terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Final de ano

Às vezes falamos dos programas televisivos, mas eu deixo escapar muitos de diversão, que a minha amiga descreve com a volubilidade e o visualismo suficientes para deles ficar inteirada. O meu estado de espírito de pânico e stress fazem-me optar por programas mais elucidativos sobre a evolução do nosso mundo em que a ameaça do aquecimento não é a menos despicienda neste afundamento gradual.
Mais uma vez, a Quadratura do Círculo – um programa de gente portuguesa que nos enche as medidas, por ser erudito e com a malícia educada de quem sabe escutar, embora discorde, por motivos ideológicos, partidários, ou de sensibilidade. Pacheco Pereira inegavelmente o mais letrado, fundamentando as suas asserções com um rigor não isento de subjectividade, num pensamento cujo desenvolvimento escorre maravilhando os leigos, mas cujas capciosidades não escapam à argúcia dos companheiros, como, aliás, sucede com cada um dos intervenientes aquando da sua própria participação, em que são habilmente interpretados e por vezes desmascarados pelos opositores. Lobo Xavier encanta, pela justeza de princípios aliada a uma experiência de vida em que são perceptíveis o estudo e o trabalho. Também António Costa se revela como uma personalidade firme e enérgica, a quem os anos de acção governativa contribuíram para um saber de dificuldades e de impasses, mantendo uma estimável lealdade pelo antigo chefe de fila. Três bons argumentadores, numa hora de antologia que nos eleva o sentimento pátrio, num programa perfeitamente moderado por Carlos Andrade, que nele se apaga para fazer sobressair os seus três comentadores, sem, contudo, deixar de intervir com o propósito pertinente das suas questões.
Também escutamos O Eixo do Mal, um programa arejado pela graça e irreverência, embora por vezes nos deixe um amargo de boca pela parcialidade nítida dos intelectuais de esquerda nos seus pontos de vista agressivos, um Pedro Marques Lopes balançando-se incomodamente entre a pretensão de defender o partido governativo e a de seguir subservientemente os seus parceiros intelectuais, Luís Pedro Nunes o único que parece isento, mau grado a desconexão dos seus comentários jocosos que o tornam o bufão da corte, mas o de sentimentos mais justos e adequados à tragédia destes tempos, considerando o aperto de um governo que se vê forçado a propor reformas de escândalo por motivos óbvios de uma conjuntura por outros criada, o que os comparsas intelectuais preferem ignorar. Uma mulher nele sobressai – Clara Ferreira Alves - pela manipulação elegante do discurso sábio e aparentemente sensível, mas prejudicado pela demasiada presunção, no seu pedestal de unilateral desdém.
Outros programas políticos nos acodem, de Marcelo Rebelo de Sousa, programa corrido, de quem tem sempre a última palavra, uma palavra chã, simpática e sem contestatários, o de Nuno Rogeiro querendo brilhar nas entrevistas a personalidades gradas do mundo, outros sobre as políticas económicas com comentaristas manipulando os seus discursos de acordo com as suas ideologias políticas ou as suas sensibilidades, que nos fazem aderir ou repudiar, estes últimos quando soam a disco partido de pseudo defesa dos desprotegidos, quais cavaleiros andantes, sem os ademanes aristocráticos, contudo, dos Dom Quixotes de antanho, porque seguidores virtuosos das democracias igualitárias.
São personagens que nos acompanham, que merecem que os evoquemos no réveillon que se aproxima, pelos esclarecimentos que transmitem, companheiros do dia-a-dia das angústias que vamos vivendo, como nunca sonháramos possível.
Mas também queremos acreditar num Governo que parece sério e trabalhador. E nas suas promessas de solução do pesadelo. Assim o quisessem todos e não trabalhassem insensatamente para a completa paralisia.
Falta-nos uma “Edelweiss” simbólica que nos despertasse cada dia para o pensamento de uma alma pátria forever. Entre nós, já nem o rosmaninho abunda, destruído pela auto-estrada.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Homenagem sentida

Falámos, a minha amiga e eu, naquele capitão do partido socialista que olha triste e compostinho, numa vista à miss Piggy, pálpebras descaídas sobre umas pupilas que reflectem a compaixão pelo mundo – o mundo português, esmagado pela onda drástica de extirpações sem dó nem piedade nas finanças de cada um - e que deglute com verdadeiro prazer os seus próprios discursos exaltados contra tais ignomínias, que uma próxima subida ao poder faria imediatamente esquecer, já de olho aceso.
A minha amiga, embora concorde com o discurso da exaltação anti-esburgadora, que é como quem diz esbulhadora, dos novos governantes, explicita preferencialmente a matreirice de quem fala para ganhar eleições e que por isso se assume como o salvador da nação, mastigando os discursos da piedade e da condenação, a uma plateia que o vai escutando cremos que sem grande convicção.
Seguro é mais um menino, bem vestidinho e aprumado. E triste, naturalmente. Não que lhe falte o alimento a ele, mas sofre por todos aqueles a quem o alimento falta. Sobretudo se por culpa de um Governo tão diabolicamente indiferente ao esmagamento do povo. Governo, é certo, assustado pela dimensão de uma dívida que, todavia, nem os sacrifícios impostos vão solucionar, por muito prolongados no tempo que forem. E Seguro sabe-o bem, mas olha triste, num olhar filtrante e compenetrado, enquanto expende os argumentos da exaltação contra a injustiça social que o demarcam do partido do Governo.
Mas há dias ouvi a um comentarista que, apesar da dureza das medidas governativas, as sondagens apontam para nova vitória dos partidos do Governo, e comentámos sobre o crescimento de um povo que, apesar dos discursos dos dirigentes políticos contrários, prefere o discurso honesto, embora duro, dos governantes, sentindo quanto se aplicam, nas suas tentativas de desemaranhar a teia, para lhe encontrar um fio condutor aceitável.
Já lá vai o tempo das largas multidões vociferantes. Embora manipuladas hoje pelos mesmos, ou outros idênticos, cabecilhas, que jogam preferencialmente na destruição e na confusão, num inegável espírito virtuoso de compaixão, não só aquelas reduziram de tamanho, como as suas vozes baixaram, dentro do esquema educado que o novo Governo criou.
Por isso nós nos congratulámos sentidamente ao prestarmos homenagem ao povo de que somos parte empenhada.

sábado, 17 de dezembro de 2011

Discos partidos

Disse a minha amiga a respeito daquele risonho jovem da bancada socialista, Pedro Santos, que afirmou estar-se marimbando para a dívida à Europa, e que não a devíamos pagar, no rasto do pai Sócrates. Certamente, todavia, sem os estudos que este se esforça por adquirir nas universidades por onde passa, com o conforto preciso.
- Quando estes fazem parte do conjunto, que gente é esta? Que qualidades é que esta gente tem para fazer parte dum partido? E os partidos também estão entregues a gente assim!
Eu embirro com a displicência contida no colectivo depreciativo “esta gente”, que suponho foi buscar ao salero megalómano da Clara do Eixo, e assim lho expressei. Mas ela estava encolerizada, lançada nas suas memórias de véspera:
- Eu digo uma coisa: entreguem os governos às mulheres.
Não cheguei a soltar um “Credo!” assustado, na antevisão da inflação de sensibilidades, ao lembrar-me das vozes apaixonadas e esganiçadas das nossas parlamentares de esquerda, e logo me recompus pensando nas vozes serenamente inteligentes das nossas parlamentares de direita e o trabalho consciencioso de algumas ministras. E fiquei na dúvida, pois também confio no Passos Coelho e os seus homens, que se estão a revelar com inteligência, honestidade, serenidade e firmeza, na actual conjuntura, mas, de resto, a minha amiga nem me deu tempo a abrir a boca:
- Eu ontem ouvi uma advogada, uma rapariguinha nova, num caso de crianças e de pais separados, no programa da Fátima Lopes. Um caso alarmante! Um pai que começa por difamar o novo companheiro da mãe no espírito das filhitas, aquando das suas visitas ao pai, e acaba escondendo-as, impedindo-as de irem à escola, de comunicarem com a mãe, acusando o sujeito, com quem as crianças se davam bem, de intenções pedófilas, sujeitando as crianças a observações médicas para provar a honra do homem e o direito à posse das crianças pela mãe. E depois disso voltaram para o pai, e nem a polícia acode à pobre mãe, e a nossa Justiça não anda, nem desanda.
A minha amiga estava indignada:
- E é isto no século XXI! Aquelas crianças ficam traumatizadas para o resto das suas vidas!
Lembrei-me de um texto que escrevera nos idos de setenta, a respeito da Justiça protectora dos homens, vá-se lá saber porquê, e discriminatória relativamente às mulheres, apesar dos direitos de protecção social destas e das crianças, consignados na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, e desenvolvidos sucessivamente em outros organismos legislativos.
Foi este o texto, extraído de “Prosas Alegres e Não”:
«PERGUNTAS MINUCIOSAS»
«Quando se põe uma pergunta com brilho, os espíritos das pessoas em geral deslumbram-se. As casas onde se fazem mais perguntas deste género, além das escolas, onde a maior parte das vezes, por natural timidez, elas ficam sem resposta, são os tribunais onde, pelo contrário, cada pergunta recebe duas e mais respostas, todas demonstrativas da infinita variedade das interpretações humanas.
É por esse facto, certamente, que em alguns casos onde a maioria preferiria reserva, se usa de uma desmedida prolixidade, para que se admire a argúcia nos interrogatórios a que se expõem as pessoas visadas.
É, por exemplo, o caso da legitimação dos filhos a que determinados papás de facto, pretendem furtar-se por direito. As felizes mães – felizes porque em muito destaque então – são sujeitas a um interrogatório em forma, em sala onde entra quem quer, ouve e observa quem quer e mesmo quem não quer, embora estes últimos em minoria, dada a natural e sempre fecunda curiosidade humana.
Certas mães recusam-se a responder, entendendo que para se provar a legitimidade de um filho há pormenores escusáveis.
Mas essas mães estão erradas. Porque tudo interessa a quem interroga. Para formar a tese sobre a possível filiação da criança, factos, detalhes, atitudes, caracteres, romance naturalista em suma, tem um interesse infinito.
Quantos mais argumentos encadeados sabiamente, mais o caso terá probabilidades de êxito, e a criança em questão terá então o seu pai, após a perfeita humilhação da sua mãe.
Chama-se dialéctica a esta arte feliz dos argumentos e para isso não houve outro como o nosso Padre Vieira – embora sobre outros motivos que também deram que falar. Mudam-se os tempos, e como já não temos índios nem cristãos-novos a defender, usamos a dialéctica a defender as crianças, o que é sempre uma atitude de enternecer, conquanto os meios usados o sejam menos, segundo alguns pensadores severos.
Cristo mandou que as criancinhas se chegassem a Ele, é certo, mas também obstou a que a Madalena levasse pedradas. Possivelmente só o primeiro gesto de Cristo é conhecido, ignorando-se o das pedradas.
É por se ignorar isso, com certeza, que alguns interrogatórios se fazem tão minuciosamente.»

A mulher conquistou direitos e as crianças também. Aparentemente. Porque, talvez por falta de meios mediáticos, talvez por convencionalismos inibitórios, talvez porque, apesar de tudo a Justiça funcionasse melhor, em todo o caso dantes não se punham tanto estes graves problemas de violência doméstica, de pedofilia, de monstruosidades incestuosas, como actualmente.
Mas o que se espanta é que neste ano 2011, a terminar, a Justiça não acorra célere, para salvar estas duas crianças raptadas pelo pai vingativo, entregando-as à mãe, permitindo os traumas hediondos que estão a sofrer, longe da mãe, da escola, da luz. Resta-nos pedir um milagre do Menino Jesus neste seu Natal.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Trocos para a Troika

É La Fontaine que nos vem contar,
Nada contente,
A fábula do Veado doente
A quem acudiram os veados salvadores,
Grandes impostores,
Mais para o depenar
Do que para o defender.
Isso é coisa tão comum
Que até se passa entre nós,
Dantes, orgulhosamente sós,
Que, porque estamos moribundos,
Agora humildemente acompanhados,
Pedimos auxílio aos doutores
De outros mundos
Mais competentes e preocupados,
Aparentemente,
Que nos acudiram
Decentemente,
Mas exigiram
Paga avultada,
Antecipada,
Dos pastos magros
Da pátria amada.

«O Veado doente»
«Numa terra cheia de veados, um Veado caiu doente.
Imediatamente
Muitos camaradas, para o verem,
E o socorrerem
Ou, sequer, consolarem,
Ao seu catre acorreram
Que se desunharam:
Multidão importuna!
“Eh! Senhores, deixai-me morrer.
Permiti que seja a Parca a despachar-me
Da forma que lhe é costumeira;
E acabai com a choradeira.”
De forma alguma: os consoladores
Este triste dever desempenharam,
Só quando Deus quis, o abandonaram:
Não sem que primeiro
Um copo bebessem, por inteiro.
Isto é, sem que deixassem de reconhecer,
Pelo trabalho que estavam a ter,
O seu direito a uma boa festança.
Todos se puseram a rapar os ramos da vizinhança.
A ração do Veado enormemente decaiu.
Ele não encontrou nada mais para roer
Dali em diante:
De um mal que teve, num pior caiu,
E se viu
Reduzido, finalmente,
A jejuar e a morrer
De fome acutilante.
Fica muito caro a quem por vós chama,
Ó médicos do corpo e da alma!
Ó tempos! Ó costumes!
Por mais que me farte de contra isso bradar,
Todos se fazem ostensivamente pagar.»

La Fontaine já bradava,
Prova de que se preocupava
Com o que no seu tempo acontecia.
Mas afinal,
Nada vem a ser diferente
Neste nosso Portugal
De hoje em dia:
É ou não verdade
Que a ocasião que vivemos
De tanta aleivosia,
Se assemelha bastante
À do veado doente
A quem os veados salvadores

- Os impostores! -
Se apressaram a cobrar
Para mais depressa o matar?
Nem é preciso esclarecer!
Afinal os nossos pastos

Não passam de trocos
Para uma Troika exigente,
Que não permite a estes lorpas
Um recomeço decente.
É pior do que antigamente,

No tempo do La Fontaine!

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Vésperas de Natal

Há dias foi o meu filho João que contou uma da avó. Ele disse-lhe que dava explicações de matemática e logo ela comentou:
- É da maneira que não fazes descontos para o Estado.
O João espantou-se. Como tem estado longe, não tem acompanhado as reacções da avó nas suas respostas prontas. Há pouco tempo, decifrou logo a charada armada pelo João sobre o número de bebés – três – que se encontravam ao pé da bisavó. Afirmou o João que ali estavam quatro bebés e logo a avó se denunciou como sendo o quarto.
Quando tinha a sua própria independência - ou com o meu pai, ou nos anos em que viveu sozinha, após enviuvar - raramente os netos tinham ocasião de lhe admirar o garbo, entregues eles próprios à suas próprias vivências, mas todos lhe reconheciam a força de alma e até a ginástica, contando episódios burlescos ou graciosos que os marcaram, como quando duma assentada apagou as minhas sessenta e tantas velas de aniversário, adiantando-se à minha hesitação de consciência de incapacidade.
Hoje, a minha mãe mostra-se uma pessoa muito exagerada no que toca à exigência de atenção. Creio que é por esse motivo que atravessa fases de diferente dimensão psicológica, alternadamente rindo, cantando, chorando, rezando, falando com os antepassados ligados à sua infância ou mais recentes, criticando, quando nos apanha a jeito. Percebo que é para chamar a atenção e desculpo isso, agarrada que estou ao computador que me dá a minha própria libertação daquilo a que ingratamente nem sempre dou apreço – uma vida limitada ao espaço caseiro, o que me deveria alegrar, porque, afinal, o mundo exterior chega-me a casa, através de imagens magníficas que a internet ou a televisão proporcionam, ou as leituras trazem, sem a carga de incomodidades das deslocações, para além de que o meu altruísmo não tem suficiente arcaboiço para enfrentar in loco o panorama das agruras mundiais. Também por isso admiro o arcaboiço dos repórteres mediáticos, que as enfrentam.
Nem sempre a minha paciência é de doçura, como a da minha irmã, mas julgo que é por isso que a minha mãe rejuvenesce – fisicamente porque come razoavelmente, mentalmente porque expende argumentos, às vezes altissonantes, para corresponder, sobretudo, aos meus, de cariz idêntico, quando o riso não consegue aflorar, no stress quotidiano. Quando os nossos argumentos não lhe convêm afirma que não ouve, e assim ganha sempre a partida.
Neste momento está no trenó do menino que o Zeca Afonso leva. Passou agora para o rouxinol de Bernardim, mas a tarde ainda vai no início, pois acabou de acordar, os fados de Coimbra, as canções da nossa mocidade, as canções da sua infância, tudo isso vai ser percorrido, que a tarde está soalheira, antes do lanche:


Ai, ceguinha, só tu és o meu pensar
Vem comigo, pobrezinha,
Ai que lá por seres ceguinha
Tens aqui com quem brincar.

Desde então todos os dias
Ao chegar pela tardinha
Vinha logo pró pé dela
E eu brincava co’a ceguinha…
Parece que a ceguinha morreu, a minha mãe não soube cantar o resto, que metia um terceiro comparsa na brincadeira.
Mas já passou para a Santa Combinha, que mistura com as suas recordações da passagem por Cambarinho, o grupo cantando ali uma espécie de Janeiras, com menos resultados práticos do que na altura própria destas:

Senhora Santa Combinha
Para lá vou caminhando.
Minha boca se vai rindo,
Meu coração vai chorando.

De lá venho eu agora,
Senhora Santa Combinha,
De lá venho eu agora,
Em manguinhas de camisa
Tocando numa viola.


- Quando vínhamos da Santa Combinha, ao passarmos por Cambarinho, a gente cantava, mas ninguém vinha às portas para não terem que oferecer nada. As pessoas de Cambarinho devem ser muito forretas:


Estas casas são caiadas,
Forradas de papelão,
Aos senhores que vivem nelas
Não faltam vinho nem pão.

À entrada desta rua
Logo por ti perguntei:
Não me deram novas tuas,
Com vergonha não chorei.


Nem sempre parece notar as atenções que a rodeiam, mas por vezes manda uma sentença, como piropo escondido.
- Mãe cuidadosa faz a filha preguiçosa! Mas aqui foi ao contrário: foi a filha que tornou a mãe preguiçosa.
E logo a vangloriar-se, que não deixa os seus créditos por mãos alheias, embora a gente troce do exagero:
- Mas eu comecei a trabalhar desde os cinco anos.


Outras canções lhe acodem, que nós nunca ouvíramos:


-Papagaio, pena verde,
Empresta-me o teu vestido
- O meu vestido são penas
Em penas ando metido.

Sou vendedeira de rendas
Ai, cada metro um tostão
Tenho saias de entremeios
Também tenho o meu cordão

Sou vendedeira de rendas
Ai cada metro dez réis
Tenho saias de entremeios
Também tenho os meus anéis.

- Já despejei o meu reportório. Tinha estas cantigas para cantar.


Mas outras lhe acodem, mais do meu conhecimento:

- Vai tu, vai tu vai tu, vai ela,
Vai tu pr’à casa dela…



Neste momento está no jardim com que Max define a Madeira:


… É filha de Portugal!

Não creio que o Jardim concorde com tal asserção de patriotismo, nem do Max, nem de uma pessoa que airosamente vai a caminho de mais um Natal, como todos vamos, e dos seus 105, o que é mais difícil.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Biblioteca de Verão

Na colectânea de livrinhos – Biblioteca de Verão - contendo pequenos contos sob uma epígrafe que lhes sintetiza a temática, publicada pelo Diário de Notícias, na benemérita intenção de actualizarmos leituras rápidas de clássicos que algum dia nos maravilharam – ou não - conta-se um livrinho com quatro “Contos ESPANTOSOS” – de Dumas, Maupassant, Balzac e Poe – que nos levam ao mundo da ficção centrada no sobrenatural, com inclusão da profecia, caso do conto de Alexandre Dumas “As Tumbas de Saint-Denis”. Uma história sobre a profanação dos túmulos reais franceses, a quando da decapitação de Luís XVI em 1793, de que transcrevo o passo seguinte:
«O ódio que Luís XVI tinha inspirado ao povo, e que não fora saciado no cadafalso a 21 de Janeiro, tinha atingido também os antecessores da sua estirpe: quiseram perseguir a monarquia até às origens, até na tumba, e lançar ao vento as cinzas de sessenta reis. Depois, talvez tivessem também curiosidade por ver se os grandes tesouros que se supunham encerrados em algumas dessas tumbas se tinham conservado intactos como se dizia. O povo lançou-se, pois, para Saint-Denis. De 6 a 8 de Agosto, destruíram-se cinquenta e uma sepulturas, doze séculos de história.
Então, o governo resolveu regularizar a desordem; registar por conta própria as tumbas e herdar da monarquia finda com Luís XVI, seu último representante. Tratava-se mesmo de aniquilar o nome, a recordação, os esqueletos dos reis. Procurava-se apagar da história catorze séculos de monarquia. Pobres loucos que não compreendiam que os homens às vezes podem mudar o futuro…mas nunca o passado.
Tinham preparado no cemitério uma grande vala comum, como a dos pobres. Nessa vala, sobre um leito de cal, seriam atirados, como a um monturo, os ossos dos que tinham tornado a França a primeira das nações, desde Dagoberto até Luís XV. Assim satisfariam não só o povo, mas sobretudo os legisladores, os advogados, os jornalistas invejosos, aves de rapina das revoluções, cujo olhar se sente ferido por todo o esplendor, como o de seus irmãos, os pássaros nocturnos, se sentem feridos pela luz. O orgulho dos que não podem construir é destruir.»
Um texto do século XIX, com perfeita actualidade neste nosso século XXI.
Lembrei-me dele a propósito duma entrevista que ouvi ontem, por Manuel Luís Goucha, feita a Clara Ferreira Alves, sobre as opiniões desta a respeito das políticas e dos políticos de agora e de ontem, que ela expõe com o arreganho de sempre.
CFA foi uma jovem intelectual dos tempos da rebelião juvenil contra o salazarismo. As opiniões que tinha a respeito da ditadura – o tal charco de águas estagnadas que refere, onde todos eram batráquios, creio que repulsivos para a sensibilidade delicada da promissora intelectual de então, fortalecida agora creio que material e culturalmente – mantêm-se hoje, com o desprezo que a gentinha lhe merece – quer seja a gente poderosa por meios ilícitos no charco de agora, quer a gentalha do mesmo charco destituída de bens materiais ou espirituais ou ambos, como expressão definitiva da nossa nacionalidade que apenas dela exclui as Claras arrogantes do designativo diminutivo, que é o mesmo que dizer destitutivo.
Creio que os familiares ligados à sua infância, todos eles pertenceram ao charco antigo, pertencerão ainda ao charco de agora. Suponho que os amplos conhecimentos da rebelde Clara, favorecidos, certamente, pela transmissão de idênticos conhecimentos desses seus familiares esclarecidos, não deixarão honestamente de reconhecer que a maior diferença entre os charcos é a de que no charco actual se pode praticar o nudismo, coisa ainda não existente no charco salazarento, motivo, talvez, da sua repulsa por esses tempos de maior resguardo.
Mas também existe neste charco um Mário Soares dos seus amores, e um Cunhal igualmente dos seus apetites, como expoentes maiores da coragem, coerência e defesa de qualquer coisa que ela gostaria que se chamasse democracia – governo do povo, pelo povo e para o povo – e já constatou que afinal não é. Se fosse, é claro que não gostaria, como demonstra nesse seu nobre desprezo pela gentinha, embora genérica.
No charco antigo, onde um ilustre amigo e igualmente admirador de Soares – Almeida Santos - lançou uma pedrada libertadora, não sei se com o conhecimento da culta Clara, em todo o caso, havia estações agronómicas para o desenvolvimento da agricultura, segundo os textos de Miguel Mota, que lemos no blogue “A Bem da Nação”, como havia um plano integrado de transportes, segundo texto de Gonçalves Viana, no mesmo blogue, que deixou de haver no charco moderno.
O tema dos charcos poderia ser vasto, dada a fauna batraciana neles proliferante. Só estranho como a evolução de alguns dos espécimes lhes não possibilite uma visão mais clarividente, mais assente na sensatez, e num estudo menos faccioso sobre um período da história a que a história portuguesa saberá dar o devido valor, em termos comparativos com o período seguinte, de charco bem mais pútrido.
Como escreveu Alexandre Dumas, “O orgulho dos que não podem construir é destruir”. E assim, o charco actual pauta-se pela destruição progressiva, como exemplificaram Miguel Mota e Gonçalves Viana, do que fora construído equilibradamente e inteligentemente durante o charco primeiro. Ou mesmo antes.
De resto, como o citado texto exemplifica, pouco importa o apagão da história, na profanação dos cadáveres dos que a representaram, quando se prefere o coaxar melodioso – outros chamar-lhe-iam melífluo - dos que a continuam a profanar, por paradoxal que se nos afigure, em figuras frágeis que se julgam de relevo no charco de que se excluem, e que aparentemente defendem a justiça e atacam a estupidez. Ainda que também só aparentemente.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Uma radiografia antiga - Nos 48 anos do João

