terça-feira, 24 de agosto de 2010

Também há muitos carros

Foi a propósito do meu texto “Citaristas... há muitos”. A minha amiga concordou que sim, que os há, e avançou:
- O Cavaco está aí caladinho, porque não quer que esta coisa se desmanche, porque quer ser presidente. O outro vai falando do que faz, a gente não sabe se faz, prometeu diminuição do défice e o défice vai progredindo... Os outros lançam críticas e sugestões, todos no mesmo objectivo aparente de salvar a nação, mas fica-se na dúvida a respeito do significado de nação para cada um deles... Não se vê assim uma réstia duma solução. O país ardeu...
- Ainda não ardeu todo, há mais para queimar
– digo, numa de sadismo desesperançado, mas a minha amiga não aproveitou a minha deixa.
- Os portugueses até em Espanha vão matar outras pessoas e vão chocar com aquela desgraçada belga que vinha no seu sítio. Os outros de Burgos todos morreram, foram contra um camião. Não mataram porque era um camião. Chover aqui neste país é um perigo muito grande. Na A 25 foram dois os desastres em cadeia, com mortos, feridos, carros destruídos...
- Somos um povo que quer chegar depressa...
- Deve ser por isso que andamos sempre a marcar passo.
Falei nas nossas glórias descobridoras para nos erguermos do sentimento mesquinho da frustração, mas a minha amiga achou que isso era passado e contou da sua experiência pessoal de taxímetro a contar, ontem, no regresso de Lisboa, com o táxi obrigado a parar por duas vezes na marginal, devido à chuva miudinha, às pessoas miudinhas, ao polícia miudinho interventor, nas paragens forçadas do trânsito, por causa das pressas da gente miudinha, dum modo geral pouco educada ...
- Também há carros a mais, cá - disse eu, na esperança de um bem-estar nacional autêntico.
- Realmente! - disse a minha amiga, mas antes por desesperança.
Um amigo dela passou, e falou de Moçambique, onde estivera de férias, com entusiasmo e saudade. Aquilo agora é que está bom, mas eu admirei-me muito, porque ainda há uns anos Moçambique era dos países mais míseros do mundo. Objectei com o meu conhecimento recente do desastre em Angola, de gente morrendo, agonizando, apodrecendo, em Luanda, de desníveis sociais fabulosos...
- Em Moçambique não é tanto assim, disse ele.
E renascemos para a confiança.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Citaristas ... há muitos

O que eu muito estranho
Quando pela fábula me entranho
- Com prazer tamanho,
Confesso a verdade! -
É verificar
A actualidade
De tantas ocorrências
E o paralelismo
Da moralidade
De ontem com a de hoje,
Caso para exclamar
Sem facciosismo:
Foge!
Ou melhor dizendo: fogo!
Que dum modo geral,
É mais actual,
Para nosso mal.
Assim dizia
Esopo, um dia:

O citarista

Um citarista dotado de talento,
Ou julgando tal,
Com muito pouco tento,
Sem tréguas cantava numa casa
De paredes rebocadas a cal,
Que o eco da sua voz bonita,
Na sua opinião,
- Embora com pouca razão
Para nisso crer -
Lhe reenviavam com muita pinta;
Cuidou assim um belo órgão vocal
Possuir,
E de tal modo a cabeça foi encher
Com a convicção de o ter,
Que achou indispensável
Igualmente pelo teatro
Se repartir
E ali se exibir.
Mas, uma vez em palco,
Cantou tão mal
Que foi expulso à pedrada
Sem complacência
E, pelo contrário,
Com “quanta indecência!
Quanta palavrada”,

Como, aliás, também fizeram
Sem nunca se desculparem
Os mendigos do nosso Cesário
- Se me é permitido um parêntese
Para dar mais ênfase
A estes devaneios efabuladores
Dos fabulistas doutores
Um tanto ou quanto desumanos,
Como inimigos encartados
Dos erros humanos,
Por vezes, é certo, bem tresloucados.
Mas, retomando o citarista
Do grego fabulista
Expondo a sua moral,
De modo tão actual,
Concluamos:

“Assim também, certos oradores
Que durante os seus estudos anteriores
Pareceram bem dotados,
E cujos resultados
Posteriores
São marcados
Pela generalidade
Da nulidade
Quando na carreira política
São lançados.”

Realmente acho piada
Ao exemplo citado
Do citarista
- Do tocador de lira,
Antepassado -
Vivendo na mira
De um outro ordenado,
Convencido
Da muita capacidade
Porque acreditava
Ter uma voz magnífica
Que só ele ouvia.
A mesma fantasia
Grassa hoje na política
Tal como antigamente,
Como Esopo dizia:
É ver os chefes dos partidos
Todos entretidos
Com vozes esplendorosas
Debitando competências
Altissonantes, deslumbrantes,
Palavrosas,
Redundantes,
Com muito destaque
E arte
Teatral
Escondendo o vazio
Programático
Sob o sorriso enfático,
Por vezes pleno de doçura
Na postura ...
É infernal
Um político,
Mesmo quando artificial,
Como é vulgar hoje-em-dia
Com a maioria!

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Continuação do capítulo I de “O Ensino do Português”

Para efeitos de comentário aos considerandos de Maria do Carmo Vieira sobre o papel da família na educação dos filhos, começo por transcrever a parte final de uma Exposição que em 11/5/1976 dirigi ao ministro da Educação e Investigação Científica, oito dias depois de ter sido colocada no Liceu Passos Manuel. Tal Exposição está contida na III Parte do Livro “Cravos Roxos – Croniquetas verde-rubras” (1981), que tem por título “Memórias dum Professor do Liceu”, constituindo a sua introdução:

“(...) Senhor Ministro, não tenho veleidades de esperar qualquer resultado positivo desta minha exposição. A partir do momento em que se destituíram os professores da sua autoridade docente e se concederam todas as liberdades aos discentes, o ensino não passa de uma fachada de ilusão neste país, e só lamento os pais – sou um deles – que desejando uma boa formação espiritual e moral para os seus filhos, colhida também na escola, os têm entregues a uma autêntica instituição de degradação moral sem precedentes, e deixando naturalmente prever catastróficas consequências futuras. Lamento igualmente os alunos – os bem formados e os aplicados – que não encontram aí meio para sobreviverem.
O único resultado que talvez venha a obter com a minha intervenção junto de V. Exª, serão inquéritos e novos vexames – as crianças têm sempre razão (de resto os próprios alunos justificaram essa sua razão no meu “julgamento” pelo motivo de estarem em maioria, afirmação que jamais me passou pela cabeça pôr em dúvida, creia-me, Sr. Ministro) – onde os alunos pronunciarão novos dislates e insolências (uma instintiva delicadeza impede-me de usar o termo “bacoradas”) e onde eu não terei medo de me defender, mas tão somente uma pena infinita, por ver o meu país desgraçado em vias de atingir o caos total, onde os jovens não aprendem a tornar-se cidadãos autênticos em que liberdade signifique dignidade e respeito próprio e alheio, mas apenas um descontrolado despudor absoluto.
Como mulher livre que sempre fui, respeitando-me e respeitando por isso os outros, sem alienação de espécie alguma, recuso-me a pactuar com este estado de perversão que a falta de autoridade provocou.
Por isso dirijo a v. Exª este manifesto, como um grito de dor e um apelo ao bom senso dos homens que governam o meu país.”

O objectivo da citação prende-se à pertinência dos avisos de Maria do Carmo Vieira, para significar, todavia, que a família modelo dos nossos dias, talvez não tenha muito a ver com o modelo de família convencional em que fomos educados. E isso nos remete para o movimento de subversão das estruturas morais em que consistiu o da Revolução dos Cravos. Embora nem todas as escolas do país tenham alinhado na permissividade da ignomínia que se viveu nos primeiros anos, a indisciplina foi-se impondo gradualmente, colmatada nos tempos actuais por uma quase total anarquia, que tem a ver com a falta de educação nas casas, com a falta de autoridade nas escolas.
Os pais de agora foram muitos dos que há 35 anos colaboraram gostosamente no massacre dos professores que pretendiam prepará-los para o mundo da cultura, por dever profissional. Muitos desses talvez tenham singrado bem, graças a um qualquer encosto, outros, quem sabe, talvez não tenham conseguido ultrapassar os males de uma mudança tão radical como foi a nossa, abertas as comportas do non-sens, que atingiram o Absurdo de que trata Maria do Carmo Vieira.
Muitos desses jovens, mas igualmente outros, educados dentro dos sãos princípios, são hoje reféns de um status empresarial que, na esteira do que faz a Escola com os seus professores - os explora com uma carga horária excessiva, sem lhes dar tempo ao acompanhamento da família e à sua própria formação. Nós não precisamos de formação, não temos tais interesses formativos, que faz que se retirem milhares de escolas neste país, enquanto em França se fundam clubes de “Questions pour un champion”, ou na Alemanha, em qualquer pequeno burgo, se reunem as gentes em torno de um copo que seja, para falarem de coisas de interesse... E por aí fora, nesse mundo menos deficitário de valores.
Os patrões de cá confiam no desinteresse intelectual do povo de cá, não vale a pena dar-lhes horas para acompanharem os filhos ou se dedicarem a leituras. O melhor mesmo é ocupá-los a trabalhar para eles, o que será duplamente útil: os patrões ganharão mais dinheiro, os empregados não caem nos vícios da desocupação – copos, drogas, facadas extra-conjugais, tudo menos o estudo para que não foram habituados....
Vejamos o expressivo seguinte passo de Maria do Carmo Vieira, com que concluo a referência ao livro que todo ele importa ler, nos seus registos de seriedade e conhecimento de causa, repetindo algumas frases do texto anterior, para melhor integração no tema:

“... A coberto da protecção se vai efectivamente desprotegendo, descurando ao mesmo tempo a instrução e a educação. Na verdade, justifica-se, e com alguma hipocrisia, que desse modo se ajudam os pais, quando afinal os estão a demitir da sua obrigação de educadores, facilitando simultaneamente a existência de trabalhos, quantas vezes sem horário, que lhes negam o tempo livre para a privacidade familiar e parta os seus interesses pessoais. Nesta postura esconde-se a vontade de concretizar o desenvolvimento de uma sociedade de consumo, que aliena e contribui para “enfraquecer o papel da família, como suporte da tradição e da educação». Por sua vez, os filhos, desorientados, porque sujeitos ao abandono e sem experiência de limites e de autoridade, bem como de uma relação ética (o que acontece também na escola), tornam-se presas fáceis de discursos manipuladores, que lhes facultam a satisfação imediata dos seus desejos, deixando-se ingenuamente seduzir por uma falsa liberdade de agir, que os conduz, crendo-se autónomos, a situações de risco num mundo para o qual deveriam ser oportunamente preparados, com vista à sua plena integração e consequente intervenção.”

Vale a pena ler a pequena obra de Maria do Carmo Vieira que desmonta o artifício maquiavélico forjado nestes últimos anos, em torno dos falsos conceitos inovadores da Escola, na realidade com o prejuízo da nação presente e e da nação futura, no desvio propositado do bom senso, do bom gosto, do sério, do respeito humano.
Eu tinha quarenta anos quando fiz a minha exposição a um qualquer ministro da Educação e Investigação Científica de então, que me não permitia ensinar. Os professores hoje protestam, sofrem, creio que bem mais do que eu sofri então. E continuam a ensinar, com maior ou menor adaptação às novidades. Eu adaptei-me, porque gostei do que fiz, gostei das técnicas, gostei das matérias, e soube impor-me, apesar das rebeldias dos alunos, que também se foram adaptando. Recordo a escola, recordo os alunos, recordo as matérias, recordo os casos. Com prazer.
Mas hoje ninguém pode gostar de ser professor, tal a extensão das exigências, das cargas horárias, do desrespeito humano, da animalidade do que se impõe como primordial.
Por isso os professores deverão lutar, o país deverá lutar. Pela mudança.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

“O Ensino do Português” – O primeiro capítulo

O livro de Maria do Carmo Vieira “O Ensino do Português”, na seriedade com que ousa desmascarar um edifício educativo implantado gradualmente desde a Revolução dos Cravos num país de uma maioria de gente com pouca qualidade intelectual e que por isso facilmente se deixou manipular para colher as benesses a que se julgou com direito, movida pelo sentimento do despeito, da inveja, da ambição, da vaidade de obter louros sem esforço, lembrou-me velhas lutas com que também ousei, mais jovem, denunciar a burla e o burlesco, assustada, é certo, com o efeito pernicioso que esse novo edifício educativo iria ter sobre as gerações futuras no nosso país.
Chegámos a um ponto cimeiro da falácia, ou seja, chegámos a uma falésia alcandorada sobre fundo abismal de incompetência previsível, aonde se despenharão irreparavelmente os jovens cidadãos sem princípios, a que uma sociedade cada vez mais pervertida e destituída os jogou, a não pensarmos rapidamente em modificar comportamentos, num volte-face impreterível.
Antes de transcrever excertos do capítulo I do livro de Maria do Carmo Vieira, cito alguns títulos de textos contidos em “Anuário – Memórias Soltas” (1999, Ed. Minerva), onde fui marcando, embora inutilmente, a minha posição de contestação à perversão de que a “Educação” foi palco desde o 25 de Abril: “Estratégias do Ensino: Não à coisificação do aluno?”; “Pedagogia por Objectivos”; “Profissionalização”; “Professores em Estágio”; “Unidades Capitalizáveis”; “Reforma do Ensino”, “Leitura Silenciosa”, entre outros.
Vejamos, pois, alguns passos desse I Capítulo que tem por título “Nova Concepção de Escola e Novo Perfil do Professor”:

«A “nova concepção de escola” que a Reforma, implementada em 2003-2004, impôs, sem que houvesse um debate sério, e após anos de cauteloso e persistente trabalho, realizado pelos seus dinamizadores e apoiantes, é a representação meticulosa do espectáculo do Absurdo, sobre o fundo de cantos sedutores que atraem para a Ignorância, para a Inércia e para a preguiça de pensar, no desprezo pela educação da sensibilidade. Na base de teorias pedagógicas polémicas, já avaliadas e ultrapassadas, mas aceites acriticamente, se foi alicerçando o vício da facilidade, da ausência de reflexão e de criatividade, bem como a crença no êxito imediato e sem esforço, em tudo contrário à experiência da própria vida, do saber e da arte....»

«... As escolas que então optaram servilmente pela experimentação dessas inovações pedagógicas, descritas como verdades definitivas e incontornáveis, foram-nas integrando no seu quotidiano, numa aceitação acrítica e alheia às consequências. Nesse processo, pacientemente aguardado pelos seus mentores, que com subtileza o iam orientando, foram surgindo sugestões cuja concretização dependeria essencialmente da “sensibilidade do professor”, expressão com que se procurou, de forma condescendente, atrair os dissidentes. Inserem-se nesse discurso a indicação programática de “conhecimento activo/conhecimento passivo” e a possibilidade de definição de objectivos mínimos, que os alunos mais fracos deveriam cumprir para não serem reprovados. A atitude “miserabilista”, encarando os alunos como “os coitados”, fez também a sua aparição e, não raro, receberam os professores reunidos em conselhos de turma, na avaliação final do 3º período, indicações remetendo para a situação traumática de um aluno que sofrera a separação dos pais, ou qualquer outra vivência negativa; (...)»

“... Ao longo dos anos, proliferaram muitas outras orientações pedagógicas defensoras da facilidade e do consequente discurso infantilizante para a obtenção de um êxito escolar imediato, na expectativa do momento em que se tornariam imposições indiscutíveis, o que aconteceu com a implementação da reforma em 2003-2004. Temos de admitir que nós, professores, nos desleixámos, com alguma ingenuidade, quando reagimos apenas pontualmente às mudanças que se anunciaram ao longo da década de 80 e se prolongaram, com maior insistência, nos anos posteriores, não perseverando nessa reacção crítica. No fundo, não acreditávamos ser possível que o Absurdo se pudesse introduzir e impor, sob a capa de democracia e de progresso, em programas, manuais, encontros, debates e acções de formação, negando-nos a liberdade e a capacidade de intervir e alcunhando-nos publicamente de “resistentes à mudança, como se a mudança fosse em si um valor positivo, e não se pudesse mudar para pior, o que de facto veio a verificar-se. Assim se foi preparando o terreno para a sementeira da estatística e da verdadeira exclusão que vem associada à ignorância que hoje impera na escola, imagem elucidativa da deterioração da qualidade de ensino. (...)»

«(...) Da deterioração do acto de ensinar adveio, em simultâneo, o menosprezo pelo dever da exigência e pela competência do professor. Privilegiando-se quase exclusivamente a componente pedagógica, a sua formação científica foi sendo desvalorizada de modo gradual. (...)»

«(...) Os mentores desta “nova escola”, assente numa pedagogia traiçoeiramente sedutora, tentaram inicialmente convencer-nos da legitimidade das mudanças anunciadas invocando a “educação e o êxito dos alunos” e a “democratização do ensino”. Mas porque pressentiram que o gesto de “convencer” não resultaria fecundo, optaram pela imposição, mais imediata e garantida nos seus efeitos. Assim se substituiu, por exemplo, a exigência pela facilidade e o dever da assiduidade pela compreensão da “gazeta” no menosprezo pelo acto de ensinar. A coberto da protecção se vai efectivamente desprotegendo, descurando ao mesmo tempo a instrução e a educação. Na verdade, justifica-se, e com alguma hipocrisia, que desse modo se ajudam os pais, quando afinal os estão a demitir da sua obrigação de educadores, facilitando simultaneamente a existência de trabalhos, quantas vezes sem horário, que lhes negam o tempo livre para a privacidade familiar e para os seus interesses pessoais. Nesta postura esconde-se a vontade de concretizar o desenvolvimento de uma sociedade de consumo que aliena e contribui para “enfraquecer o papel da família como suporte da tradição e da educação.”

É longo o texto deste primeiro capítulo, a merecer uma “revisita”, de continuação da matéria, que o bom senso exige que se leia na íntegra.
Entretanto, estou ouvindo as notícias sobre o encerramento de mais 700 e tal escolas, a acrescentar às mais de 2000 já encerradas, para bem do Ensino e da Aprendizagem. Da Nação.
(Continua.)

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Não temos floresta. São árvores.

A conversa começou mal para os meus brios intelectuais. De papel e caneta em punho, perguntei à minha amiga por “notícias do meu país”. Devolveu a parada, com a interrogação final da sua resposta, pondo em dúvida o meu grau de informação, mas ultrapassei a sua ironia, embrenhada que estava na recolha dos seus argumentos:
- Bom, as notícias do meu país deixam qualquer um arrepiado. Não a deixam a si?
Não percebi qual o ponto agudizante da sensibilidade da minha amiga, tanta a chuva de pontos sensibilizadores do nosso bombardeio diário, e hesitei:
- Porque diz isso?
- Porque é que eu digo, do país? Não vê televisão nenhuma, nenhuma, nenhuma? O país está a arder! Não é Paris, é país!
- Mas os fogos têm-se apagado mais depressa, disse o nosso PM, e mesmo o nosso PR também frisou isso.
- Não ouvi. Mas aquilo é um horror! Como nunca aconteceu. É o pior ano de todos! É o que já consumiu mais de há três anos para cá, continuou a minha amiga com as notícias fresquinhas colhidas pela manhã. E continuou:
- Apanharam dois ontem. Têm outros presos.
- E não lhes lavam a alma e o corpo com panelas de água a ferver, à maneira dos antropófagos dos desenhos de brincadeira, panelas postas em cima da fogueira, com os meninos do Huambo à roda da fogueira aprendendo o que custou a liberdade de incendiar a floresta?
A minha amiga não alinhou na graça, chamado o seu espírito antes, às altas preocupações financeiras e humanitárias:
- O prejuízo económico é tão grande! Como é que o país sai duma coisa destas? Eu só me espanta os bombeiros! São seres humanos iguais aos outros. E lá estão a apagar os fogos. Estão de serviço permanente. Não precisam de despir aquela farda?
Esforcei-me por generalizar, para efeitos de auto-estima:
- Tantos fogos por aí, por esses países...
- A Rússia... Horrível! Os fogos na Austrália ... enormes! Mas são países enormes. Quando aquilo arde, arde a floresta. Os ricos costumam construir a sua vivenda no meio das árvores. Mas são países ricos, que se levantam. A nossa gente está a perder tudo. São os piores fogos de há três anos, disse um homem há pouco, em entrevista. O homem, como está na TV não aponta nada, mas dá a entender que foi tudo mal planeado. Passou um atestado de burros aos que planearam. Tudo zero. Dá vontade de perguntar: “E o burro sou eu?”
A minha amiga às vezes perde as estribeiras. E concluiu:
- Nós não temos floresta. São árvores. Porque se tivéssemos, já estava tudo engolido.
- Então ainda bem que não temos floresta, “só árvores”, afirmei, sem gaguejar, com a alegria verdadeiramente patriótica, e em lampejo evocativo do gaguejado “estrelados, só ovos” da peça “Amores de Poeta” do pobre Artur Corvelo de “A Capital” que tanta pilhéria provocaria nos entediados ouvintes. Olha se tivéssemos! Já tudo estaria engolido, tais como os ovos estrelados da marquesa de Alvarenga, na expressão do gago Visconde do Freixal da dita peça...
Não, não temos floresta, só árvores.

domingo, 15 de agosto de 2010

“Águas turvas”

Há muito tempo, afinal
Que a expressão fatal
Águas turvas” foi criada
Com inteligência,
Prova de que
Houve sempre quem muito bem
Soubesse decifrar
O comportamento humano
Quando ele é desumano
Ou simplesmente insano.
Até Esopo a glosou
E a aplicou
Com muita competência
Na sua fábula
«O pescador de águas turvas»,
Porque Esopo
Sempre esteve ali p’r’às curvas:

«Um pescador pescava num rio.
Depois que as redes estendeu,
De modo a barrar a corrente,
De um lado ao outro, convenientemente,
Uma pedra atou
A uma corda de linho
E com ela na água bateu,
Com pouco carinho
A fim de capturar
Os peixes cheios de medo
Das malhas da rede.
Um dos da sua vizinhança,
Ao vê-lo proceder
De forma tão lastimável,
Censurou-o por o rio perturbar
Assim os privando
De água potável.
“Sem dúvida”, o pescador retorquiu
Sem se ralar,
“Mas se o rio eu não turvar ,
Sou eu que de fome vou morrer.”

Assim é nas cidades:
Os negócios dos governantes
Demagogos
Jamais são tão florescentes
Como quando em guerra civil
A sua pátria mergulharam
De forma vil
Sem se importarem,
Já que eles se safaram.»

Mas eu acho que foi antigamente
Que se fizeram guerras civis.
Não somos assim tão imbecis!
Até porque vivemos em democracia
É certo que com alguma demagogia,
E preferimos a batatada
Bem gritada
Como forma de pancadaria.
O que se procura
Nesta altura
Nos governantes,
É a permanente conjura,
Que lhes dá ventura,
Com muita fartura
Pessoal
E muita usura
Geral,
Sem mistura
De atenuantes.
A nossa tortura
Vem antes
Das descomposturas
Febris
E constantes
Feitas de parte a parte
Nos jogos vocabulares
Parlamentares,
Ou das descobertas
Espertas
Dos jornalistas,
Denunciantes
Das turvas águas
Em que nos movemos.
Com candura.
E assim vivemos
Pescadores sem remos.

sábado, 14 de agosto de 2010

Ainda o livro de Maria do Carmo Vieira

Tenho uma sobrinha na Suíça, cujos filhos mais novos entraram no ensino básico. A aprendizagem é feita à base de leitura, cópias, ditados, pequenas composições, sobre textos ou visitas de estudo, gramática – suponho que a normativa, com as nomenclaturas da morfologia e da sintaxe, memorização de pequenos poemas, tabuadas, contas, também de cabeça, problemas... Muita incidência, pois, sobre a língua e sobre a aritmética. Mas as contas de dividir apenas no 5º ano. Tudo isso através de estratégias várias, entre as quais os concursos de velocidade, sem, aparentemente, receio de traumatizarem as crianças menos preparadas. É gente que deseja construir gente - enérgica, com cabeça, com desenvoltura, com capacidade. Terão, certamente, meios para colmatar as deficiências dos menos aptos que poderão também enveredar por vias mais de acordo com as suas aptidões. A memorização torna-se, pelos vistos, uma táctica imprescindível para a aquisição de domínios do saber.
Em Portugal substituiu-se a memorização pela criatividade retirada do nada, a seriedade do que se veicula como saber, por distracção lúdica, sem respeito pelo saber real. Quanto à permissividade ao erro foi, talvez, a técnica pedagógica que mais me indignou por alturas do meu estágio pós-abril de 74. Chamava-se “pedagogia do erro”, fazendo apelo à inteligência do aluno, para não lhe impor a memorização como acto psitacístico, gerador de papagaios.
Mas a TLEBS já não se importa, paradoxalmente, com tal psitacismo, desde que ele seja sancionado pela TLEBS, assunto de que trata o livro de Maria do Carmo Vieira – O Ensino do Português no capítulo II, com o título “Gramática e Terminologia Linguística”.
Põe esta em causa o acervo de iniquidades em que se tornou o ensino da língua portuguesa, com a adopção da “Terminologia Linguística para os Ensinos Básico e Secundário”(TLEBS), a qual destrói fatalmente a clarividência com que a gramática normativa, fundamentada numa estruturação de origem clássica greco-latina – na sua repartição por sons, formas das palavras ou sua função nas estruturas frásicas – apunha à compreensão da língua e dos textos e que os novéis buriladores de nomenclaturas de um preciosismo ridículo e tosco, baniram, a pretexto de que tudo isso de divisórias gramaticais não passa de velharias a pôr de parte.
Em vez delas criaram nomenclaturas de uma monstruosidade brincalhona que de modo algum servem o objectivo de motivar os alunos – o que não interessa, de resto, aos tais pseudo-linguistas da nossa brincadeira especializada - mas menos ainda o de lhes esclarecer as mentes em relação às mensagens dos textos – o que também não é objectivo desses tais, que preferem contribuir para a destruição sistemática das criaturas futuras obreiras de uma nação cada vez mais sem sentido, no seu nível de atraso endémico.
Os esclarecimentos da professora Maria do Carmo Vieira sobre todo esse processo de substituição de nomenclaturas gramaticais por linguísticas são elucidativos das aberrações a que se pode chegar quando o rigor e a seriedade dão lugar a uma tenebrosa palhaçada que não é mais do que farsa educativa para desprestigiar os professores e imbecilizar os alunos.
Permito-me transcrever algumas dessas palhaçadas do novo caos “cultural”:

(Das pgs. 37 e segs): «Não poderia deixar de enumerar algumas das inovações linguísticas que os professores operacionalizaram nos manuais do Básico e do Secundário, obedecendo, certamente contrariados, ao estipulado nos programas. Eis alguns exemplos:
“Livro” aparece classificado não como “substantivo” (dado que a velha designação acabou), mas como "nome comum masculino do singular”, a que acrescentou “contável, não humano e inanimado”.
“Modificadores” é a nova designação para os advérbios, subdivididos em várias “subclasses” que se designam por: “advérbios disjuntos” (advérbios de frase), “adjuntos” (advérbios de predicado) e “conectivos”. E repare-se nas várias subclasses semânticas em que se agrupam os advérbios disjuntos:
- “Advérbios disjuntos avaliativos”:
felizmente;
- “Advérbios disjuntos modais”:
possivelmente;
- “Advérbios disjuntos reforçadores da verdade da asserção”: evidentemente;
- “Advérbios disjuntos restritivos da verdade da asserção”: supostamente.

São ainda os alunos obrigados a consciencializar actos de fala, os “actos ilocutórios”, divididos em cinco categorias: “Assertivos”, “Directivos” (divididos em “Directos” e “Indirectos”), “Compromissivos”; “Declarativos”, “Expressivos”. Outra nova exigência é o conhecimento das relações semânticas de “hiperonímia” e “hiponímia”, “meronímia” e “holonímia”, conceitos que os alunos terão de adquirir e cujos exemplos retirei de um manual do 10º ano (havendo-os também no 7º): “Cão é hipónimo de animal; assim animal é hiperónimo de cão; nariz faz parte de rosto; assim, nariz é merónimo de rosto, sendo rosto holónimo de nariz”. E o que dizer em relação às diferentes classificações do “aspecto verbal”: Incoativo, inceptivo, cessativo, iterativo, frequentativo?»

Sim, na gramática normativa também se falava – mais outrora do que depois - de substantivos epicenos, sobrecomuns e comuns-de-dois, falava-se em derivação parassintética, na questão da composição por afixos, em enclíticas divididas em proclíticas, apoclíticas e mesoclíticas, em sufixos verbais incoativos, iterativos, frequentativos, etc, e havia quem se indignasse com a inutilidade dessas distinções (que afinal até esclareciam de forma inteligente), tal como se indignavam com as datas históricas, os rios e os cabos geográficos ou o estudo da mineralogia como inutilidades para um futuro de realização ainda incerta.
Como se só o que é funcional e pragmático fosse imprescindível em termos de educação para o saber, nas idades juvenis! Como se o despertar gradual para as coisas do passado e da vida e do homem não fosse objectivo imprescindível na formação de seres racionais!
Tudo isso que se ensinava, além das disciplinas que foram desaparecendo, eram marcos do saber que aclarava e ajudava ao desenvolvimento, sem os arabescos de um pedantismo monstruoso e babélico, como esses da TLEBS, criados para confundir e indignar e subverter e enganar, esquecidos os linguistas pedantes das contingências da massificação que protagoniza o ensino actual, pouco propício a tais lucubrações linguísticas, que o excerto supra, de Maria do Carmo Vieira, deixa antever.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Um livro de Maria do Carmo Vieira

Ouvi-a numa entrevista de Mário Crespo. Já tinha visto um livro dela –“O Ensino do Português” nos escaparates do Pingo Doce, mas, levianamente, imaginei que fosse de proveniência ministerial e repeli imediatamente o desejo de o comprar, atida ao conceito de que do Ministério da Educação só poderão chover propostas deseducativas, feitas por indivíduos tolos e mal formados, talvez daqueles que obtiveram cursos mais ou menos fraudulentos que as liberdades revolucionárias possibilitaram.
O programa de Mário Crespo revelou-me uma mulher crítica das idiotices que o novo regime tem frutuosamente imposto, para formação da tal sociedade acéfala que tantas vezes tenho referenciado, sem Pingo Doce que me acompanhe na venda desse peixe sobre um Portugal rebotalho.
Comprei o livro. Fui dando saltos de horror à medida que fui lendo a transmissão das suas experiências pessoais, para a criação de um novo modelo de professor – o tal, de camarada – que, por proposta de um desses colegas do Ministério da Educação destacados para vender a sua banha de cobra, em reunião por convocatória, referiu que, se um aluno, em vez da aula pretender que vão todos jogar futebol, o novo modelo de professor, ou seja, o professor modelo no conceito ministerial, larga a aula e vai jogar com os moços, dentro das novas funções da escola, ou das funções da nova escola, de dar abrigo aos estudantes, retendo-os nos seus espaços privilegiados de escola modelar, onde o lúdico se impõe aparatosamente.
Por outro lado, banindo o “velho”, ou seja, os conceitos que privilegiam os conhecimentos básicos que aclaram o sentido lógico da realidade cultural – os da gramática normativa, no caso do português, onde foi banalizada a leitura dos clássicos, ou de outras disciplinas nos diversos ensinos – básico e secundário – para facilitar a vida ao aluno vítima de um sistema que impunha reflexão e esforço e persistência, e agora se pretende “distrair” com abundância de sublinhados a cores e apelos directos e afectuosos aos “meninos” em títulos apelativos de uma indignidade perversa e bacoca, própria para atrasados mentais, que lentamente se vão infiltrando numa sociedade cada vez mais incapaz de raciocinar por si.

Transcrevo (pág. 64, referente ao 3º ciclo, na disciplina de português:
“- Numa dissecação minuciosa do que deve ser avaliado, segundo as directivas programáticas (“oralidade, escrita, leitura, compreensão da leitura, funcionamento da língua, área projecto, escrita recreativa”), antecedem-se as propostas de trabalho com títulos que se vão repetindo exaustiva e continuamente, numa estratégia de domesticação mental dos alunos: “Ler com cabeça e coração”; “Para saber mais...”; “Ouve lá!”; “A língua funciona!”; “A escrever é que a gente se entende”; “Arrumar a casa”; “Fixa!”; “Sabias que...”; “És tu a jogar”; “Fala a sério!”. Um outro manual opta por: “Motivar é preciso...”; “Ouvir/ falar, é preciso...”; “Alargar o vocabulário é preciso...” “Compreender é preciso”, e assim sucessivamente. Os mais discretos limitam-se ao enunciado nos exames: “Ler/Compreender”; “Escrever”; “Ouvir/Falar”; “Ler mais” “Funcionamento da língua” “Investigar”.
- Do ponto anterior decorre o aspecto gráfico do manual, demasiado preenchido com diferentes grafias e cores, numa histeria de pontuação, sem sentido, e esquemas de análise confrangedores, pela sua evidência, quando não ilustrações em demasia e impróprias pela sua falta de qualidade....”

O livro de Maria do Carmo Vieira, contém muito mais pontos de vista e análises do panorama educativo, com narrativa de casos por ela vividos, que merecem abordagem. Penso continuar a abordá-lo, como achega a uma tentativa corajosa e lúcida de desmistificação de um “Ensino” farfalhudo e grotesco que julgo que em mais parte nenhuma do mundo é passível de ser seguido.
Se alguma vez, ao longo da nossa História se cometeram crimes, este crime de rebaixamento perpetrado contra toda uma juventude e com sacrifício dos professores que apaticamente se vão deixando enredar nas suas malhas, é, quanto a mim, o maior de todos.
Assisto diariamente, religiosamente, ao “Questions pour un Champion” de Julien Lepers. Não, não há comparação possível entre a vitalidade intelectual daqueles jovens que estudam para saber e a apatia da nossa juventude estigmatizada com a banalidade cada vez mais acentuada de programas e estratégias de ensino, só aguerrida na indisciplina que lhe foi permitiva, dentro do mesmo objectivo destruidor do carácter e dos valores da cultura.
Para que um dia não saibam pedir contas da economia do seu país, igualmente destruída pelos mesmos responsáveis pela sua idiotia.
E nós, que comodamente o permitimos, embarcamos todos, passivamente, nessa monstruosidade, cegos, surdos, mudos. Indiferentes. Sem que volte a cair o Carmo e a Trindade. Porque este terramoto governativo é subreptício e traiçoeiro. Como o cancro.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Uma fábula pequenina

De Esopo extraída,
É imagem da vida:

"Os pescadores e o atum "

Uns pescadores pescando no mar,
Longos esforços iam fazendo
Sem nada encontrar.
No barco sentados,
Desanimados, desencorajados,
À tristeza iam cedendo.
Mas um atum perseguido
Fendendo as águas com estardalhaço,
Saltou-lhes para o barco, sem dar por isso.
Dele se apoderaram
À cidade a presa levaram,
Onde a venderam.
E assim é que muitas vezes
A fortuna concede
O que esforço e arte.
Recusaram.”

Queiram ter a bondade
De me dizer
Se é ou não verdade:
Há quem fale, é certo,
Em golpe de sorte,
Há quem antes diga,
Mais por perto,
Sorte no golpe.
É só escolher
E de acordo viver.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Uma espécie de “circo de Gavarnie”

Já foi há dias que a minha amiga se exprimiu com muita iracúndia contra “esse tal Rangel” mas só hoje me trouxe o documento justificativo do seu estado de espírito enervado que, ainda ignorante do acontecido, eu acusei de pouco cristão, porque, sem falsa modéstia, sempre me orientei pelos ideais da santa Bíblia, apanhados sobretudo nas parábolas que se reportam aos trabalhos de Jesus na terra. Disse, então, a minha amiga:
- Como é possível que um jornalista só veja assim? Talvez seja atrasadinho. Tudo tão escandaloso e o gajo não vê! Mas não é que o Rangel é o único jornalista que defende o Sócrates?
Eu achei que não era o único, mas transmiti o caso ao meu marido, para ter a certeza, porque não gosto de fazer afirmações levianas.
- Ah! Esse está bem! - disse o meu marido. - É um espertalhão que se sabe encostar aos outros espertalhões.
Acrescentou ainda uns pormenores fofoqueiros sobre a que fora sua mulher – Margarida Marante – que fora uma moça brilhante, mas talvez não espertalhona e deixou de ser vista na televisão, com pena minha, que admiro as inteligências reais ...
Pus-me, pois, a ler o texto do Emídio Rangel – Jornalista – “Caluniar não compensa...”, saído no Correio da Manhã de 31/7, na coluna “Coisas do Circo”.
Fiquei siderada ante o tom de bajulação ao PM, subentendido no discurso inflamadamente acusatório usado por Rangel - o tal - contra os caluniadores do Sr. PM. Discurso muito verrinoso, feito aparentemente de bons princípios, ao modo polémico que tantos polemistas, nos séculos passados, usaram, embora, talvez, sem idêntica licenciosidade e arreganho daqueles, pois que isso pressupõe domínio linguístico e poder satírico, e Rangel denuncia mais o domínio da coluna, vergando-a perante quem a ginástica compensa.
Cito, entre os tais polemistas do passado, o padre José Agostinho de Macedo, que não se poupou aos mimos da sua violência esclarecida, em, por exemplo, “A Besta Esfolada”, “A Tripa Virada”..., de que transcrevo, sobre “A Demagogia dos Regeneradores”, o excerto seguinte, do primeiro livro citado, tão actual me parece:

“... Aparecem na grande cena do Mundo certos demagogos, certos revolucionários, que no fundo da sua alma não querem nem Rei, nem Roque, nem Constituição, nem Ordenação, nem forma alguma de Governo que não seja uma tumultuosa e mal entendida democracia. Como verdadeiros camaleões, tomam sempre diversas cores e diferentes aspectos; dão tombos como as enguias, mas quem olha para elas e para os tombos sempre descobre o rabinho, que se inclina e toma a direcção da água. Inculcam e assoalham planos de reformas, procuram embair os incautos com mudanças e melhoramentos, fazem arear as classes, que a soberba julga ínfimas no Povo, com as nivelações e igualdades diante da lei, à ilharga da lei; chovem as garantias dos direitos de cidadãos aos forçados das galés e aos lava-peixes; alargam e profundam todas as valas, abrem todos os canais, enchem o Reino de cereais aqui nascidos e criados; em cada charco de água levantam uma fábrica de papel e outra de chitas: o bicho-carpinteiro da indústria formiga e se revolve por toda a parte; em cada aldeia são logo instaladas as Escolas de Atenas e o Instituto de Bolonha; a navegação estende-se tanto, e com tanta actividade, que prometem ir num bote do Cais de Belém muito para lá das Terras Austrais; prometem tanto ouro e tanta prata que, como no reinado de Salomão, as calçadas das ruas serão de ouro e a prata será reputada como a lama das mesmas ruas; e, fartos em promessas, asseguram que só eles desceram dos céus para tirarem o Mundo do abismo, do servilismo, do despotismo, do absolutismo e das fogueiras da Inquisição, e, o que é mais que tudo isto, das fateixas dos padres da Companhia.
Os povos, que, enfim, não são tão tolos como eles os querem fazer ou querem que sejam, começam a desconfiar de tanta manteiga e de tão palavrosos impostores; e, pelo que eles começam a fazer e a decretar, conhecem que o fim máximo destes perturbadores do sossego das nações é roubar e dominar.....”


É um texto antigo, o acima transcrito, que cita exemplos de indústrias fabris nem todas semelhantes às de hoje, mas as indústrias comportamentais pouco diferem.
Não, não é um texto decente, o de Emídio Rangel, neste nosso “circo de Gavarnie”, tão amplo, tão antigo, tão espantosamente aterrador no seu aspecto de perenidade. E de imutabilidade, pelo menos o nosso.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Um erro de La Fontaine

Entre os temas que La Fontaine manifesta
No seu fabulário tão vário
Encontra-se o do contraste
Entre a aparência e a realidade,
Na questão dos vultos de casta
Da nossa praça
E da praça alheia.
Uma desgraça!
Bem feia!
Vejamos esta,
Digamos fábula:

«A raposa e o busto»

«Na sua maior parte os grandes
São máscaras de teatro;
Com muita suficiência
Se impõe, ao vulgo idólatra,
A sua aparência.
O Burro, que não aprendeu o abc
Só sabe julgar por aquilo que vê:
A Raposa com isso não se contenta
E, pelo contrário, tudo lê
De forma atenta.
Vira os bustos, lentamente,
Cuidadosamente,
De todos os lados; e quando entende
Que o seu jeito não é mais que aparência,
Ela atira-lhes uma palavra
Que, com certa imprudência,
E mesmo alguma inclemência,
Um busto de herói lhe fez dizer
Muito a propósito e com muito saber
Num certo dia de bastante calor
Única justificação para tanta impertinência.
Era um busto oco, maior que o natural,
Autêntica máscara de actor principal.
A Raposa, louvando o esforço da escultura
De uma importante figura
Social,
Disse, com malandrice:
“Bela cabeça, mas quanto a miolos, nem sinal.”

Quantos grandes senhores são bustos tais!
Uma coisa por demais!”

Ora, segundo me parece
La Fontaine nem sempre acerta
No que escreve.
Eu acho que os grandes
Muito importantes
Têm até mais miolos
Do que aparência de importância.
Não, não são tolos.
Tolos somos nós
Que mesmo conhecendo o abc
Caímos, como se vê,
- Se tem visto sempre -
Em todas as suas manigâncias
Resultantes das suas relevâncias,
As mais das vezes provenientes
Das espertezas
Das suas cabeças
Que pedem meças
Às próprias belezas
Das suas figuras,
Que com o tempo, contudo,
Se apuram, se apuram,
Autênticas esculturas.
E se umas se acabam,
Como é natural na vida,
Logo outras retomam
A via devida,
Esculturas sim, na beleza dos gestos,
Na elegância dos fatos,
E só aparentemente
Ocas interiormente.
Espertas e belas
São elas,
E nós, os toscos.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Os direitos num país de avessos

Falei à minha amiga na crónica de Inês Pedrosa, “Fechar para Abrir”, da Revista Única de 31 de Julho, com, por subtítulo, “O encerramento das escolas sem condições só peca por tardio”, a qual condena os botas-de-elástico que gritam a plenos pulmões contra o encerramento anterior, de 2500 escolas com menos de dez alunos, por Maria de Lurdes Rodrigues, e o que se vai perpetrar de mais de um milhar com menos de vinte alunos, com a ministra actual. Mas a minha amiga, não sei se por uma razão humanitária, se por avidez de contestação, que ela às vezes até peca por excessos oposicionistas sem eu lhe topar o motivo, branda como sou, não discordou grandemente da medida sanitária. E arbitrária:
- Todos têm direito a boas instalações, não são só alguns. Porque os miúdos vão ver uma escola daquelas e preferem ir para a boa escola. O Estado dá transporte. As condições físicas são muito boas, com campos para jogos, magalhães, biblioteca....
Lembrei que em tempos, numa escola de Cascais onde dei aulas, não sei se por estarmos próximos da praça de touros que, em qualquer tarde gloriosa terão arremetido contra os pavilhões da escola – sempre, aliás, de menor importância que a praça - o que teve como resultado abrirem-se os telheiros de passagem entre os pavilhões, daí que, em dias de chuva, era a escorrer água e a tremer de frio que penetrávamos nas praçazinhas das aulas de então, finais da década de setenta, princípios da de oitenta.
Lembrei ainda que até à minha terceira classe andei numa escola dessas, de aldeia, escola genérica, como qualquer remédio actual que se preze, englobando as quatro classes, e não deixei de cumprir com gosto as minhas obrigações de aluna vivaça e de fazer as rodas e brincar aos jogos possíveis na eira da nossa escola, que em dias solenes até içava a bandeira para os alunos saudarem, cantando o hino nacional. Com direito a vestido novo, no dia do exame, de professores externos, não susceptíveis de suborno.
Inês Pedrosa explora a temática da relação social que uma escola nas condições de modernidade prescritas tem o dever de fomentar. Suponho que escolas apetrechadas com a aparelhagem que o nosso PM impõe, como imprescindível fautora da circumnavegação pelos territórios comprovativos da globalidade do planeta. Como se fez outrora, embora por conta de outrem, mas, indiferente ao facto, o computador ministerial levou um baptismo patriótico, visto que o nosso PM não ia deixar os nossos créditos onomásticos por por mãos alheias, que patriota se tem ele revelado e muito, quer na nova organização ortográfica, por motivos de sujeição, quer na nova desorganização agrícolo-piscatória, por idênticos motivos, quer na reconstrução territorial, onde se gasta dinheiro em barda para dar emprego aos reconstrutores, dinheiro que falta para pagar aos professores das tais escolas eliminadas, que perderão os seus empregos, juntamente com os professores subtraídos nesses outros projectos de agrupamentos escolares. Sim, o Estado dá transporte, e dá emprego às empresas de transporte e aos chauffeurs dos autocarros do transporte das crianças. O Estado nosso pai, que destrói escolas em vez de as reparar, como faz às vias rodoviárias, num país que se diz atrasado, e cuja destruição de espaços que poderiam contribuir para uma certa movimentação cultural, caso fossem bem trabalhados segundo exigências responsáveis, implica um cada vez maior empobrecimento, um cada vez maior atraso, neste país entorpecido e sem solução viável de desentorpecimento.
Mas eu acho que o nosso PM prefere as rodovias, para as suas próprias maratonas pedestres, às escolas, para as maratonas das necessidades culturais do nosso povo entorpecido. Desde sempre. Para sempre. Rimando com embrutecido.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

“Cogito...”

Falou do Carlos Cruz e de mais três entrevistados. Todos se queixaram de que as suas vidas ficaram destruídas. Carlos Cruz afirmou tudo dever à mulher e às filhas, mas eles têm-se despojado de muitos bens, para pagar as custas do processo. A minha amiga comenta:
- Como é que um homem da televisão tem aquela riqueza toda? Como é possível? Eles ainda vivem bem. Mas a dúvida fica para sempre, nem que vá a Tribunal e seja ilibado. Esperemos que seja feita justiça. Ele diz que o nome dele foi metido lá para tapar, para desviar nomes sonantes. Diz que sabe quem são mas não vai dizer quem é. Só quer que não se deixe prescrever o processo. Foram entrevistados quatro fulanos. Todos negaram ali. Não sabem porque é que os nomes deles estão lá. Já viu o horror que é condenarem-se inocentes?
- Mas como se pôde despoletar tudo isto, numa tal dimensão? E como é que uma pessoa se deixa condenar “para tapar nomes sonantes” que conhece mas não denuncia!? É, pelo menos, idiota!
- E agora pergunta-se: aqueles rapazinhos sofreram. Sabem quem são os fulanos. E quando apresentam queixa dão outros nomes? Será que mentiram? Porque os rapazinhos dizem todos: “Não espero nada”, excepto um que disse: “Só espero estar lá nesse dia. E vai-se fazer justiça.” Só um disse isso. Há outros que não querem ser vistos.
- O Processo Casa Pia! Um nome sonoro, para dar grande brado, quando se puder contar a verdade. Mas nunca terá uma solução fiável, espécie de “collier de la Reine”, explorando intrigas, recalcamentos, e misérias morais e materiais, onde jogam também factores de conveniência e vilezas duma gravidade cujo desfecho poderes superiores, aliados a uma justiça inexistente cada vez mais impedem, como outros processos que brotam a cada passo neste país de clima propício ao “far niente” à excepção do abocanhar nas reputações. Às vezes com razão.
-O Freeport já foi. Este irá também. Em setembro. Mais um adiamentozinho da troça justiceira dos prepotentes, sobre um povo que a merece, pois deixa.
- E cada vez será pior. Com a abolição das reprovações, pela excelsa ministra da Educação, com a adopção de médicos acabadinhos de formar, sem experiência, para substituir os que se foram, e tomarem conta das vidas doentes, caminhamos para uma cada vez maior juvenilidade, neste velho país de anormalidades. Verguemos o cachaço! Diz-se que sempre o vergámos, aliás! E eram mais velhos os governantes. O Jerónimo de Sousa, que parece honrado, diz que é um “lapsus linguae” da Alçada, essa tal da abolição, mas está enganado, que a Alçada defende mansamente a posição dinâmica do seu juvenil PM. Ajoelhemos com ela, perante ela, perante ele. Cantemos:
De rastos, a teus pés
Perdida te adorei
Até que me encontrei
Perdida”.
Não tenhamos dúvida disso, se é que nessa altura ainda temos capacidade para formular uma qualquer dúvida. Aquela que pode ajudar a definir a nossa identidade racional.