domingo, 6 de fevereiro de 2011

“Come, irmão”

Esta ouvi eu ontem à minha mãe, pela primeira vez, estávamos – a minha irmã e eu – sentadas em final de tarde, junto dela, comodamente instalada na sua cama e recordando, o que faz com cada vez mais pormenor, à medida que avança para os 104, e que desdenha de outros interesses que não se relacionem com os espaços das suas vivências, mais presentes e ternos, os da sua infância.
“Antigamente estes ricos enriqueciam à custa dos pobres, que trabalhavam quase de graça para eles. Em Cambarinho, em Paredes Velhas, em Oliveira de Frades… Ganhavam mais os que levavam farnel de casa, ganhavam muito menos os que comiam do magro tacho que ia de casa do patrão, e era comido no campo.
Contava-se que havia um homem rico em Cambarinho, para quem trabalhavam uns tantos da aldeia e o ricaço, à hora do almoço, que então se chamava jantar, costumava levantar-se após emborcar rapidamente o alimento, para induzir os comensais a fazer o mesmo, erguendo as mãos e os olhos gratos: -“Graças a Deus para sempre. Já estou farto, e toda a minha gente”. Mas um esperto, de barriga vazia e com idêntica devoção, voltando-se para os demais trabalhadores, exclamava arrebatadamente: “- Come, irmão, se eles estão fartos, nós ainda não.”
E este povo finório da história da minha mãe leva-me a Fernão Lopes, ao povo dos nossos primórdios, que ajudou a construir uma nação e manifestava democrático à-vontade junto do seu mestre de Avis, cuja pusilanimidade na questão com Leonor Teles o incitava a fugir para Londres – no que o povo não consentiu: “Bom Londres é Portugal”, foi o seu grito de incitamento atrevido, embora amistoso.
Ouço e vejo as notícias e imagens do povo egípcio, na sua revolta de explorado milenário, e admiro-o nas suas manifestações revolucionárias, embora não deixe de admirar também a coragem de Mubaraque em se manter no que considera o seu posto, sujeito, assim, a violências e crueldades imprevisíveis.
Não vejo que entre nós possa acontecer nada semelhante, apesar do sofrimento que por aqui grassa, de despedimentos sucessivos, de gente passando fome, de jovens sem esperança, num governo onde se promete e se mente, onde se enriquece pela fraude, onde o povo perdeu a vitalidade dos tempos do início, e das rebeldias finórias de maltratado da história da minha mãe.
Não, o povo de agora não é solidário. Se tiver possibilidade, come sozinho, à semelhança do que vê. E dará a seguir graças a Deus, com idêntico arroto.

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