A mania das grandezas
Que faz que desejemos imitar
Os que sabemos poderosos,
Já Esopo a tratou,
La Fontaine o imitou
Embora, em vez dum gaio,
Tivesse escolhido um corvo,
Como émulo da águia
Que o cordeiro roubou.
A fábula primeira,
A de Esopo, a verdadeira,
Que as outras originou,
Já em tempos a li
E traduzi.
Vejamos o que disse La Fontaine
Muitos séculos depois, o dezassete:

«O corvo querendo imitar a águia»
«A ave de Júpiter, símbolo pois de poder altaneiro,
Apanhando nas presas um cordeiro,
Foi avistada por um corvo pretensioso,
Que, embora mais frágil dos rins, não era menos guloso,
E decidiu imediatamente imitá-la,
Por ser tolo. Outros diriam brioso.
Girando à volta do rebanho,
Entre cem carneiros escolhe o anho
Mais gordo e bonito,
Um verdadeiro cordeiro de sacrifício
Destinado à boca dos deuses,
Que disso tinham o vício.
O espertalhão do corvo dizia,
Olhando-o com meiguice,
Sem se aperceber da tolice:
“Não sei quem foi tua ama,
Mas o teu corpo me chama:
Servir-me-ás lindamente
De alimento providente.”
Sobre o anho, que ao ouvi-lo baliu,
Se lançou com arreganho:
A lãzuda criatura
Pesava mais do que um queijo
Bem contra o seu desejo,
Além de que o seu velo
Era duma extrema espessura,
Não muito belo,
Porque emaranhado como a barba
Do “bruto” Polifemo.
Nele se enfiaram as garras do Corvo tão tortuosamente
Que o pobrezinho não pôde dele safar-se.
O pastor chegou, que o apanhou e o enfiou à pressa
Na gaiola, para divertimento dos filhos,
Encantados com a surpresa.
É preciso sabermos medir as nossas forças;
A consequência é nítida:
Mal fazem os ladrõezinhos em querer
Os ladrões autênticos imitar:
A fábula é exemplo de perigoso engodo:
Nem todos os comedores de gentes são grandes senhores.
Onde passou a Vespa
Apenas o Mosquito resta.»

Mas La Fontaine estava muito longe do que se passa por cá
E até lá por fora, agora,
Em sítios de maiores responsabilidades
Porque de maiores potencialidades.
Aquilo a que temos diariamente assistido
É uma insólita formação vigarística,
Que ao invés de partir das águias superiores,
Parte muitas vezes
Dos pardais de estatutos inferiores,
Que vão crescendo, à medida que vão aprendendo
Com águias ou com outros pardais iguais,
E a dada altura, atingindo os estatutos convenientes,
Com as suas corrupções mais que repelentes,
Mosquitos inicialmente,
Vespas desleais, depois,
Espalham uma rede tão sombria de vilania
Que ninguém mais poderá eliminar algum dia.

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Os ventos da (des)graça

Uma fábula de Esopo
Que vem a propósito
Dos nossos costumes
De eternos acusadores
Dos causadores
Dos nossos queixumes,
Como infractores
Das regras, das leis,
Sem problemas maiores,
Pois que a elas são
Por condição
Superiores:

«O mar e o náufrago»
«Sobre a costa largado,
Um náufrago fatigado
Depois de tanto se ter esforçado
A nado,
Tinha adormecido
Esmorecido.
Pouco depois voltou a si e, olhando o mar,
Censurou-o por os homens atrair
Com o seu ar amigo,
Quando, seguidamente,
Depois de os ter acolhido,
Contra eles se lançar
E os exterminar
Furiosamente.
Então o mar
Sem se alterar,
Tomou a forma duma mulher,

Que nem sequer era sereia,
E respondeu-lhe a sorrir:
“Homem, não me culpes tu a mim
Mas sim
Os ventos peneirentos.
Porque quanto a mim
Eu sou assim,
Como me viste e me vês.
São eles que me atacam
De surpresa,
Pela frente ou por detrás
Seguindo as orientações
Dos pontos cardeais e mais
De toda a rosa-dos-ventos.
E me agitam e enfurecem
Sem qualquer delicadeza
Por mim, mulher de grande beleza.”
Da mesma maneira nós
Não devemos logo responsabilizar
Os executores dum crime
Sabendo que eles não são senão
Simples subordinados
Dos chefes de quem eles são
Apenas paus mandados.»

Isto disse Esopo outrora,
E hoje é tão verdadeiro
Como foi no tempo dele
Porque como clássico que foi,
Primeiro,
Conheceu bem o homem
Useiro e vezeiro
Nos seus malabarismos,
Mas também
Nos seus dinamismos,
Vento revoltoso
Empurrando, atacando,
E redes organizando,
Os não amigos excluindo,
Destruindo,
Afastando, num segundo,
Desse seu mundo bem fundo
E até, por vezes, imundo.
Nós, os governantes acusamos
De serem ventos danosos.
Mas realmente eles não são mais que mar
Que é empurrado sem parar
Pelos ventos furiosos
Que sopram do centro e do norte
E do leste e do oeste
Piores do que a peste.
É preciso sabermos lutar,
Mas colaborar
Com o mar
Para os ventos apaziguarmos
Da rosa-dos-ventos.
Ventos e marés venceremos
Se quisermos.
Cada um de nós esforçando-se,
Confiantes,
Competentes,
Em vez de só criticarmos,
Sem jamais nos responsabilizarmos,
Impecáveis que somos. Sempre.

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Não havia Gisele

A minha amiga começou por se negar a contar as suas impressões do país em cujos cafés de bairro gastamos os três quartos da nossa hora matinal diária, antecedente da outra meia hora no Pingo Doce, a pretexto de que queria acabar o ano “já não digo tão bem como os ladrões – frisou com autoridade – que esses vivem na fartazana e na consideração pública, mas pelo menos sem estatelanços na calçada."
Trata-se, como já tenho explicado, da calçada de que os nossos passeios portugueses largamente usufruem, com as covas e as pedras soltas a permitir a topada distraída que já nos fez malhar por mais que uma vez, pelo que agora cautelosamente andamos por elas olhando para baixo, sem cumprimentarmos os conhecidos, que imaginam motivos de oculta zanga nas nossas poses de resguardo cabisbaixo. Por isso é com sobressalto que às vezes os ergo, com uma frase que me transporta aos tempos juvenis da descompostura risonha das nossas distracções: “Fala à gente e guarda o teu dinheiro”, dizem-me, coisa que no momento actual, nenhuma de nós ambas se pode gabar de fazer, pelo menos no que concerne a segunda imposição da frase duplamente apelativa.
Mas, apesar da sua recusa em expor, a minha amiga imediatamente se pôs a desbobinar sobre o caso Duarte Lima, com muitas referências à Rosalina e à filha do Feteira, e às tramóias de Duarte Lima que se propõe devolver as acusações contra ele, acusando a Feteira filha de assassínio da Rosalina herdeira.
-“Eu queria a Rosalina viva”, defende-se a Feteira filha. A Rosalina queria tudo para ela e esta Feteira filha pôs o pai Feteira em tribunal. “O que é que eu ganho com a Rosalina morta?”, pergunta a Feteira filha, “eu queria que ela prestasse contas”.
E a minha amiga conta de uma sua vizinha de baixo, que já trabalhou com Duarte Lima e acha que não foi ele: “Pode ter a certeza, não foi ele, ouça isto que eu lhe digo.”
E a minha amiga contesta:
- Mas a cabeça não serve para pensar? O gajo apanhado em milhares de mentiras comprovadas! E depois vêm dizer que a polícia do Brasil não presta, é corrupta! Tinha um processo em 2004. Até hoje estava tudo caladinho que nem ratos, para não ser condenado por um crime antes deste. Espera aí! Aquele homem engana Deus e o Papa. Mas a minha vizinha garante que não foi ele. Porque não pararam? Um fulano que era só advogado, não era mais nada! Dá-me a impressão de que era burro. Não tinha medo? Rodeia-se de peças de arte, tem casas de preços incalculáveis, mete o filho nas negociatas… Era pobre quando começou…
- Toca os clássicos no órgão – interrompi timidamente. Uma vez foi a um programa do Herman José onde tocou órgão - ou seria piano? -e contou de forma comedida os seus infortúnios da doença que venceu. Passei a olhá-lo com mais simpatia, pois não gostava da figura, não sei se pela crueza do seu discurso sério.
-Só diz mentiras, parece um pateta, continuou a minha amiga imparável, momentaneamente esquecida do Nosso Senhor castigador. Só há uma coisa que a gente pode pensar dele como de pessoa inteligente: ele sabia que não há extradição. Mas há uma coisa que ele não sabia, quando foi ao encontro da Rosalina no Brasil: passa numa estrada com a Rosalina, estrada com controle de velocidade e apanhou várias multas por excesso de velocidade. Disse que levou a Rosalina a um hotel: “Não, aqui não entrou ninguém”, foi o que disseram. A Rosalina ia ter com uma amiga. Descreveu a amiga, Gisele de nome, fez-se o retrato robô. Não havia amiga Gisele. Só mentiras. Então é esperto ou burro?
Pobres dos burros tão meigos, que servem para apodos rebaixantes e imerecidos para eles, nas nossas fábulas de trazer por casa!

domingo, 20 de novembro de 2011

Histórias dos mil e um dias

É de Fernando Dacosta o texto que segue, com o título «Seres decentes», e em epígrafe a informação «Quando cumpria o seu segundo mandato, Ramalho Eanes viu ser-lhe apresentada pelo Governo uma lei especialmente congeminada contra si.»

