domingo, 27 de março de 2011

Menina de lá d’além…

E a minha mãe contou, dos tempos em que guardava os gados, juntamente com as amigas com o mesmo ofício – do lado de lá do rio do Inço, no Vale dos Barreiros, ela com a Maria Pia, do lado de cá do rio, no Crasto, (passando pelo Cabeço Murado, Souto, Ribeira das Vinhas) a Rosinda do Bispo, a chefe, por ser a mais velha, sua futura cunhada, que ia com a Palmira do Castanheira, filha da tia Rufina, irmã do seu pai, e a Eurides do Guieira - pastoreando e intercomunicando-se com a cantiga de “loar”, para reconhecimento mútuo. A menina de lá d’além respondia, e as vozes, avolumadas pela barreira dos montes, eram perfeitamente audíveis, e assim as pastoras desfiavam os passos das suas andanças, em “facebooks” primitivos, não de tipo visual mas acústico, remontando, provavelmente, aos tempos recuados da transumância, de eco onomatopaico audível no próprio estribilho fónico precedendo o verso seguinte da comunicação:
Eh! Lá! Ou! em… Menina de lá d’além!
Eh! Lá! Ou! ais… Diz p’r’a onde é que tu vais…
Eh! Lá! Ou! eiras… Vais para as Corgas Salgueiras?
Eh! Lá! Ou! oite… Ficas lá até à noite?
Eh! Lá! Ou! is…
Ó menina ora diz… Ou…
A loar a loa lou…
Outras mais coisas contou, com uma animação extasiada, de quem aprecia auditório - dos cabritinhos que nasciam nos montes e elas transportavam ao colo para as quintas, como a do Vale dos Barreiros, onde havia figueiras de todas as qualidades, do choro da nossa futura tia Rosinda quando lhe mandavam deixar no curral da sua casa as cabras e os cabritinhos que ela sabia que iam ser mortos, para as panelas, no estrume que o gado fazia, bom para as terras, nos lugares onde elas iam roçar carqueja para as vacas comerem, da primeira carta que a futura sua sogra, de Destriz, ponto extremo das suas andanças com os rebanhos, lhe entregara, do meu futuro pai, chegado recentemente à terra, ido de Macau, onde fizera a tropa e estudara… Descreveu o Cabeço Murado como uma serra só de penedos, que dum lado dá para o rio, onde há moinhos de maquia, e do outro é o caminho do Crasto, com o Rochão, uma planície de terra, e mais a Quinta do Bacelo, e o Forno dos Mouros, uma cavidade na rocha… E cantava a cantiga que se cantava na terra:
Da banda d’além do rio
Tenho eu os meus amores,
É o padre Santo António
Mais a Senhora das Dores.
Contava a minha mãe e revivia as saudades nas recordações tão presentes no seu espírito, a passos largos para os cento e quatro anos. E a gente escutava e espantava-se de uma memória tão precisa, que outras quadras, algumas das quais impregnadas de secular malícia popular, tem vindo a desbobinar, nestes últimos tempos:
Sete estrelas, sol e lua
Tudo p´r’ó mar embarcou.
Se não era do teu gosto,
Meu amor, quem te obrigou?

Ó minha mãe quem me dera
O que a minha alma deseja:
As portas do céu abertas
Como estão as da igreja.

Está o céu estreladinho
De estrelinhas amarelas
Já o rei não quer soldados,
Já se acabaram as guerras.

Ó minha mãe quem me dera
Minha mãe quem me daria,
Um cantinho lá no céu
Ao pé da Virgem Maria.

Caçador que vai à caça
Não vai lá pelo coelho,
É só pela rapariga
Do saiotinho vermelho.

Se ouvires dizer que eu morri
Não tenhas pena, meu bem,
Que a morte é tão desgraçada,
Não causa pena a ninguém.
Não, a última quadra, não sei se recordada em assustada previsão de partida, não a aplicamos à nossa Mãe, ainda, a quem admiramos a memória e desejamos muitos mais anos de vida, neste domingo dos seus 104 anos, 27/3/2011.
Preferimos respeitar-lhe a saudade, e mandar um beijo dela para as suas companheiras da mocidade, “meninas de lá d’além” – a Rosinda, a Eurides, a Maria Pia, a Palmira. “Eh! Lá! Ou!”



Nenhum comentário: