiro andar
E se vestem de igual maneira
Em Julho como em Dezembro,
Tendo apenas por lacaio
A sua sombra foleira?
A República está mesmo interessada
Com pessoas que não gastam nada!
Eu não conheço homem mais necessário
Do que aquele cujo luxo espalha inúmeros bens.
E se nós o usamos, sabe-o Deus!
O nosso prazer ocupa
O artesão, o vendedor, o que fabrica a saia,
E aquela que a usa, e vós, que dedicais
Aos Senhores importantes das Finanças
Maus livros pagos com benemerência."
Estas palavras cheias de impertinência
Tiveram a sorte que mereciam.
O homem letrado calou-se,
Muito havia que dissesse.
A guerra vingou-o, melhor que qualquer sátira
Que fizesse.
Marte destruiu o lugar onde cada um vivera.
Ambos deixaram a cidade, que desaparecera.
O ignorante ficou sem asilo,
Em toda a parte foi injuriado.
O outro, em todo o lado,
Recebeu algum favor
Por conta do seu saber.
Isso decidiu a questão.
Deixai os parvos falar:
O saber colhe sempre galardão.”

Ora esta questão
Que assim valoriza a razão,
Não sei se por cá colheria
Tanta empatia.
É que o nosso existencialismo
Faz que a tradição
Do culto da Razão
Seja soterrada pelo materialismo,
Como afinal já era
No século do racionalismo,
Apesar do La Fontaine,
E de outros defensores
Do saber ser
Contra o saber fazer.
Porque hoje, o que mais se vê
É que o dinheiro é o verdadeiro
Esteio da razão
E o estudo é treta,
Para pateta.
Pois por cá até
- Pura aberração! -
A língua mãe foi adulterada
Sem nenhum pudor,
Por conta do poder
Material.
Além de outras anomalias
Que se poderão citar,
Que o dinheiro faz criar,
Em libertina escalada irracional,
Sem ninguém se importar.
Apesar dos velhos quezilentos
Conservadores atentos.

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