«O texto impedia que o vencimento do Chefe do Estado fosse «acumulado com quaisquer pensões de reforma ou de sobrevivência» públicas que viesse a receber.
Sem hesitar, o visado promulgou-o, impedindo-se de auferir a aposentação de militar para a qual descontara durante toda a carreira. O desconforto de tamanha injustiça levou-o, mais tarde, a entregar o caso aos tribunais que, há pouco, se pronunciaram a seu favor. Como consequência, foram-lhe disponibilizadas as importâncias não pagas durante catorze anos, com retroactivos, num total de um milhão e trezentos mil euros.
Sem de novo hesitar, o beneficiado decidiu, porém, prescindir do benefício, que o não era pois tratava-se do cumprimento de direitos escamoteados - e não aceitou o dinheiro. Num país dobrado à pedincha, ao suborno, à corrupção, ao embuste, à traficância, à ganância, Ramalho Eanes ergueu-se e, altivo, desferiu uma esplendorosa bofetada de luva branca no videirismo, no arranjismo que o imergem, nos imergem por todos os lados.
As pessoas de bem logo o olharam empolgadas: o seu gesto era-lhes uma luz de conforto, de ânimo em altura de extrema pungência cívica, de dolorosíssimo abandono social. Antes dele só Natália Correia havia tido comportamento afim, quando se negou a subscrever um pedido de pensão por mérito intelectual que a secretaria da Cultura (sob a responsabilidade de Pedro Santana Lopes) acordara, ante a difícil situação económica da escritora, atribuir-lhe. «Não, não peço. Se o Estado português entender que a mereço», justificar-se-ia, «agradeço-a e aceito-a. Mas pedi-la, não. Nunca!»
O silêncio caído sobre o gesto de Eanes (deveria, pelo seu simbolismo, ter aberto telejornais e primeiras páginas de periódicos) explica-se pela nossa recalcada má consciência que não suporta, de tão hipócrita, o espelho de semelhantes comportamentos.
“A política tem de ser feita respeitando uma moral, a moral da responsabilidade e, se possível, a moral da convicção”, dirá. Torna-se indispensável “preservar alguns dos valores de outrora, das utopias de outrora”. Quem o conhece não se surpreende com a sua decisão, pois as questões da honra, da integridade, foram-lhe sempre inamovíveis. Por elas, solitário e inteiro, se empenha, se joga, se acrescenta - acrescentando os outros.
“Senti a marginalização e tentei viver”, confidenciará, “fora dela. Reagi como tímido, liderando”.
O acto do antigo Presidente (« cujo carácter e probidade sobrelevam a calamidade moral que por aí se tornou comum», como escreveu numa das suas notáveis crónicas Baptista-Bastos) ganha repercussões salvíficas da nossa corrompida, pervertida ética. Com a sua atitude, Eanes (que recusara já o bastão de Marechal) preservou um nível de dignidade decisivo para continuarmos a respeitar-nos, a acreditar-nos - condição imprescindível ao futuro dos que persistem em ser decentes.»
Fernando Dacosta

O texto de Fernando Dacosta não necessita de comentário. Também julgo o General Eanes uma figura de assinalar, pela seriedade e inteireza que revelou durante as suas chefias. Outros referem ainda hoje Sá Carneiro, como figura de igual hombridade, sendo ambos, para mais, amantes do seu país.
O certo é que tiveram a sorte de viver num período de malogros económicos e afundamento social, causados pelos estouvamentos de quem se julgava no direito de governar, sem para isso ter luzes, apesar de terem cravos. Como inteligentes e dignos, lançaram-se na tentativa de endireitar o que fora entortado pelos estouvados da botoeira colorida.
Entretanto, outros ventos de apetecível aparente bonança nos chegaram, com o abraço messiânico das novas políticas europeias. O deslumbramento foi geral, o mergulho sôfrego nos sacos azuis e quem sabe de quantas mais cores, a ninguém isentou de quantos a ele tiveram acesso – e foi o povo todo, que foi convidado a poisar os instrumentos da sua sobrevivência, além de outras classes sociais que receberam aumentos com maior ou menor critério, como chantagem para encobrir o escoamento que se ia fazendo em obras públicas, sim, e sociais também, mas igualmente nos bolsos das muitas tramas que se iam urdindo abjectamente pela posse de dinheiros que não obtivéramos pelo nosso próprio esforço.
E assim se criaram leis para proteger os “copains”, assim se criou uma Justiça também flexível aos valores da sofreguidão em curso.
E um ministro veio que, na necessidade de adquirir auxílio financeiro de um país grande e rico a quem amoravelmente chamava irmão, se não importou de ajavardar a sua língua, em nota de desprezo pelos próprios filhos desse seu país, nesse gesto de cobardia secundado pelo presidente do mesmo país.
O ministro de agora também anda em transacções, para saldar as contas, com desprezo igual pelos filhos do seu país, que nunca contaram para nada, a não ser para pagar as contas dos débitos permanentes da má governação. Entre os saldos, conta-se a RTP que vai ser privatizada.
Essa privatização significará talvez a extinção das coisas boas que a RTP fez, entre as quais o seu Canal 11, de Memórias. Por isso aproveito este dia escutando os fados do Canal 11, já na saudade de os não voltar a ver e a escutar.
Só sei que não sei como procederiam Francisco Sá Carneiro ou o General Ramalho Eanes, caso tivessem pertencido a este escol dos sortudos pós-1986.
Será que sairiam incólumes da atracção dos cantos dessas sereias promissoras que tão insinuantemente envolveram os seus continuadores?

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

A importância de se ter quiromante

Óscar Wilde não se limitou a escrever delicadas peças de teatro ou um romance – “O Retrato de Dorian Gray” - que, a par de uma humorística denúncia de caracteres colhidos na aristocrática e convencional sociedade vitoriana, nos dão igualmente retrato de ambições e mesmo perversões de comportamentos, embora sempre dentro de uma atmosfera de requinte, que cabe na preocupação estética, segundo lema do escritor dandy que foi Óscar Wilde.
Uma das originalidades que nele se colhe é um certo carácter de suspense que preside quer à acção narrativa quer mesmo à acção dramática, envoltas em progressiva atmosfera de mistério, em cenas por vezes de grande picardia, apesar do sentimento de tragédia que lhes está inerente.
O conto “O Crime de Lorde Arthur Savile” gira à volta de um crime previsto, durante uma recepção elegante de Lady Windermere - com ministros condecorados e damas bem vestidas e outros requisitos sociais e culturais - por um quiromante – o senhor Podgers – presente na assistência, como amigo da lady Windermere - o qual, depois de empalidecer ao pegar na mão de Lorde Arthur Savile, se recusa inicialmente a declarar-lhe o futuro visionado, produzindo naquele uma tempestade de receosas emoções. Instado posteriormente, e sob o efeito deslumbrado de ampla oferta de dinheiro, informa o seu consulente horrorizado de que se trata da prática de um homicídio, o futuro para ele previsto.
A trama do conto é breve, embora bem condimentada de pormenores, inicialmente centrada no descritivo dos pensamentos aterrorizados de Lorde Arthur pelas ruas sombrias de Londres, durante o seu nocturno passeio nervoso, ao sair do palacete de Lady Windermere.
O terceiro capítulo mostra-nos um Arthur amante apaixonado da jovem e doce Sybil Merton, consciente dos seus deveres de a não sujeitar ao vilipêndio de se casar com um assassino em potência. É necessário preparar de imediato o seu homicídio, e protelar o casamento até se esfumarem os resíduos de suspeitas possíveis sobre a sua participação nele. Após a lista cuidadosamente preparada sobre as aptidões de amigos e familiares para vítimas de homicídio, tomba a sua escolha sobre uma bondosa velhinha sua prima – Lady Clementina. a quem oferece, em visita protocolar, após prévio estudo consciencioso sobre venenos, uma linda caixa com uma cápsula envenenada, remédio americano de efeito seguro no tratamento das crises de estômago que frequentemente a atacavam. Falam de banalidades sociais, a velhinha deslumbra-se com a pílula em forma de gentil bombom, e com a delicadeza da oferta, Arthur impede-a de a tomar de imediato mas insta para que se não esqueça de o fazer na próxima crise de azia. Procura amoravelmente Sybil, amontoando razões de obstáculo a um casamento imediato. Parte para Veneza no dia seguinte.
É em Veneza, onde se diverte em caçadas e passeios de Gôndola com um irmão, que recebe a notícia da morte de Lady Clementina. Volta ao hotel onde três cartas o esperam, a de Sybil descrevendo a morte da Lady Clem, e a da mãe e do advogado, explicando a herança da casa, que lhe deixara a senhora. Regressa para junto de Sybil, reatam a promessa de casamento, e em visita à casa herdada, Sybil encontra a caixinha com o bombom. Lorde Arthur empalidece de desespero, e atira para o fogo o bombom. A morte da Lady Clem não resultara, pois, do seu homicídio, tudo tinha que ser refeito.
Capítulo V, novo adiamento do casamento, com as naturais consequências da cólera da mãe de Sybil, que já mandara fazer o vestido de noiva e aconselha a filha a desfazer o noivado, imposição a que a filha não obedece. Abatimento inicial de Lorde Arthur, cujo bom senso afinal se impõe, na busca de novo homicídio, por amor de Sybil.
Nova procura de vítima, é escolhido um seu tio, deão de Chichester, coleccionador de relógios, bom pretexto para a hipótese de um explosivo telecomandado já que o veneno se mostrara inócuo. Busca de personagens para lhe resolver secretamente o problema, novas cenas caricatas, nova tentativa abortada.
“Tinha dado o seu melhor para cometer o homicídio mas falhara em ambas as ocasiões, apesar de não ter culpa por estes falhanços. Tentou cumprir o seu dever, mas parecia-lhe que o destino o traía. Estava esmagado pelo sentimento da esterilidade das boas intenções, da inutilidade dos esforços por uma boa acção.”
Jantou no clube, com outros jovens elegantes, que abandonou impaciente, alta noite. Passeio desesperado pelo cais do Tamisa, numa das pontes encontra um homem debruçado que reconheceu como o seu quiromante, o senhor Podgers. Sem hesitar, agarra-o pelas pernas e atira-o ao rio.
A informação dos jornais dá conta dum suicídio, o corpo do sinistrado aparecera em Greenwich, o casamento de Lorde Arthur Savile com Sybil Merton não se fez esperar com pompa e circunstância, Arthur Savile merecera a sua felicidade.
Vem o conto a propósito dos crimes que por cá se cometem, decerto que programados pelos destinos dos criminosos, com consulta prévia de quiromantes, ou bruxas, ou astrólogos, já que as pitonisas e os Tirésias há muito que desapareceram do nosso convívio. Também o estudo ajuda, nesses casos, de mistura com alguns amigos.
Na sociedade actual, são mesmo esses os felizes, pois que o coro das lamentações cabe mais aos sem destino prometido, por falta de posses para consultar os visionários e proceder de acordo.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

“O Soldado Prático”, retrato das nossas práticas

Já o Soldado de “O Soldado Prático” de Diogo de Couto se queixava de desmandos que aconteciam no Reino e na Índia, tal como os militares de hoje, que fizeram o 25 de Abril, se queixam dos desmandos que neste Reino lhes acontecem, ignorados os seus feitos de defesa territorial anterior. De modo que podemos dizer que sempre o nosso país foi palco de queixas, de furtos, de sonegações, e que sempre existiu cá quem apontasse isso.
O próprio original de “O Soldado Prático” de Diogo de Couto lhe fora furtado e, por cópias que dele tinha, pôde refazê-lo, por alturas de 1610.
Trata-se de um diálogo entre um Soldado sexagenário, experiente, (como significado de “prático”), um Fidalgo, ex-governador da Índia e um Despachador, (ou secretário do Rei).
Segundo Rodrigo Lapa, “A experiência dos negócios, as amarguras pessoais, a visão pavorosa da decadência dão um calor, uma violência patética à narração”, tornando a obra “O Soldado Prático” “dos livros mais honrados da literatura portuguesa”.


Não sei se as reivindicações dos militares grevistas de hoje assentam em idênticas razões que as deste Soldado rezingão. Transcrevo alguns dos seus conceitos que apontam as particularidades milenares de um povo sôfrego mas espezinhado sempre nos seus direitos, e cujos “responsáveis pela espantosa decadência do Império”, ainda segundo expressão de Rodrigues Lapa, têm à cabeça o próprio Rei.
É da Cena I da I Parte que extraio alguns passos:

Apresenta-se o Soldado diante do Fidalgo e do Despachador:
“Sou tão só neste Reino que não tenho coisa a que me possa arrimar que a estes papéis que aqui trago dos muitos e muitos serviços que nas partes da Índia tenho feitos, ornamentados e esmaltados com o sangue deste corpo, que espargi pela lei e pelo rei, de que me não tenho arrependido…”
O Fidalgo o acolhe com simpatia e promessas na boa vontade do Rei, o Desembargador o aponta como diferente de outros queixosos que “representam suas coisas com aquele ímpeto e furor, como se estivesse pelejando com os inimigos; e eu, em vez de os ouvir e responder, estou com os olhos buscando algum lugar onde me esconda de suas cóleras.”
Na realidade, o Soldado, com sendo crítico, não deixa de ser letrado, socorrendo-se mesmo de vastidão de autores clássicos para ilustrar as suas duras experiências, o que faz dele a voz do narrador Diogo de Couto, que foi companheiro e amigo de Camões nas suas andanças pela Índia.
Trata-se, assim, de um livro – «Diálogo do Soldado Prático que trata dos enganos e desenganos da Índia» - dividido em três partes, cada uma seguida de um argumento em síntese, sobre a localização espácio-temporal dos diálogos entre os três intervenientes (casa do Despachador, três dias sucessivos) e com número variável de cenas, respectivamente 10, 6 e 4.

Conta o Soldado a sua revolta contra os despachadores, lentos nos despachos:


“… Porque assaz de bem remediado parte um soldado da Índia, que pode sustentar-se nesta corte de umas naus a outras, para se poder tornar; e se vir que lhe respondem devagar, não sente mor desesperação que lembrar-se que está em terra onde não há remédio; e que o que ajuntou por seus amigos para vir requerer, parte se lhe foi na Casa da Índia, pelos excessos dos contratadores, que até das camisas que levam vestidas lhe tomam direitos…” “e que não vê donde se possa valer, e que ou será forçado morrer de fome neste Reino, ou deixar tudo e tornar-se para a Índia sem ser respondido: o que se tem por tamanha infâmia …..”


Hoje culpamos a burocracia como responsável por tantos desses atrasos na resolução dos despachos ou outros quaisquer ofícios, acrescentando-lhe a falta de competência, em paralelo, em certos casos, com o recurso à cunha e a luvas, que nos distinguem, na mediania das nossas aspirações e brio profissionais, no exercício das várias funções, condenando o país à ignomínia do seu contínuo atraso. Um olhar sobre os outros países europeus dá-nos uma constante imagem da nossa pobreza, que é sobretudo do foro espiritual.

Da ambição das riquezas – da Índia, neste caso – tão do nosso quotidiano, embora de diferente proveniência, dá igualmente conta o Soldado:
“… Estando eu um dia em um convento de religiosos, veio um fidalgo, que ia entrar em uma das melhores fortalezas da Índia, a despedir-se deles; e na conversação, em que eu me achei, lhe disse um religioso daqueles, estas palavras: -Senhor, lembre-vos que ides entrar na mercê que el-rei vos fez por vossos serviços, e que nela podeis ganhar o Céu, como eu neste hábito, com estas coisas. Contentai-vos com o que é vosso, deixai viver os pobres, e fazei justiça. Ao que lhe respondeu o fidalgo: -Padre meu, eu hei-de fazer o que os outros capitães fizeram; se eles foram ao Inferno, lá lhes hei-de ir ser companheiro; porque eu não vou à minha fortaleza, senão para vir rico …”

Quando vemos a que subtileza de crimes pode conduzir a ambição nestes nossos tempos de escândalos contínuos, e quão longe se está igualmente hoje do receio do Inferno, só que com a exteriorização de uma virtude imaculada, só podemos admirar a argúcia de Diogo de Couto no desvendar de caracteres de tão ampla projecção intemporal.

Também da Justiça nos dá um parecer de uma actualidade firme. Limito-me a esclarecer com esta simples frase da longa diatribe do Soldado:
“… Nunca se procede contra os criminosos, e sempre se livram, e Deus sabe como."


Deus sabe como, mas a maioria de nós fica a ver navios, ainda que não da Índia.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Um grande golpista

Ouviu-se hoje o Otelo Saraiva de Carvalho afirmar da forma desenxovalhada muito sua – de uma insensatez atropelada - que as manifestações dos militares não devem ser colectivas, por isso ele não vai à do próximo sábado, acha que o que pode verdadeiramente realçar a importância dos militares são os golpes de Estado para derrubar Governo, mesmo que, como já não estamos no tempo dos cravos vermelhos, mas sim pouco distantes do dia de finados, os militares tenham que levar outras flores na botoeira, ou mesmo nos canos das armas, crisântemos que sejam.
Só não percebi bem a exclusão da designação de colectivos para o caso dos golpes de Estado, que implicam sempre, acho eu, acompanhamento suficiente para não abortarem, embora os abortos até já sejam despenalizados nos dias de hoje, e isso se deve às aquisições libertárias da nossa revolução de 74, feita nas ruas com tropas e cravos e povo radiosamente exaltado. Julgo mesmo que o Otelo se esqueceu dessa característica de ajuntamento e por isso reclama outra revolução de tipo golpista, talvez para alcançar uma graduação mais concomitante com a sua acção primeira, que segundo se disse, partiu do seu cérebro.
O que é de supor é que ele se encontre meio frustrado por não o chamarem para o núcleo dos governantes, pois para todos os efeitos até foi chamado então “o cérebro do 25 de Abril” e ficou-se apenas pelo cargo de major, por muito cérebro que tivesse sido, sem poder comer à mesma mesa dos outros que ascenderam ao generalato, injustiças e ofensas que jamais se podem perdoar e por isso o major Otelo quer executar outro golpe, por muito que a hemorragia dele – do golpe – proveniente, já não seja tão visível como foi no primeiro, por o país se encontrar agora exangue, como provam os diversos cortes nas economias nacionais.
Mas vejo, com tudo isto, que afinal os povos são muito parecidos. Assim, os líbios, que tendo feito a revolução lá na Líbia, sem sequer poupar o Kadhafi, vão todos recolher às suas terras, por ordem dos novos dirigentes desagradecidos.
É por isso que o nosso Otelo, escamado com a ingratidão do seu povo, anda a idealizar outro golpe, para ver se lhe dão o relevo governativo que merece, pois nem se lhe daria furar cabeças – as dos inimigos da revolução e as dos seus próprios inimigos, por muito poucos que ele tenha, como provam as entrevistas que ainda lhe fazem os jornalistas televisivos, encantados com o seu ar desenxovalhado de idiota impune.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

O quarto Reich

Por e-mail me chegou o texto de esclarecimento sobre a panorâmica europeia, de poderio centrado uma vez mais numa Alemanha ponderosa, como já o fizera antes, desta vez não com armas de guerra, mas igualmente mortíferas, pela destruição de povos, com base numa prévia liberalidade para com eles, chamariz de atropelos e desequilíbrios económicos, morais e sociais, seguindo uma astuciosa estratégia de “descapitalizar os Estados periféricos, provocando o seu endividamento, atacando-os, depois, pela asfixia dos juros da dívida, de forma a passar a controlar, por preços de saldo, empresas estatais estratégicas, através de privatizações forçadas.”
É o que estamos a passar, cordeiros bebendo a água do curso inferior do rio, contra os ditames ponderosos das maquinações do lobo, que avidamente nos irá esfolando e desfazendo com as suas dentuças afiadas, chamando momentaneamente para o seu banquete outros bichos do seu compadrio interesseiro, raposas calculistas e falsamente humanizadas, aparentemente ledoras da cartilha humanista, em sorrisos de conivência com uns, de ironia com outros, de perfídia com todos.
Um texto para reflectirmos. Para ponderarmos.


«A inflamada declaração de Angela Merkel, numa entrevista à televisão pública alemã, ARD, em que sugere a perda de soberania para os países incumpridores das metas orçamentais, bem como a revelação sobre o papel da célebre família alemã Quandt, durante o Terceiro Reich, ligam-se, como peças de puzzle, a uma cadeia de coincidências inquietantes. Gunther Quandt foi, nos anos 40, o patriarca de uma família que ainda hoje controla a BMW e gere uma fortuna de 20 mil milhões de euros. Compagnon de route de Hitler, filiado no partido Nazi, relacionado com Joseph Goebbels, Quandt beneficiou, como quase todos os barões da pesada indústria alemã, de mão-de-obra escrava, recrutada entre judeus, polacos, checos, húngaros, russos, mas também franceses e belgas. Depois da guerra, um seu filho, Herbert, também envolvido com Hitler, salvou a BMW da insolvência, tornando-se, no final dos anos 50, uma das grandes figuras do milagre económico alemão. Esta investigação, que iliba a BMW mas não o antigo chefe do clã Quandt, pode ser a abertura de uma verdadeira caixa de Pandora. Afinal, o poderio da indústria alemã assentaria directamente num sistema bélico baseado na escravatura, na pilhagem e no massacre. E os seus beneficiários nunca teriam sido punidos, nem os seus empórios desmantelados. As discussões do pós-Guerra, incluíam, para alguns estrategas, a desindustrialização pura e simples da Alemanha - algo que o Plano Marshal, as necessidades da Guerra Fria e os fundadores da Comunidade Económica Europeia evitaram. Assim, o poderio teutónico manteve-se como motor da Europa. Gunther e Herbert Quandt foram protagonistas deste desfecho.
Esta história invoca um romance recente de um jornalista e escritor de origem britânica, a viver na Hungria, intitulado "O protocolo Budapeste". No livro, Adam Lebor ficciona sobre um suposto directório alemão, que teria como missão restabelecer o domínio da Alemanha, não pela força das armas, mas da economia. Um dos passos fulcrais seria o da criação de uma moeda única que obrigasse os países a submeterem-se a uma ditadura orçamental imposta desde Berlim. O outro, descapitalizar os Estados periféricos, provocar o seu endividamento, atacando-os, depois, pela asfixia dos juros da dívida, de forma a passar a controlar, por preços de saldo, empresas estatais estratégicas, através de privatizações forçadas. Para isso, o directório faria eleger governos dóceis em toda a Europa, munindo-se de políticos-fantoche em cargos decisivos em Bruxelas - presidência da Comissão e, finalmente, presidência da União Europeia. Adam Lebor não é português - nem a narração da sua trama se desenvolve cá. Mas os pontos de contacto com a realidade, tão eloquentemente avivada pelas declarações de Merkel, são irresistíveis. Aliás, "não é muito inteligente imaginar que numa casa tão apinhada como a Europa, uma comunidade de povos seja capaz de manter diferentes sistemas legais e diferentes conceitos legais durante muito tempo." Quem disse isto foi Adolf Hitler. A pax germânica seria o destino de "um continente em paz, livre das suas barreiras e obstáculos, onde a história e a geografia se encontram, finalmente, reconciliadas " - palavras de Giscard d'Estaing, redactor do projecto de Constituição europeia. É um facto que a Europa aparenta estar em paz. Mas a guerra pode ter já recomeçado.»

Temos que pagar a dívida, acham os governantes cumpridores. Embora os sindicatos recusem, adeptos do regabofe, raposas astuciosas no nosso deserto de cordeirinhos, fingindo o seu amor por estes, guiando-os amoravelmente para a bocarra do lobo ponderoso.
Porque a terceira guerra já começou. Por meio de abraços cínicos.

Um texto com nota vinte

Mais um que me chegou por e-mail, com o seguinte comentário:




«Sabes que Jesus deixou de ensinar? Vê porquê.»

«Naquele tempo, Jesus subiu ao monte seguido pela multidão e, sentado sobre uma grande pedra, deixou que os seus discípulos e seguidores se aproximassem. Depois, tomando a palavra, ensinou-os, dizendo:
Em verdade vos digo,
-Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus. -Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados. -Bem-aventurados os misericordiosos, porque eles...
Pedro interrompeu: - Temos que aprender isso de cor?
André disse: - Temos que copiá-lo para o papiro?
Simão perguntou: - Vamos ter teste sobre isso?
Tiago, o Menor queixou-se: - O Tiago, o Maior está sentado à minha frente, não vejo nada!
Tiago, o Maior gritou: - Cala-te queixinhas!
Filipe lamentou-se: - Esqueci-me do papiro-diário.
Bartolomeu quis saber: - Temos de tirar apontamentos?
João levantou a mão: - Posso ir à casa de banho?
Judas Iscariotes exclamou: (Judas Iscariotes era mesmo malvado, com retenção repetida e vindo de outro Mestre) - Para que é que serve isto tudo?
Tomé inquietou-se: - Há fórmulas? Vamos resolver problemas?
Judas Tadeu reclamou: - Podemos ao menos usar o ábaco?
Mateus queixou-se: - Eu não entendi nada... ninguém entendeu nada!
Um dos fariseus presentes, que nunca tinha estado diante de uma multidão nem ensinado nada, tomou a palavra e dirigiu-se a Ele, dizendo:
Onde está a tua planificação? Qual é a nomenclatura do teu plano de aula nesta intervenção didáctica mediatizada? E a avaliação diagnóstica? E a avaliação institucional? Quais são as tuas expectativas de sucesso? Tens a abordagem da área em forma globalizada, de modo a permitir o acesso à significação dos contextos, tendo em conta a bipolaridade da transmissão? Quais são as tuas estratégias conducentes à recuperação dos conhecimentos prévios? Respondem estes aos interesses e necessidades do grupo de modo a assegurar a significatividade do processo de ensino-aprendizagem? Incluíste actividades integradoras com fundamento epistemológico produtivo? E os espaços alternativos das problemáticas curriculares gerais? Propiciaste espaços de encontro para a coordenação de acções transversais e longitudinais que fomentem os vínculos operativos e cooperativos das áreas concomitantes? Quais são os conteúdos conceptuais, processuais e atitudinais que respondem aos fundamentos lógico, praxeológico e metodológico constituídos pelos núcleos generativos disciplinares, transdisciplinares, interdisciplinares e metadisciplinares?
Caifás, o pior de todos os fariseus, disse a Jesus:
- Quero ver as avaliações do primeiro, segundo e terceiro períodos e reservo-me o direito de, no final, aumentar as notas dos teus discípulos, para que ao Rei não lhe falhem as previsões de um ensino de qualidade e não se lhe estraguem as estatísticas do sucesso. Serás notificado em devido tempo pela via mais adequada. E vê lá se reprovas alguém! Lembra-te que ainda não és titular e não há quadros de nomeação definitiva!
... E Jesus pediu a reforma antecipada aos trinta e três anos...
A continuação DE BOM ANO LECTIVO»

O texto vale por si, em toda a sua explosão de humor e graça, bem documentado nos discursos bíblicos do Novo Testamento com aplicação ao contexto actual, com os discípulos protestando quais criancinhas desleixadas, os fariseus com a sua carga verbal tão empolada como vazia, bem expressiva da arrogância intimidatória das ocas imposições ministeriais, que sempre julgáramos que um Nuno Crato, perspicaz e tão impaciente contra os absurdos pretensiosismos retóricos como os professores alvo dessas imbecilidades linguísticas de uma falsidade demente, iria imediatamente destruir, a favor do bom senso e da sanidade mental de um país onde, por este texto, se vê que nem todos somos idiotas.
Um texto que apoio, com um Bravo ao professor que o escreveu, aos professores cujos protestos mereceram o engraçado e corajoso texto, a todos esses que, ao rirem da desgraça, no afundamento de propostas de avaliação que implicam nota zero para os forjadores de tais propostas obtusas e do ministério que as impôs, poderão contribuir para, pelo menos, chamar a atenção para tão violenta esquizofrenia nacional de pobreza espiritual irremediável.
Um texto que merece ser difundido em todos os jornais do nosso país, e afixado em todas as escolas, para ser lido por todos os professores e alunos.
No Ministério da Educação igualmente afixado. Em letras maiúsculas, por conta da cegueira.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Quem ensinou quem?

Um e-mail, parece que já não muito recente, significativo de um poderoso retrato de um país a saque.
Resta perguntar: Quem nasceu primeiro: a galinha ou o ovo? Foram os governantes que iniciaram o processo ou aqueles provieram de uma “massa” fraudulenta uniforme que permitiu o seu surgimento, em círculo vicioso para sempre inultrapassável por razões temperamentais específicas?
É certo que o Tribunal de Contas só teve dúvidas e apontou-as, segundo o e-mail, mas será que já foi esclarecido? Será que foram lapsos por malandrice? Será que pertencem à rede da corrupção que nos envolve?
Será que o novo Governo vai deixar no silêncio tais casos gritantes? Será que não vai incitar a magistratura a seguir a via da verdadeira Justiça, que implica isenção, eficiência, honestidade?
Será que é essa a estrada cheia de desvios que desejamos para os nossos sucessores?
Será que o sangue da vergonha já só acode às faces dos embriagados?
Dizem que a esperança é a última coisa a desaparecer em nós.
Assim seja! Amen!

Eis o e-mail recebido:

«Agora com o FMI é que vamos ver os "podres" a aparecer e a exalar mau cheiro...Isto foi tirado do Tribunal de Contas... Será por isso que nos estão a obrigar a apertar o cinto? Fica-se sem palavras!


AQUI ESTÃO ALGUNS EXEMPLOS DE DÚVIDAS QUE O TRIBUNAL DE CONTAS ENCONTROU NAS DESPESAS PÚBLICAS...


1. ADMINISTRAÇÃO REGIONAL DE SAÚDE DO ALENTEJO, I. P.
Aquisição de 1 armário persiana; 2 mesas de computador; 3 cadeiras c/rodízios, braços e costas altas: 97.560,00 €
Eu não sei a quanto está o metro cúbico de material de escritório mas ou estes armários/mesas/cadeiras são de ouro sólido ou então não estou a ver onde é que 6 peças de mobiliário de escritório custam quase 100 000€. Alguém me elucida sobre esta questão?


2. MATOSINHOS HABIT - MH
Reparação de porta de entrada do edifício: 142.320,00 €
Alguém sabe de que é feita esta porta que custa mais do que uma casa?


3. UNIVERSIDADE DO ALGARVE - ESC. SUP. TECNOLOGIA - PROJECTO TEMPUS
Viagem aérea Faro/Zagreb e regresso a Faro, para 1 pessoa no período de 3 a 6 de Dezembro de 2008: 33.745,00 €
Segundo o site da TAP a viagem mais cara que se encontra entre Faro-Zagreb-Faro em classe executiva é de cerca de 1700€. Dá uma pequena diferença de 32 000 €. Como é que é possível???


4. MUNICÍPIO DE LAGOA
6 Kit de mala Piaggio Fly para as motorizadas do sector de águas: 106.596,00 €
Pelo vistos fazer uma "Reforma de Montada" nas motorizadas do Município de Lagoa fica algo para o caro!


5. MUNICÍPIO DE ÍLHAVO
Fornecimento de 3 Computadores, 1 impressora de talões, 9 auscultadores, 2 leitores ópticos: 380.666,00 €
Estes computadores devem ser mesmo especiais para terem custado cerca de 100 000€ cada... Já para não falar nos restantes acessórios.


6. MUNICÍPIO DE LAGOA
Aquisição de fardamento para a fiscalização municipal: 391.970,00 €
Eu não sei o que a Polícia Municipal de Lagoa veste, mas pelos vistos deve ser Alta Costura.


7. CÂMARA MUNICIPAL DE LOURES
VINHO TINTO E BRANCO: 652.300,00 €
Alguém me explica porque é que a Câmara Municipal de Loures precisa de mais de meio milhão de Euros em Vinho Tinto e Branco????


8. MUNICIPIO DE VALE DE CAMBRA
AQUISIÇÃO DE VIATURA LIGEIRO DE MERCADORIAS: 1.236.000,00 €
Neste contrato ficamos a saber que uma viatura ligeira de mercadorias da Renault custa cerca de 1 milhão de Euros. Impressionante...


9. CÂMARA MUNICIPAL DE SINES
Aluguer de tenda para inauguração do Museu do Castelo de Sines: 1.236.500,00 €
É interessante perceber que uma tenda custa mais ou menos o mesmo que um ligeiro de mercadorias da Renault e muito mais que uma boa casa...
E eu que estava a ser tão injusto com o município de Vale de Cambra...


10. MUNICÍPIO DE VALE DE CAMBRA
AQUISIÇÃO DE VIATURA DE 16 LUGARES PARA TRANSPORTE DE CRIANÇAS: 2.922.000,00 €
E mais uma pérola do Município de Vale de Cambra: uma viatura de 16 lugares para transportar crianças custa cerca de 3 milhões de Euros. Upsss, outra vez o município de Vale de Cambra...


11. MUNICÍPIO DE BEJA
Fornecimento de 1 fotocopiadora, "Multifuncional do tipo IRC3080I", para a Divisão de Obras Municipais: 6.572.983,00 €
Este contrato público é um dos mais vergonhosos que se encontra neste site. Uma fotocopiadora que custa normalmente 7,698.42€ foi comprada por mais de 6,5 milhões de Euros. E ninguém vai preso por porcarias como esta?

COMO É POSSÍVEL NÃO ESTARMOS EM CRISE? COMO DIZ PASSOS COELHO, É DIFÍCIL CORTAR NAS DESPESAS PÚBLICAS... NOTA-SE... ACABÁMOS DE VER ALGUNS EXEMPLOS...»

As parvoiçadas da nossa deseducação

Os dois artigos que seguem, de dois professores, chegaram-me por e-mail. Traduzem experiências vividas, gritos de alma de quem se afunda e vê afundar-se toda uma nação, com as deficientes e mal esclarecidas políticas de Educação que, acrescentadas de uma há muito acentuada deficiência de educação familiar, tornam o ensino português uma pobre forja de indisciplina, desatenção, desvairamento na inadaptação a princípios de exigência e responsabilização, desinteresse pelo saber, apesar dos meios que as tecnologias poderiam proporcionar com o mundo de informação de que dispõem, mas que são causa, a maior parte das vezes, da fuga, pelo excesso de lúdico que proporcionam, à concentração do espírito, à inapetência pelo trabalho mental, à dispersão por campos de futilidade, quando não de desvio, de violência, de desregramento de que as nossas escolas são palco.
Escolas que já não são escolas mas agrupamentos escolares, mistura desordenada de criaturas de idade vária, espaços de ruído, de violência, de agressão, onde, definitivamente, não é possível um ensino eficaz, em “contentores”, forjados à pressa, a fazer de salas, onde a água da chuva obriga ao afastamento das mesas e cadeiras e o frio do inverno vai penetrar em tradição do nosso envilecimento.
O Governo fecha os olhos, incapaz de soluções, num ensino cada vez mais farfalhudo de monstruosas reuniões e burocracias forjadas no governo anterior, destruidor de energias, protelando as esperadas regras de imposição de disciplina, fundamentais dentro de honestos princípios de trabalho eficaz.
O artigo de Manuel António Pina – «O “essencial” e é um pau» - não me parece, todavia, tão fidedigno assim, quando ouço, por exemplo, que o estudo da gramática se faz por um chorrilho monstruoso de designações lembrando a velha escolástica com os seus silogismos ostentatórios de um rebuscamento mental parolo, a exigir consulta psiquiátrica. Aí, sim, vejo a pretensão idiota de transformar os alunos e os professores em cobaias de experiências governativas ditadas pelo pretensiosismo desses “bichos-caretas” fazedores de vaidosos programas só “para inglês ver”. Com tais preciosismos, dificilmente os alunos passarão da fase do “ler, escrever e contar”, nisso estou de acordo com Manuel Pina.
O artigo de Luís Moura traduz os problemas económicos causados pela difusão dos tais Magalhães do nosso ensino de sucata, com repercussões sobre as carreiras docentes “congeladas” na sua progressão. Vê-se que a mágoa é grande, mas o efeito sobre os nossos jovens, de embrutecimento e inércia, pela obsessão lúdica e desmotivação pela aprendizagem, é superior em perversão, quanto a mim, à “paragem” temporária na carreira docente, porque com reflexos sociais de vastíssima amplitude.
Mas a não haver rápida reforma que ponha definitivamente cobro a tanta “parvoiçada”, como já diria Verney, não sairemos desta cepa torta da nossa mediocridade cada vez mais triste.

Os textos de “Opinião”:

O "essencial" e é um pau -Artigo de Manuel António Pina
«A afirmação do actual ministro da Educação de que o "princípio geral" que presidirá à "sua" reforma curricular do ensino básico e secundário é o de que "é necessário concentrar nas disciplinas essenciais" constitui todo um programa ideológico.
Deixando de lado o obsessão de todo o bicho-careta que chega a ministro da Educação em Portugal em "reformar" mais uma vez os curricula escolares, tornando o ensino num laboratório de experiências educativas e os alunos em cobaias que se usam e deitam fora na próxima "reforma", tudo com os resultados que se conhecem, a opção por um ensino público limitado a "disciplinas essenciais" segue fielmente a rota ideológica do "saber ler, escrever e contar" de Salazar.
Falta apurar o que o ministro entenderá por "essencial", mas outras medidas que tem tomado, como triplicar o valor dos cortes na Educação pública previsto no acordo com a "troika" enquanto financiava generosamente os colégios privados, levam a crer que o programa de empobrecimento anunciado por Passos Coelho é mais vasto do que parece. E que, além do empobrecimento económico das classes médias e mais desfavorecidas, está simultaneamente em curso o seu empobrecimento educativo.
Para a imensa maioria que não tem meios para pôr os filhos em colégios privados (que, no entanto, financia com os seus impostos), o "essencial" basta. Mão-de-obra menos instruída é mão-de-obra mais barata. E menos problemática.»

«E é só a Parque Escolar?» - Artigo de Luís Moura
«No consulado de Maria de Lurdes Rodrigues adjudicaram-se centenas de milhares de computadores portáteis em mais um negócio ruinoso para o estado e milionário para os operadores de telecomunicações móveis com os programas “e-escolas” e “e-escolinhas”, vulgo Magalhães. Quem pagou a factura? Coincidência ou não, imediatamente antes, os professores viram congeladas as suas progressões. Não é lícito perguntar se o dinheiro poupado em remunerações foi desviado para os Magalhães?
Garantido o direito a um computador portátil grátis, ou a preço simbólico, a cada aluno e professor, era a vez das escolas. De norte a sul, os estabelecimentos de ensino de todo o país ficaram, de repente, a abarrotar com material informático e periféricos novinhos em folha com dezenas, se não centenas de milhar de computadores, milhares de quadros interactivos e projectores de vídeo, muitos dos quais nunca foram usados e alguns nem sequer instalados até hoje. Tudo isto, mais uma parafernália de routers, cabos, ligações sem fios e quejandos.
Mau grado a torrente tecnológica, os professores tentam aceder à internet na sala de aula e a maior parte das vezes não conseguem porque o acesso é ‘wireless’ e funciona muito mal. Sabendo nós que o material informático fica obsoleto rapidamente, bem podemos concluir que, em muitos casos, o último grito da tecnologia não passa de tralha que vai acabar na sucata sem nunca ter sido usada.
Na escola onde presto serviço, uma secundária, só as casas de banho não têm projector de vídeo, tal a quantidade fornecida pelo ME. Mesmo assim, há uns quantos de reserva, uma vez que já não há salas disponíveis para os aplicar. Não sei se o mesmo se passa nas outras escolas, mas imagino.
Se em média o custo de cada computador de secretária for de 250 €, o de cada monitor 100 €, o de cada projector de vídeo for de 250 € e o de cada quadro interactivo for de 500 €, é só fazer as contas, como dizia o primeiro ministro Guterres. Este foi o (não resisto a usar um vocábulo todo modernaço) paradigma do governo ps, e não só para a educação. Onde é que poderíamos estar agora se não na bancarrota?
Por fim, cito uma frase da Ilíada de Homero, que se aplica ao primeiro ministro Passos Coelho a propósito do que ele tem dito e do que ele tem feito: «…assim falou Aquiles de pés velozes: “(…) Como os portões do Hades me é odioso aquele homem que esconde uma coisa na mente, mas diz outra.” (...)». São precisos sacrifícios para sair deste chiqueiro? Façamo-los. Mas que se diga a verdade e que ninguém fique de fora.»

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Uma página de “O Barbeiro de Sevilha”

O Conde Almaviva está postado numa rua de Sevilha, à espreita de uma rapariga – Rosina - que costuma aparecer não à janela como a nossa carochinha mas atrás da gelosia daqueles discretos tempos de predomínio masculino. Encontra Fígaro, seu antigo criado, e interroga-o sobre a sua vida, ao que Fígaro responde sobre as suas experiências de letrado, num mundo fértil em intriga – Madrid no século XVIII – em nada diferente dos espaços de intriga destes tempos, diz-se que até por cá, entre os nossos, mesmo sem corte:
Fígaro: «- Vendo em Madrid que a república das letras era a dos lobos, sempre armados uns contra os outros, e que, entregues ao desprezo aonde este risível encarniçamento os conduz, todos os insectos, os mosquitos, os primos, os críticos, os “maringouins”, os invejosos, os jornalistas, os livreiros, os censores, e tudo o que se atira à pele dos infelizes homens de letras, acabavam de destroçar e de sugar a pouca substância que lhes restava; cansado de escrever, aborrecido comigo, desgostoso dos homens, cravado de dívidas e com pouco dinheiro; por fim convencido de que o útil provento colhido na barbearia é preferível às honras vãs da caneta, deixei Madrid; e, com a minha bagagem a tiracolo, percorrendo filosoficamente as duas Castelas, a Mancha, a Estremadura, a Serra Morena, a Andaluzia; acolhido numa cidade, prisioneiro noutra, e em toda a parte superior aos acontecimentos; louvado por estes, criticado por aqueles; optimista na maré boa, suportando a maré baixa; troçando dos parvos, arrostando os maus; rindo da minha miséria e fazendo a barba a toda a gente; vedes-me enfim estabelecido em Sevilha, e prestes a servir de novo Vossa Excelência em tudo o que for do seu agrado ordenar-me.
O Conde: Quem te deu uma filosofia tão alegre?
Fígaro: O hábito da desgraça. Apresso-me a rir de tudo, com medo de ser forçado a chorar.»


Vem o texto mal a propósito de um texto de Vasco Graça Moura – “Andrajosamente Sós”, colhido no DN deste Dia dos Mortos, apelidados de Fiéis Defuntos, provavelmente os únicos a guardarem fidelidade nesta época de hipocrisias – como sugestão para um maior optimismo que cubra a visão quase direi obscena que VGM se encarrega de nos transpor, indiferente aos que vão lutando por quebrar tal malefício, aliás, de longa data previsto, até mesmo pela minha amiga e por mim que a vou carinhosamente acompanhando nas discussões sobre as desgraças nacionais, embora ultimamente nos abstenhamos mais disso, por mero derrotismo.
Alguns passos desse decisivo texto de VGM:


«Portugal deixou de ter condições morais, sociais, culturais, económicas e políticas para ser independente. É compelido a ir a reboque, a acatar o que lhe é imposto de fora, a dar o corpo ao manifesto, a arquejar sob a carga fiscal.
A população vai ficar agrupada em magotes de macambúzias criaturas à deriva. É uma gente desgovernada que perdeu toda e qualquer noção dos valores e da sua própria história, cuja ligação à língua que fala e à sua própria tradição cultural se tornou um desconchavo inqualificável, cujas qualificações não prestam para nada, cuja economia está destruída, cuja qualidade de vida, já de si escassa, se foi para não voltar. O Estado sustentava-lhe a maior parte dos vícios e agora deixa de poder fazê-lo.
« … Se as coisas chegarem a um certo extremo, o Governo não terá força para fazer acatar as medidas que anuncia.»



E depois de pontuar a falta de convicção governativa na actuação contra as forças armadas e as policiais, conclui:
«…E se houver muitas fitas nestas áreas, que ninguém tenha dúvidas: A Europa fechará a torneira de vez.»



Aponta seguidamente a pantominice de um PS dividido entre enjeitar as suas responsabilidades na crise e o seu dever de cooperação com o Governo no cumprimento das responsabilidades que partilhou relativamente às imposições da troika.



«… Os partidos radicais vociferam a torto e a direito….»


Não se lhes dá a destruição do país, nunca se lhes deu, por isso propõem greves. Com autoridade e seriedade hipócrita.



«… Entretanto, na Europa prepara-se um escanzelado federalismo financeiro da zona euro, comandado pela Alemanha, sem atender aos outros aspectos estruturantes de um sistema federal…»



Estes têm a ver com as divergências culturais, económicas, sociais, muitas vezes conflituais entre os Estados vizinhos, e, apesar da matriz cristã comum, tal não impedirá o desastre final da zona euro:
«… Será a alavanca alemã a comandar as operações, a ditar a política financeira, a política económica e a política externa, a sobrepor-se às veleidades nacionais dos Estados membros. A França voltará a encolher-se. A Inglaterra assobia para o lado. A Espanha e a Itália ficam a olhar. Até a Grécia dirá que não é… a Grécia. A história repete-se. Ficaremos andrajosamente sós. Quando a Europa puxa o autoclismo, a independência e a soberania de Portugal vão pelo cano abaixo.»



Lembrei-me do texto d’ «O Barbeiro de Sevilha» para aconselhar alegremente a todos os que atravessam crises económicas, como o Fígaro atravessou, a tornarem-se barbeiros como ele, mesmo nas nossas terras portuguesas, para colherem alguns proventos.


Mas como as navalhas de barba já não são tão necessárias hoje, ultrapassadas pelas giletes de uso individual, adopto, todavia, idêntica filosofia do Fígaro, que é talvez, a filosofia da nobre Alemanha, mandando-nos a todos, antes, cavar batatas.

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

A “Competividade” do Ministro da Economia

Ouvi há pouco Álvaro dos Santos Pereira a explicar o seu plano de austeridade com a rapidez e a seriedade necessárias para se não entender nada, pelo menos as pessoas leigas ou pouco habituadas às maroscas das explicações rápidas dos inteligentes eruditos para os mais habituados à erudição. E às maroscas.
Despachou-se o ministro, deixando no ar a última pergunta do jornalista, como é hábito já ancestral entre os nossos governantes que, com esse desprezo, demonstram a distanciação do seu posicionamento governativo relativamente às bases, que simpaticamente atendiam durante as eleições. Mas frisou por várias vezes a “competividade” do meu repúdio linguístico, que o jornalista repudiou também, ao resumir o discurso do sr. Ministro, usando correctamente a palavra “competitividade”, como resultante do adjectivo “competitivo” e não “competivo”. Sem haplologia, que é uma palavra também erudita, mas de um nível que já a ninguém interessa, nem a nenhum Governo, que todos eles concordam com as síncopes do novo acordo ortográfico.
O sr. Ministro usou competividade com haplologia, suprimindo a sílaba repetida, como já se fez outrora em bon(da)doso, ido(lo)latria, habili(da)doso, o Sr. Ministro que me desculpe a lição que ele não vai ler, que tem mais que cortar, e por isso lição inútil mesmo para muitos outros, deputados, ministros, etc, que não há meio de corrigirem a sua desprezada língua, nem mesmo por “acordos” com os povos de expressão lusófona que talvez usem correctamente a pronúncia da palavra plural, mantendo o o tónico fechado, sabedores do processo de metafonia justificativo de outros oo abertos, como em ovos, jogos, fogos, povos, o que não acontece em piolhos. Nem em acordos, maçadoramente o repito, que já o disse mesmo antes da assinatura do acordo ortográfico, omisso nestes casos, não exceptuando os acordos fechados das suas novas regras, mais fincadas nos cc ou pp não pronunciáveis e por isso suprimíveis, na nossa euforia modernística adepta dos cortes. Mesmo nas pobrezinhas das “amídalas” sofredoras.
Mas hoje enviaram-me mais um e-mail sobre o corte do subsídio de Natal que, segundo o texto, é apenas uma extorsão, pois há muito representava apenas uma reposição do que pertencia a cada trabalhador, se recebesse à semana, como os ingleses. Diz o e-mail:


«Os trabalhadores ingleses recebem os salários semanalmente! Mas há sempre uma razão para as coisas e os trabalhadores ingleses, membros de uma sociedade MAIS crítica do que a nossa, não fazem nada por acaso!



… "Fala-se agora que o governo pode vir a não pagar aos funcionários públicos o 13º mês ou subsídio de natal. Se o fizerem, é uma roubalheira sobre outra roubalheira.
O 13º mês é uma das mais escandalosas de todas as mentiras dos donos do poder, quer se intitulem "capitalistas" ou "socialistas", e é justamente aquela em que os trabalhadores mais acreditam. Eis aqui uma modesta demonstração aritmética de como foi fácil enganar os trabalhadores.
Suponhamos que você ganha €700,00 por mês. Multiplicando-se esse salário por 12 meses, você recebe um total de €8.400,00 por um ano de doze meses. €700,00 X 12 = € 8.400,00
Em Dezembro, o generoso governo manda então pagar-lhe o conhecido 13º Mês: € 8.400,00 (Salário anual) + €700,00 (13º salário) = € 9.100,00 (Salário anual + o 13ºMês).»



Na realidade, o ano não tem 48 semanas exactas mas 52 semanas, diferença de quatro semanas que perfaz um mês, o tal 13º que nos é dado como generoso subsídio e não representa senão a reposição do que nos é tirado durante o ano.
E agora vai ser extorquido a favor da “competividade” das nossas empresas.
Mas não é assim que se remodelam as empresas, Sr. Ministro! Destruindo a língua da pátria onde as empresas desejam competir.
A língua é fundamental, numa sociedade que se preze.
Só que me parece que o desprezo governativo pela língua é paralelo ao desprezo governativo pela sociedade.

sábado, 29 de outubro de 2011

No primeiro aninho do Sebastião

Mandou-me o meu filho Ricardo um e-mail com imagens de uma Lourenço Marques airosa, de um antigamente que deixou saudades, ao som da canção de Tudela “Adeus, cidade, é tanta a mágoa que eu tenho, que já em mim não contenho a chama desta saudade…”
Era uma bela cidade, a cidade onde nasci, onde nasceram três dos meus filhos, - o João, o Artur, o Luís - os dois mais velhos – o Ricardo e a Paula - nascidos cá, mas enraizados lá, na liberdade de um viver de harmonia, não traído ainda pelo pesadelo de vícios e violências que a destruição da ordem viria executar.
Uma cidade bonita, esquadriada, esta que tanta saudade deixou no Ricardo, cidade que os portugueses construíram, juntamente com as outras terras desse Moçambique, dessas outras terras dos descobrimentos antigos, que portugueses modernos desaproveitaram e dispensaram sem cerimónia.
Tudela descreve-a em várias outras bonitas canções, como no refrão desta: “Lourenço Marques, minha flor, meu derriço, o teu nome não sei que faz, só sei que traz feitiço.” “Lourenço Marques, meu amor, meu enlevo, boa sorte a que tu me dás, é a que traz o trevo”. “Lourenço Marques, quem te deixa, cidade, que veneno não sei que dá, só sei que traz saudade”.
Trata-se de poesia, é certo. A verdade é que Tudela preferiu sempre o continente, mau grado as lindas canções do seu repertório referentes a Moçambique, e que a Internet acompanha com imagens bonitas desse agora país livre.
Mas recebi um outro e-mail de João Sena, com imagens mais sombrias de uma terra por nós abandonada, com o seguinte comentário: “Recordando Moçambique - É triste a degradação daquilo que foi um Paraíso !!!”
Também João Sena sente saudade, como outros muitos portugueses que por lá viveram. Uma vida intensa de trabalho, seja em que sítio for, não permite recuos no tempo embrenhados em sentimentos de perda. Em mim, a saudade foi substituída pela rejeição do que considerei vileza inenarrável, pela inadaptação ao brutal radicalismo de uma afronta à pátria que me habituei a amar.
Os meus filhos Artur e Luís eram meninos de quatro e dois anos, em 74, não sentem apego à terra natal, embora a lisura de princípios os leve a considerar talvez, que não valia a pena tanto desmando traiçoeiro.
Na escola já não estudaram a história da exaltação e glória dos antepassados.
O meu netinho mais novo – Sebastião, que passa hoje o seu primeiro aninho – menos ainda sentirá curiosidade pela terra do seu papá, que também só a recorda por tradição.
Mas num contexto de globalização e sobretudo num de destruição pátria como esta que atravessamos, não será de admirar que uma nova História pátria apresente os surtos de emigração, de fuga, em busca de lugares que os bisavós povoaram.
Não é, para mim, uma visão radiosa.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Faz parte

«"NINGUÉM ESTÁ IMUNE AOS SACRIFÍCIOS», disse ele. SE ASSIM NÃO FOSSE, COMO SERIA O SÉQUITO ESCOLHIDO!!!!! “ (notícia do Público de 23/09/11) O Cavaco na sua visita discreta aos Açores de 5 dias levou 30 acompanhantes, entre os quais:
- sua esposa
- o chefe da casa civil e sua esposa
- 4 assessores
- 2 consultores
- 1 médico pessoal
- 1 enfermeira
- 2 bagageiros???
- 2 fotógrafos oficiais
- 1 mordomo
- 12 agentes de segurança e à chegada disse "Ninguém está imune aos sacrifícios". Convém lembrar que quando o príncipe Carlos e a sua mulher Camila visitaram oficialmente Portugal, chovia e seguravam nos seus próprios guarda-chuvas. O nosso Presidente e mulher - na mesma ocasião tinham alguém que lhes segurava o guarda-chuva...
(Esta lista foi dada aos jornalistas, não pensem que isto é gozo!)»

Nós já tínhamos comentado, quando vimos Cavaco acompanhado pela sua camarilha, numa das ilhas – talvez das Flores - sem povo a aplaudir, ou sequer só a assistir, em passeio que nos pareceu humilhante, pelo menos a mim que me prezo de sentimentos de compaixão, inexistentes na minha amiga quando se trata do nosso Presidente, plácido e flácido joguete dos seus oportunismos assaloiados.
Mas também pusemos na mesa – do nosso café - a hipótese de ele, como está escamado com o César dos Açores, desejar aparecer-lhe assim, com a sua camarilha, para impressionar e mostrar que ele ainda manda ali, rivalidades que quadram muito bem à nossa musculatura de fragilidades.
Mas o texto acima chegou-me por e-mail e eu vejo aí toda a extensão dessa nossa firmeza de propósitos, damazozinhos que a ninguém admitem desconsiderações e o demonstram soberbamente, como no caso presente, de palanque, para ofuscar.
Carlos e a esposa não se coíbem de segurar no guarda-chuva? É que a democracia deles já estava delineada na Magna Carta. A nossa cartilha está na infância, tem atrás de si séculos de distinções sociais. Não íamos mudar do pé para a mão. A César – não o dos Açores – o que é de César. A chuva de César… outros que a aparem. De preferência com reverência.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Perseguições

«O Atum e o Golfinho»
«Um Atum que um Golfinho perseguia
As ondas do mar fendia
Em grande alarido;
Prestes a ser apanhado,
Viu-se caído
Na orla da praia
Por causa da maré cheia
Que o empurrou para a areia.
Ora o Golfinho
Que um forte impulso de avidez impelia
Sobre aquele,
Veio esparramar-se junto dele.
Voltou-se o Atum,
E vendo-o a agonizar
Exclamou com prazer
Sem rebuço algum:
“Já não sinto tão amarga a minha sorte
Quando vejo perecer
Aquele que causou a minha morte!”
A fábula mostra que os males
Se suportam com menos celeuma
Quando são partilhados por aqueles
Que os provocaram na calma.»

Por aqui se vê que o Esopo
É muito anterior a Jesus Cristo
Que sempre advogou a bondade
Mandando apresentar a outra face
Quando uma estalada era dada
Com muita maldade
Na face
De qualquer incauto
Que inesperadamente
A recebesse
Com surpresa indignada,
Mas retraidamente
Porque cristãmente.
Por isso nós não nos rimos,
Quando de dores morremos,
Se ficarmos certos
Que os que de dor nos matam
Connosco de dor são mortos
Em idênticos apertos.
Os do Médio Oriente
Andam à pedrada.
Nós à estalada,
Tão só porque estendemos
A face à bofetada
Muito cristãmente,
Fora da entifada.
Também não imitamos
O risonho Atum,
Sem respeito nenhum
Pelo pobrezinho
Do Golfinho
Que a avidez perdeu
E assim morreu,
Como aliás também
O Atum morreria.
Mas é o destino de cada um,
A morte sombria.
Só não se deve nunca
Pôr a Pátria em risco
Por razões de fisco.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Alternativa zero

O texto de Octávio Teixeira “Brutalidade, Irresponsabilidade e falácias”, saído na revista Visão de20/26 de Outubro pondo em causa toda a acção governativa, apela para a luta, como fazem os chefes sindicais, os chefes dos partidos mais virados à esquerda, que, aliás, desde há muito que o fazem, chamando não ao trabalho mas à destruição do país pela inércia, pela vozearia, pela greve, pelo aumento salarial e o boicote às forças do poder, que, aparentemente, pretendem levar a bom termo a solução para a crise monstruosa em que nos afundamos há 37 anos, por má cabeça de todos, que nos lançámos vorazmente sobre um osso alheio, maná no nosso deserto de mediocridade, inépcia, incompetência, ambição, vaidade, orgia, insensatez, ignorância, desonestidade, bestialidade.
E não saímos desta roda-viva, os governantes com maus governos, os governados repudiando-os na desordem e na rebeldia, ninguém se esforçando por progredir, no tempo das vacas gordas comprando, gastando os bens imóveis e os móveis, mais do que aplicando os dinheiros distribuídos segundo uma orientação de previdência e de prudência, antes curtindo o dia horaciano segundo o lema “viaje agora e pague depois”.
Chegámos ao tempo das vacas magras, e o actual governo quer sair bem na foto, pagando a dívida, acima de tudo pagando a dívida, centrado preferencialmente naqueles que não podem recusar a participação no pagamento. Os grandes responsáveis por ela mal são chamados a terreiro, protegidos pelas leis de uma Constituição há muito feita sob ideais de defesa de direitos próprios, mais do que sobre imposição de deveres segundo um ideal pátrio que mais nenhuma nação se lembraria de desprezar, como nós há muito fazemos, salvo por alturas dos jogos futebolísticos ou outros, internacionais, em que defendemos galhardamente, as mais das vezes grotescamente, as nossas cores.
O bispo Januário condena as medidas drásticas, tal como o faz Cavaco Silva, seguindo os acicatadores da desordem, sem respeito por uma orientação governativa assente, é certo, sobre um critério de força desumana, mas com um Primeiro-Ministro crente que é esse o caminho a seguir, lembrando outros países como Finlândia e Suécia que venceram idênticas fragilidades económicas.
Estranham-se, contudo, as referências de Passos Coelho a esses países de exemplo, porque não nos parece que tenhamos qualquer possibilidade de paralelismo com outros povos, pois desde sempre carentes de massa humana intelectualmente apta e responsável para que, paga que seja a dívida, nos lancemos sobre revolução económica salvadora, assente numa política de trabalho que leve à exportação e elimine a importação. Dos limões, dos alhos, das nossas comodidades gastronómicas e de prazer.
As nossas revoluções são de folclore, ruidosas e com flores. E essas, que já destruíram, vão continuar a destruir, desresponsabilizando todos, a lisura para sempre arredada das contas e do respeito humano.

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Um conto premiado da minha neta Ana

Menina vivaça foi sempre a Ana, que sobressaiu como estudante, e foi conduzindo a sua vida sem aparente dificuldade, com uma alegria sadia, que não excluiu nunca uma sensibilidade atenta ao mundo da injustiça ou do risível. Como todos os estudantes favorecidos nos estudos universitários, ganhou o complemento dos seus estudos em Paris, com o estágio que a catapultou, via Internet, para o primeiro emprego cá, que alcançou mediante resposta efectuada em Paris, a anúncio, por via telefónica, perante o sentir deslumbrado de uma avó educada na desconfiança das modernidades. A ambição não se esgotou aí, foi concorrendo a outros empregos de acordo com o sentimento de mérito que a sua consciência apontava e no novo emprego já lhe foi reconhecido esse mérito que a favoreceu com uma visita de trabalho a Angola.
E a Ana vai prosseguindo, na sua senda de interesse pelo mundo dos outros e o seu próprio, criando blogues de grande originalidade, onde esse mundo não escapa ao seu olhar arguto, simpaticamente comentados pelos seus muitos amigos que sinceramente a admiram. Na alegria da sua escrita maliciosa, discretamente atrevida, observadora e artista. Muitas vezes complementada por fotografia a condizer.
Os blogues pararam, nos excessos do trabalho que hoje em dia mal poupa os trabalhadores. Mas na Internet encontrou um concurso literário, com oferta de edição dos contos premiados.
E a Ana concorreu e esperou. Acreditámos nela e na originalidade do seu conto. “O Engraxador de Sapatos”, uma história colhida na sua observação, retocada com a graça da sua expressão, simultaneamente leve e profunda, e largamente assente na observação do real, em que perpassa toda uma sensibilidade pela “dor humana”, a que não são alheios certos laivos do grotesco de situações descritas de miséria e destruição dos sonhos próprios da condição humana, sujeita aos desvios da Fortuna. Uma prosa concisa e poética, no retomar constante dos seus elementos, em circularidade e progressão, para um clímax de efeito dramático.
26 anos, uma vida de bela expectativa literária.
Parabéns, Ana, pelo teu prémio. O lançamento do livro de Contos será no próximo sábado, 22 de Outubro, na Biblioteca Municipal de São Lázaro, Rua do Saco, 1.